Memórias de 64: o capítulo do genocídio
indígena
“Não é exagero dizer
que nós estamos em um genocídio em curso”. A declaração, dada em julho de 2020,
é de Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB). De fato, 2020 recolocou nas manchetes e no debate público a expressão
‘genocídio indígena’. O termo apareceu no relatório que a Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto Socioambiental (ISA) realizaram, com
revisão da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apontando que os Yanomami,
ameaçados pelo garimpo ilegal e pela covid-19, correm um “risco de genocídio
com a cumplicidade do Estado brasileiro”.
Elevando o tom, a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 que a APIB
apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 1º de julho, apontou que a
irresponsabilidade sanitária se aliou ao racismo institucional contra os povos
indígenas, denunciando, não um risco, mas um fato: “está em curso um
genocídio”!
As denúncias não se
limitam ao descaso na prevenção e controle da covid-19 entre os
indígenas. Em novembro do ano passado, o Coletivo de Advocacia em Direitos
Humanos e a Comissão Arns apresentaram informe ao Tribunal Penal Internacional
(TPI), acusando o presidente Jair Bolsonaro de “crimes contra a humanidade” e
“incitação ao genocídio contra os povos indígenas do Brasil”, incluindo na
denúncia a redução da fiscalização e omissão no que diz respeito aos crimes
ambientais na Amazônia. A resposta veio pelo vice-presidente Hamilton Mourão,
que classificou a denúncia como um absurdo: “genocídio fez Hitler com os
judeus, os turcos com os armênios, fez Ruanda nos anos 1990, fez o Stalin na
União Soviética”.
·
Mas, afinal, o que é genocídio?
O conceito de
genocídio foi cunhado pelo jurista polonês Raphael Lemkin (1900-1959), que
publicou, em 1944, o livro Axis Rule in Occupied Europe (O
regime do Eixo na Europa ocupada), no qual o genocídio é
apresentado como uma técnica da ocupação nazista. O termo é definido como um
plano coordenado visando à destruição dos alicerces essenciais dos grupos
nacionais ou étnicos, para aniquilá-los física e/ou culturalmente. Ou seja, a
um genocídio físico ele associava um genocídio cultural – tendo sido o precursor
do conceito de etnocídio, que seria melhor definido em 1970 pelo antropólogo
francês Robert Jaulin (1928-1996).
Para a conceituação de
Lemkin sobre o genocídio, foi importante a reflexão sobre o colonialismo nas
Américas, ou seja, o extermínio físico e cultural dos povos indígenas está
associado à própria gênese do termo.
Após o fim da Segunda
Guerra Mundial, a concepção de genocídio de Lemkin foi parcialmente incorporada
à Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, elaborada pela
Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948 – perdendo-se, entretanto, a
dimensão do genocídio cultural. O genocídio é definido como “atos, cometidos
com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso”, nas seguintes ações: “(a) assassinato de membros do
grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c)
submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a
destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; (e) transferência forçada de menores do grupo
para outro grupo”.
O Brasil aprovou o
texto da convenção em 1951, promulgando-o em 1952, e essa mesma definição foi
estabelecida no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998.
·
Limitações do conceito
As definições
presentes na Convenção de 1948 apresentam algumas limitações, além da exclusão
do genocídio cultural. Uma delas é que apenas pessoas físicas respondem pelo
crime de genocídio, não Estados, pessoalizando um processo essencialmente
coletivo. Além disso, a exigência de intencionalidade para a condenação por
esse crime traz vários questionamentos.
Quando a exploração
econômica leva ao contato forçado com um grupo indígena, ocasionando mortes por
conflitos ou contaminação, pode-se alegar que não houve intenção de destruição
do grupo, mas tampouco houve cuidado para impedi-la, assumindo-se o seu risco.
Tal concepção também limita que agentes públicos sejam acusados de genocídio
por omissão ou conivência.
Outra limitação não
vem propriamente do conteúdo legal do paradigma estabelecido em 1948, mas de
como as gerações o entenderam. Como afirma o subprocurador-geral da República
Carlos Frederico Santos, em seu livro Genocídio indígena no Brasil, uma
mudança de paradigma, de 2017, a associação do genocídio ao
nazismo/Holocausto vinculou o seu conteúdo a mortes em massa, ação de Estado e
motivação ideológica. Isso restringe em particular o entendimento dos casos de
genocídio indígena, quando não há mortes em massa (as vítimas constituindo
número ‘relativamente pequeno’), quando o extermínio não se origina no aparelho
do Estado ou quando a motivação principal não é ideológica, mas econômica, por
exemplo.
