Michel Goulart da Silva: O golpe, a
ditadura e o revisionismo acadêmico
Nesta segunda-feira,
1º de abril, completaram-se sessenta anos do golpe que derrubou o governo João
Goulart em 1964. O processo, encabeçado pela cúpula militar e apoiado por
empresários e outros setores sociais, abriu as portas para a ditadura que
perseguiu e assassinou críticos e opositores até a década de 1980. Contudo,
ainda que as ações dos golpistas e dos ditadores sejam bastante evidentes e
conhecidas pela sociedade, sempre gerou polêmicas e interpretações, que vão
muito além do mero negacionismo desprovido de conteúdo de Jair Bolsonaro e seus
seguidores. Pelo contrário, mesmo no ambiente acadêmico, essas interpretações
afetam até mesmo o trabalho dos historiadores.
Esse movimento
revisionista não se dá no vazio, mas expressa debates políticos de fundo, em
especial de quais setores seriam os protagonistas do golpe e quais seriam suas
vítimas. Em particular, existem aquelas interpretações que culpam a esquerda e,
por conseguinte, as mobilizações dos trabalhadores pelo golpe, afinal seriam
essas mobilizações que teriam forçado a ação da burguesia e do imperialismo.
Expressando essa
interpretação, afirmaram Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira que o
presidente João Goulart “[…] se aliara a Brizola, Arraes, Prestes e ao
movimento sindical mais radical para formar um governo exclusivo das esquerdas.
A opção presidencial permitiu que os grupos de oposição ao governo – mesmo os
mais moderados e legalistas –, quer civis, quer militares, começassem a
suspeitar das verdadeiras intenções de Jango. Receosa e desconfiada, essa
oposição cedeu aos apelos da direita golpista, o que reduziu os custos
políticos de uma ruptura com as regras democráticas”.
Segundo os dois
historiadores, João Goulart teria conseguido, “[…] por razões diversas, entre
as quais a ameaça comunista é o destaque, que setores militares e civis, quer
os que já estavam conspirando, quer os que não o faziam, se posicionem de forma
radical contra o presidente”.
Contudo, as ações do
presidente que teriam causado tanto medo seriam a convocação de uma
Constituinte, dependendo da anuência do Congresso Nacional, e as ameaças de uma
reforma agrária “na marra”, mediante o pagamento de indenização. Portanto, não
havia nada de perigosamente revolucionário nessas medidas, mas reformas que se
davam dentro da ordem capitalista burguesa. Observa-se, pelo contrário, que
conspiradores de décadas anteriores buscavam fomentar o medo nas classes médias
e, a partir disso, ganhar apoio para um golpe.
Outro importante
historiador, ainda que mais cuidadoso em sua análise, acaba também por
escorregar na interpretação de culpar a esquerda. Carlos Fico, ainda que veja
nas Marchas da Família, com Deus pela Liberdade “um componente de manipulação e
evidente propaganda anticomunista e contrário a Goulart”, aponta que o
movimento “expressou um autêntico sentimento de insatisfação da classe
média”. O historiador reconhece o fato de que as “as propostas de reformas
de base não eram radicais, sobretudo a da reforma agrária”, afirmando serem
“imprecisas e modestas”. Contudo, ainda que admita isso, aponta que seria
necessário “reconhecer que João Goulart não foi habilidoso ao defendê-las”.
Portanto, novamente
aqui se vê um exemplo de considerar a subjetividade individual de João Goulart
um fato determinante para o golpe. Nessa interpretação, o fator mais importante
não teria sido a propaganda anticomunista, mobilizando as classes médias com as
ameaças de ataque à propriedade individual, como casas e apartamentos próprios,
nem o fato de a burguesia e o imperialismo verem como negativas as reformas
base e por isso organizar parte da sociedade para combatê-las. Na interpretação
expressa por Carlos Fico, esses elementos objetivos da realidade parecem
fatores determinantes do que a falta de habilidade do presidente.
