‘Plataformas digitais não são meras
empresas, mas entidades políticas de um novo tipo’, avalia pesquisador
O despertador toca.
Você acorda. Enquanto procura desligá-lo, percebe através do visor algumas
informações pela central de notificações que você ativou para que pudesse, de
imediato, acessá-las sem muito esforço. É o sistema global de redes de
computadores. Mesmo antes de decidir qual conteúdo visualizar, você se
lança numa jornada pela internet em mais um dia. Por dentro do fluxo
algorítmico, sente que qualquer coisa pode surgir diante da tela. Como quem
anda por uma floresta cercada de riscos, você também se depara com entidades de
outros mundos. Em meio a nuvem de dados onde se localiza essa nova instância da
realidade, as conexões em rede, assim como espíritos, são entidades ambíguas:
agências inumanas que, independente da sua permissão, influenciarão os meios do
seu acesso, moldando suas preferências, criando identificações e orientando sua
posição política na sociedade. Assim, entre os fluxos de informações em rede
sobre um mundo tomado pela nuvem, preserva-se neste novo universo o núcleo
mágico das entidades algorítmicas com as quais ainda não sabemos lidar diante
do constante sentimento de ameaça.
Nas últimas semanas,
contudo, o espectro ganhou novamente feição. Em meio aos conflitos entre
Twitter/X e o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, o debate acerca da
regulamentação das Big Techs reacende sob novas perspectivas e considerações. Com
a decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), pelo
engavetamento do Projeto de Lei 2630/20, que estipulava a responsabilização das
plataformas sobre os conteúdos veiculados nas redes sociais, somos convocados
de novo para uma disputa a respeito das implicações da tecnologia sobre nossas
formas de vida: não apenas em relação à autonomia individual comprometida pela
corrosão do tempo diante da tela, mas também os próprios marcos que instituem a
soberania popular e a ordem política dos estados-nacionais na modernidade.
Para pensar as
implicações desses novos conflitos e as transformações no contexto em que as
plataformas se voltam contra as decisões das autoridades
clássicas, Fórum entrevistou o pesquisador e professor em Teoria do
Direito, José Antonio Magalhães, da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Para o pesquisador, que também é professor
colaborador do canal Transe, o recente embate entre Elon Musk e Alexandre de Moraes, antes de ser uma questão meramente jurídica, ilustra na
superfície do debate público os efeitos do esgotamento dos pressupostos que
fundam a experiência política moderna e reposicionam agora as plataformas como
‘entidades políticas de um novo tipo’.
Na entrevista a
seguir, Magalhães explica ainda como os conceitos de “tecnodiversidade” e
“cosmopolítica” podem fornecer intuições importantes para desarmarmos os
impasses da nova realidade organizativa de uma sociedade em franco processo de
mudança.
>>> Leia na
íntegra
·
Desde o tuíte de Musk pedindo a saída de
Moraes do STF, o evento foi marcado por denúncias a respeito da interferência
de um ente externo na política nacional brasileira. O que esse movimento tem a
ver com a nova ‘soberania de plataformas’ que as big techs atualmente
representam e que rompe com o modelo moderno de soberania que se consolida
inicialmente no marco dos tratados de Vestfália?
José Antonio
Magalhães: Você faz referência a uma thread que eu fiz citando o livro
"The stack: On software and sovereignty", de Benjamin Bratton. Nesse
livro, Bratton defende que estaríamos passando do modelo de soberania moderno,
chamado "Vestfaliano", a um novo paradigma de soberania, que ele
chama de "Soberania das plataformas" ou, brincando com a expressão
"nomos da terra", do jurista alemão Carl Schmitt, de "nomos da
nuvem". No modelo Vestfaliano, a superfície plana da terra era dividida
entre Estados soberanos de forma mutuamente excludente, cada um tendo
jurisdição e o monopólio do uso da força em relação ao seu respectivo
território e população. O novo paradigma da soberania de plataformas, em
contraste, adicionaria um eixo vertical a essa divisão horizontal da terra: o
chão segue dividido entre os Estados, mas as plataformas exercem seu próprio
tipo de soberania de maneira sobreposta tanto em relação aos Estados quanto às
demais plataformas. Isso implica que o conflito entre o Twitter e as instituições
do Estado brasileiro não deve ser entendido simplesmente em termos de uma
relação regulatória entre o poder público de um Estado e uma empresa privada,
mas sim de um conflito político entre uma instituição política mais antiga (um
Estado) e uma de um novo tipo (uma plataforma). Mais que isso, trata-se da mais
recente interação do conflito entre uma lógica jurídico-política moderna cuja
crise só vem se agravando, e uma nova lógica jurídico-política que pretende
substituí-la ou, no mínimo, tornar-se dominante sobre ela. Ou seja, trata-se de
um conflito sobre como os territórios e populações serão governados daqui em
diante - através de que tipos de conceitos, técnicas, espacialidades etc.