Daniel Aarão Reis, que
foi militante de organização de luta armada na ditadura, entrou nesse debate
construindo um argumento diferenciado, ainda que também assumindo uma postura
revisionista. Esse historiador busca construir a interpretação de que o golpe
não teria sido um fenômeno externo à sociedade, mas expressava elementos
políticos e culturais inerentes ao processo, assim justificando sua
interpretação de que os movimentos financiados pela burguesia e apoiados pelo
imperialismo, como a reacionária Marcha da Família, seriam “amplos movimentos
sociais”. Embora formado no marxismo, o historiador deixa de lado em sua
análise qualquer perspectiva de que a luta de classes e a necessidade de
manutenção da ordem institucional por parte da burguesia pode ter tido relação
no apoio a esse suposto “amplo movimento de massas”.
O historiador também
endossa a interpretação de seus colegas, ao afirmar que, desde a campanha pela
posse de João Goulart à presidência, os “movimentos e lideranças partidárias
das reformas” teriam “evoluído, progressivamente, para uma linha ofensiva em que
inclusive se contemplava o recurso à violência revolucionária”. Para Aarão
Reis, o presidente teria resolvido “partir para a ofensiva”, dispondo-se “a
liderar um conjunto de grandes comícios para aumentar a pressão pelas
reformas”.
Como destacado antes,
essa “ofensiva” de João Goulart e de seus apoiadores nada mais era do que a
convocação de uma constituinte, ou seja, a revisão do aparato legal burguês
pelas próprias instituições burguesas. Fazia parte dessas ações tão “radicais”
de João Goulart “ratificar a legislação sobre a regulamentação da remessa de
lucros, já aprovada no Congresso” e “estabelecer o monopólio da importação do
petróleo”. Certamente medidas tão “radicais” deixavam o capitalismo com os
dias contados…
Incorporando elementos
revisionistas em sua análise, Daniel Aarão Reis faz críticas abertamente à
esquerda, pois esta teria assumido durante a transição da ditadura, segundo sua
interpretação, um discurso democrático e passado a negar a perspectiva revolucionária
que supostamente teria tido no passado. Nesse processo, segundo afirma
ironicamente Daniel Aarão Reis, “a sociedade brasileira pôde repudiar a
ditadura, reincorporando sua margem esquerda e confortando-se na ideia de que
suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”.
Nem mesmo o marxismo
acadêmico escapou dessa forma de revisionismo. O filósofo Leandro Konder
afirmou que “o golpismo, entranhado nos costumes e na cultura política da
sociedade brasileira, se manifestava também no campo da
esquerda”. Concordando com o revisionismo conservador, Leandro Konder
conclui que “a reação contra o golpismo do campo da esquerda resultou no golpe
da direita”.
Essas interpretações
se mostram completamente falsas, afinal a defesa da democracia burguesa era
majoritária na esquerda em 1964. Com raras exceções, quase todas as
organizações defendiam variantes da chamada “revolução por etapas”, apostando
na manutenção da ordem capitalista. O PCB, antes do golpe, afirmava: “O povo
brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a
acumulação, gradual, mas incessante, de reformas profundas e consequentes na
estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando até a realização
completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio
desenvolvimento econômico e social da nação”.
Como consequência
dessa avaliação, o partido defendida, poucos anos antes do golpe, a “luta por
soluções positivas e imediatas para os problemas do povo e a luta pela formação
de um governo nacionalista e democrático”. Poucos dias antes do golpe, em
março de 1964, o partido ainda defendia “a unidade de todos os patriotas e
democratas, a unificação de toas as forças interessadas no progresso do
Brasil”.
Portanto, não é
possível afirmar de forma alguma que o PCB tinha, antes do golpe, qualquer
perspectiva de subversão da ordem capitalista. Pelo contrário, suas
perspectivas não estavam voltadas para a ruptura com o capitalismo. Mesmo
depois do golpe, os elementos dessa política do partido não mudaram,
continuando a defender, durante a ditadura, a perspectiva de transformações por
dentro da ordem capitalista: “A burguesia nacional participa da frente
antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada. Outros setores das
classes dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo
ditatorial, podem participar de ações contra o regime e ser úteis à ativação e
fortalecimento da frente antiditatorial”.