·
Atualmente há um número crescente de
trabalhos nas universidades e institutos de pesquisa a respeito da governança
digital que buscam informar e esclarecer o debate acerca da regulamentação das
plataformas no país, como o caso do Projeto 2630/20 que, como anunciado
essa semana pelo presidente da Câmara Arthur Lira, deverá ser reformulado após
os novos elementos evidenciados no conflito entre Musk e o Supremo. Acerca da
mudança na forma de soberania que você constata, podemos dizer que os estudos
sobre governança digital estão suficientemente sensíveis a essa transformação
ou ainda estamos buscando lidar com os problemas do novo paradigma segundo a
gramática do modelo Vestfaliano?
JM: Através da
própria rede social da qual ele mesmo é o dono, Musk conseguiu pôr a perder
anos de discussão em torno da regulação das plataformas no Brasil atrelados ao
PL 2630. É evidente que ele faz isso por interesse próprio, não só no sentido imediato
de que ele é dono de uma das plataformas a serem (ou não) reguladas, mas por
uma série de razões menos evidentes ligadas aos seus interesses econômicos e vínculos políticos. Não obstante, seus puxa-sacos o
afirmam como o último bastião da liberdade de expressão no mundo. Alguns são
manipuladores interessados, mas as maiorias inocentes compram esse discurso
porque continuam a entender uma empresa como algo mais parecido com um
indivíduo – e portanto com eles próprios – que com um ente político. O curioso
é que os estudos de governança digital, e grande parte das vozes críticas a
Musk e defensoras da regulação das plataformas, tendem também a pensar o problema
em termos de como o Estado deve ou não regular as plataformas, entendidas ainda
como simples empresas. Isso não deixa de ser importante, afinal é preciso mesmo
mobilizar os conceitos e ferramentas jurídico-políticas disponíveis para frear
a captura acelerada da política pelas plataformas. Ao médio e longo prazo,
porém, defendo que seja necessária uma mudança conceitual em que passemos a
entender as próprias plataformas como entes políticos, pondo questões políticas
e democráticas diretamente em relação às plataformas. A questão deixa de ser
como o direito deve regular as plataformas, e passa a ser como as próprias
plataformas controlam as nossas condutas; deixa de ser o quanto os atos do
Estado em relação às plataformas possuem legitimidade democrática, e se torna
como democratizar as próprias plataformas. Afinal, como aponta o economista
Yannis Varoufakis no seu livro recente "Tecnofeudalismo", atualmente
as plataformas são como feudos medievais, ou seja, entidades politicamente
despóticas e economicamente fundadas no trabalho não-remunerado, ao mesmo tempo
em que seus algoritmos manipulam a circulação de discurso sem qualquer
transparência. A Academia, sendo um espaço que nos permite refletir para além
das demandas imediatas do presente, precisa desde já produzir novos conceitos
através dos quais demandas políticas e democráticas possam ser endereçadas às
plataformas – seja às que temos ou às que ainda podemos imaginar e construir.
·
Uma das críticas das big techs contra a PEC
2630/20 é a alegação de que não teriam responsabilidade sobre os conteúdos
veiculados nas plataformas e, por isso mesmo, não devem responder pelas ações
dos seus usuários. O que é “tecnomia” e como esse conceito pode lançar luz
sobre os problemas que surgem no debate a respeito da regulamentação e,
consequentemente, da liberdade de expressão?
JM: Eu usei esse
conceito de "tecnomia" na minha tese de doutorado para falar de como
as tecnologias não são só potenciais objetos de regulação, mas têm a sua
própria normatividade, ou seja, elas próprias regulam os espaços que criam
através do próprio código e das suas interfaces. "Techné" remete à
técnica, é claro, e "nomos" ao direito e à norma. Vale lembrar que,
nos primórdios da internet, o ativista ciberlibertário (e compositor para a
banda Grateful Dead) John Perry Barlow escreveu uma "declaração de independência
do ciberespaço", em que ele afirmava que a internet não só não deveria ser
regulada por Estados, mas que seria inerentemente, estruturalmente impossível
de ser regulada. Mas esses eram outros tempos da internet, a chamada Web 1.0.