Mesmo entre as
organizações defensoras da luta armada a perspectiva estratégica não era
diferente. Entre outros, Marighela, mesmo depois de deixar o PCB, defendia a
estratégia de unidade com a burguesia, defendendo, em 1966, “[…] a necessidade
de nossa aliança com a burguesia nacional, levando em conta não somente tudo o
que dela nos aproxima, quando se trata de objetivos comuns na defesa de
interesses nacionais, mas também tudo o que dela nos separa em questões de
classe, tática, métodos, ideologia e programa”.
Em junho do mesmo ano,
o PCdoB, que pouco depois organizou a Guerrilha do Araguaia, afirmava na mesma
perspectiva de colaboração com a burguesia: “Está colocada na ordem do dia a
necessidade de organizar a mais ampla união patriótica que, sob o lema da independência,
progresso e liberdade, possa aglutinar em um impetuoso movimento nacional as
forças populares e as correntes democráticas”.
Portanto, ainda que
falassem em revolução ou em socialismo, a luta do PCB e das organizações
oriundas desse partido passava necessariamente por desenvolver o capitalismo e
as instituições e, talvez, somente numa sociedade futura, chegar ao socialismo.
Por outro lado, para o
pacifismo genérico, que dá a base da perspectiva teórica dos historiadores
revisionistas, para os quais qualquer forma de violência seria “golpista” ou
“revolucionária”, o uso do método da luta armada seria algo “radical”. Mas, qualquer
análise dos documentos da maior parte das organizações da luta armada mostra
que, ao se isolarem da ação das massas trabalhadoras organizadas, esses grupos
se mostravam impotentes diante da ditadura. Além disso, seu programa também era
uma variante da “revolução por etapas”.
Para uma análise
adequada, cabe colocar em seu contexto o golpe de 1964. No período anterior ao
golpe, observa-se o embate entre setores burgueses em torno de perspectivas
distintas em torno da relação com o imperialismo. João Goulart e seu partido, o
PTB, a despeito de todas as suas ambiguidades e dos limites políticos do
trabalhismo e de seus aliados, como os comunistas, defendiam a perspectiva de
um desenvolvimento capitalista autônomo em relação ao imperialismo. Outros
segmentos, por sua vez, colocavam no horizonte a perspectiva do aprofundamento
da relação com o imperialismo.
Essa tensão não se
dava apenas nas esferas das disputas institucionais, mas também no interior da
sociedade. Por um lado, setores da burguesia se viam preocupados com a
possibilidade de nacionalização de suas empresas ou mesmo a aplicação de
políticas que poderiam criar empecilhos em sua relação com parceiros
financeiros comerciais e financeiros estrangeiros. Por outro, os trabalhadores
viam nas limitadas reformas propostas pelo governo – urbana, bancária,
universitária, entre outras – a possibilidade de melhoria de suas condições de
vida.
Portanto, para além
das diferenças de interesses entre segmentos da burguesia, a luta de classes se
colocava de forma explícita, tendo episódios de enfrentamento aberto, como a
greve geral de 1962 ou, de forma indireta, a Campanha da Legalidade em defesa
da posse de João Goulart, em 1961.
Portanto, diferente
das décadas anteriores, em que Getúlio Vargas conseguiu exercer um papel
bonapartistas, se colocando acima das classes, João Goulart não o conseguiu. Os
militares, com o golpe de 1964, assumiram esse papel bonapartista, buscando
acabar com o processo de polarização, ou seja, esmagar as mobilizações dos
trabalhadores no sentido da aplicação do projeto da burguesia.
Perseguindo e
desmantelando as organizações de esquerda, os militares, representando os
interesses da burguesia mais afinada com o imperialismo, levaram a cabo um
projeto de estruturação do Estado, aplicando inclusive versões deturpadas das
reformas de base, como as mudanças na CLT em 1966 e a reforma universitária em
1968. Essas medidas, ao mesmo tempo em que aprofundaram o processo de
industrialização e de urbanização do Brasil, foram responsáveis pela ampliação
das desigualdades e da concentração de renda e pelo atrelamento de forma ainda
mais profunda da burguesia nativa aos interesses do imperialismo.
As interpretações
revisionistas, ao procurar atribuir à esquerda um papel revolucionário que ela
majoritariamente não tinha no contexto do golpe e mesmo da ditadura, ignoram o
fato de que havia um processo anterior ao golpe da burguesia em tentar barrar ao
máximo a conquista de direitos dos trabalhadores ou de garantir o avanço de
suas mobilizações. Neste caso, a própria CLT, ao controlar os sindicatos, foi
uma peça central na tentativa de controlar as ações das organizações dos
trabalhadores. Outro aspecto passava pelo fato de o PCB, principal organização
dos trabalhadores no período, estar na ilegalidade. E, ainda, cabe destacar os
golpes ou tentativas de golpe ocorridas nos períodos anteriores, como as
tensões envolvendo a eleição de 1956.
Portanto, o que se tem
como fato é que houve tentativas de bloquear as ações dos trabalhadores e de
suas organizações, no sentido de manter a estabilidade social e política nas
décadas anteriores. Nesse processo, o operariado, que se consolidou enquanto classe,
não poderia reivindicar mais do que as migalhas que a industrialização em
processo garantia como direitos.
Portanto, ao ver os
trabalhadores organizados e mobilizados ou mesmo as organizações voltando a ter
um esboço de vida pública, a burguesia se percebeu acuada e trouxe para a
retórica das disputas políticas o fantasma do anticomunismo. Contudo, não
estava no horizonte das esquerdas qualquer subversão da ordem, mas o
desenvolvimento econômico e a ampliação de direitos dentro da ordem
capitalista.
Naquele contexto, se
essas direções que frearam as mobilizações fossem superadas pelas próprias
massas, poderia se abrir uma situação revolucionária, que colocaria em risco a
ordem burguesa, mas, a despeito das ações dos trabalhadores, suas direções não iam
para além do programa das “reformas de base”. Esse elemento mostra que, apesar
de ter derrubado João Goulart, em última instância, o golpe foi travado contra
os trabalhadores e seu potencial de mobilização, caso as direções reformistas
não conseguissem controlar as mobilizações em curso.
Em sua correta
análise, os trotskistas afirmavam, ainda durante a ditadura: “A burguesia,
apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizou antes de 1964,
escapando das mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para promover
contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as
massas”. Nesse sentido, coerente com fatos e sem distorcer as posições
defendidas pela esquerda no contexto de 1964, pode-se afirmar: “Na visão dos
protagonistas do golpe, a crescente mobilização política e o avanço da
consciência ideológica dos setores populares e dos trabalhadores, que se
acentuava na conjuntura, poderiam implicar o questionamento do sistema político
e da ordem econômico e social que, a rigor, deveriam permanecer sob o estrito controle
e domínio das classes possuidoras e proprietárias”.
Com isso, fica claro
quem foi o responsável pelo golpe e qual foi o papel das principais
organizações da esquerda. As interpretações revisionistas, que acabam por
ganhar grande influência na historiografia acadêmica, e que escondem o papel
bonapartista dos militares, não permitem compreender a permanência dos
elementos de repressão que ainda persistem no ordenamento constitucional
construído na nova República.
Além disso, apontam
para uma narrativa de defesa da democracia, que teria sido atacada tanto pelos
militares, como pela esquerda, o que leva a acreditar que salvadores democratas
entre civis e militares teriam cumprido um papel no retorno da democracia. Essa
é a narrativa que garante a manutenção da ordem capitalista e a defesa das
instituições burguesas no presente.
Fonte: A Terra é
Redonda
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