Com o advento da Web 2.0, ligada às grandes plataformas e à governança baseada
em dados, há um reconhecimento geral de quem estuda o assunto de que a internet
já não é mais o espaço libertário vislumbrado por Barlow. Isso não é tanto
porque os Estados tenham conseguido regular a internet, mas sobretudo por conta
do tipo de regulação próprio das plataformas, que Barlow não previu. Agora, se
isso significa que as plataformas são ou devem ser responsáveis pelas ações dos
seus usuários me parece um falso problema. A questão não é tanto se o indivíduo
ou a empresa são responsáveis perante o direito, mas sim que esse conceito
mesmo de responsabilidade é interno a uma lógica jurídico-política que as
plataformas estão desestabilizando. Por isso insisto que os conceitos jurídicos
mesmos, como no caso o de responsabilidade, precisam urgentemente ser
repensados para o contexto das plataformas. Como esse conceito se transforma,
por exemplo, a partir do momento em que já não temos um cidadão perante o
Estado ou um indivíduo negociando com uma empresa, mas um usuário ou perfil
agenciado a uma plataforma?
·
No seu trabalho você também mobiliza o
conceito de “tecnodiversidade”. Como você imagina que outras cosmologias podem
nos ajudar a pensar nos impasses do que você caracteriza como “tomada da
nuvem”?
JM: O que chamo
de "tomada da nuvem" é o processo de que acabo de falar, em que a web
libertária dos hiperlinks foi colonizada pelas plataformas. O filósofo da
tecnologia chinês Yuk Hui propôs os conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade
para lidar justamente com o que ele vê como um mau direcionamento da tecnologia
em escala planetária. Segundo Hui, o sistema técnico atual é uma espécie de
monocultura, ou melhor, uma monotécnica, fruto da universalização da
cosmotécnica moderna/ocidental, isto é, da concepção e experiência da técnica
características da modernidade europeia, ligada à instrumentalização da
natureza como meio para fins humanos. Isso nos estaria levando não só à
radicalização da exploração do humano pelo humano, mas também à catástrofe ecológica
já em curso. Para desviar esse direcionamento, Hui propõe que outras
"civilizações" (eu prefiro “povos”, afinal as cosmotécnicas indígenas
sempre foram colocadas, nas divisões tradicionais, ao lado dos “selvagens”, e
não dos “civilizados”) implementem, a partir das suas próprias cosmovisões,
concepções diferentes da tecnologia. Seria possível, assim, multiplicar as
cosmotécnicas, quebrando o monopólio da tecnologia moderna em favor da
tecnodiversidade. Hui fez um estudo aprofundado da cosmotécnica na tradição
chinesa, remetendo ao Confucionismo, ao Taoismo etc. Na América Latina,
acredito que precisamos olhar para a diversidade das cosmotécnicas indígenas,
afro-diaspóricas e suas recombinações contemporâneas para produzir experimentos
alternativos às plataformas que temos hoje.
·
De quais formas essa proposta de pensamento
tem politicamente se organizado atualmente?
JM: Não me parece
que haja muitos experimentos, até o momento, que levem a sério as ideias de
cosmotécnicas e tecnodiversidade. Existem mais movimentações no sentido da
crítica ao "capitalismo de plataformas" (Nick Srnicek) e da busca de
alternativas como um socialismo de plataformas (James Muldoon) ou comunismo de
plataformas (Joss Hands), bem como no cooperativismo. Aqui no Brasil temos uma
iniciativa muito interessante que mapeia e reflete sobre as tensões entre o
mundo do trabalho e as plataformas, a DigiLabour. Esses movimentos muitas vezes ficam mais no
plano especulativo, já que a organização da luta dos trabalhadores de
plataformas é muito dificultada pela própria dinâmica do modelo, mas há sem
dúvida construções, reiterações e conquistas. Isso tudo, em todo caso, é
pensado e operado no interior de uma cosmovisão moderna/ocidental, ou seja, não
toca tanto o problema da tecnodiversidade, permanecendo a questão, por exemplo,
de como um eventual socialismo ou comunismo de plataformas encaminharia as
questões dos povos indígenas ou da crise climática. Existem processos de
apropriação de "altas" tecnologias por povos não-modernos, como, por
exemplo, a combinação de drones, aplicativos e arco-e-flecha por indígenas para
proteger seus territórios da invasão de grileiros e garimpeiros. Yuk Hui,
quando trabalhava com Bernard Stiegler, também experimentou com a criação de
uma rede social que não fosse baseada em usuários individuais, mas em
coletivos. Mas não há hoje, que eu saiba, efetivas alternativas de plataformas
que busquem se basear em cosmovisões outras-que-modernas. É uma discussão que
está apenas surgindo no horizonte, mas que nem por isso é menos interessante e
urgente.
Fonte: Fórum
Nenhum comentário:
Postar um comentário