·
Denúncias durante a ditadura militar
Em entrevista de
fevereiro de 1970, o então ministro do Interior José Costa Cavalcanti
(1918-1991) declarou: “recuso formalmente a acusação de que o governo ou o povo
brasileiro tenham em qualquer época praticado o genocídio contra os nossos
índios”. Entretanto, eram fartas as denúncias nacionais e internacionais de
genocídio indígena durante a ditadura, relacionando-o à construção de estradas,
como a Transamazônica, e à associação do regime com grandes empreendimentos
mineradores, agropecuários e madeireiros. Ameaçava-se não apenas a existência
material de milhares de indígenas, mas a preservação de suas formas
tradicionais de vida.
O padre Antônio Iasi
(1920-2015), vinculado ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na CPI do
Índio de 1977, acusou de genocídio contra o povo Nambiquara a Fazenda Vale do
Guaporé, no Mato Grosso. Ações de agropecuárias, no Vale do Guaporé, envolviam
queimadas e utilização do herbicida Tordon (agente laranja), devastando o meio
ambiente e colocando em risco a própria vida dos indígenas. Em 1970, já havia
surgido um termo que qualifica esses tipos de ação, em um contexto que envolvia
também o uso do Tordon: ecocídio.
·
Ecocídio
Segundo o advogado
Flávio de Leão Pereira, no artigo ‘Desenvolvimentismo e ecocídio’, de 2018,
esse termo passou a ser usado por acadêmicos a partir de 1970, em referência à
guerra herbicida dos Estados Unidos no Vietnã, aliando à destruição ambiental
“uma possível catástrofe para a saúde”. O conceito abarca da destruição de um
ecossistema decorrente da ação humana às suas consequências para os povos que
habitam esse território, desenvolvendo com ele relações de subsistência,
identidade e pertencimento cultural.
Dos anos 1970 aos
1990, discutiu-se o estabelecimento do ecocídio enquanto crime internacional no
âmbito da ONU, inclusive a sua incorporação ao Estatuto de Roma. Uma das
questões polêmicas que emergiram girava justamente em torno da
intencionalidade, já que muitos defendiam que o ecocídio poderia ser
decorrente, não de uma ação intencional, mas da exploração econômica. A
despeito das tentativas, o crime acabou não sendo tipificado até hoje, mas
ainda existem muitas iniciativas no sentido de corrigir isso, em grande medida
porque, como lembra Flávio de Leão Pereira, o ecocídio é uma dimensão
fundamental do genocídio e etnocídio indígenas.
Essa associação já era
evidente nos anos 1970. A política do governo militar para a Amazônia a
concebia como área estratégica para a segurança e o desenvolvimento nacional,
daí os inúmeros projetos de colonização e exploração econômica da região, e
lemas como “integrar para não entregar”. Os números da destruição podem ser
conjecturados a partir dos primeiros dados anuais de desmatamento do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1988, quando estimou-se devastação
de assustadores 21 mil km², como lembra o jornalista Rubens Valente em coluna de
setembro deste ano no portal UOL.
A extensão do
extermínio de indígenas associado ao desenvolvimentismo predatório é dificílima
de avaliar. O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma ser possível
estimar ao menos 8.350 indígenas mortos com responsabilidade do Estado entre
1946 e 1988, além de muitos outros casos em que a quantidade de mortos é alta o
bastante para desencorajar estimativas.
Depois da
redemocratização, os números do desmatamento caíram significativamente, mas a
ação do Estado continuou ameaçando o meio ambiente e a sobrevivência física e
simbólica dos povos indígenas. Exemplo disso é a construção da hidrelétrica de
Belo Monte, no Pará, iniciada pelo ex-presidente Lula e inaugurada no governo
Dilma Rousseff. Seu legado de impactos ambientais, sociais e culturais para
ribeirinhos e nove povos indígenas motivou o Ministério Público Federal a
qualificar, em ação de 2015, a atuação do Estado brasileiro e da Norte Energia
S/A como “ação etnocida”.
·
Passando a boiada
De acordo com o Inpe,
o Pantanal teve em 2020 o pior outubro da história, com 2.825 focos de fogo,
enquanto a Amazônia ultrapassou, entre janeiro e outubro, os números de todo o
ano de 2019, registrando 89.604 focos. Já o desmatamento nesse bioma aumentou
34% entre agosto de 2018 e julho de 2019, e mais 9,5% no mesmo intervalo entre
2019 e 2020, alcançando a maior área devastada desde 2008: 11.088 km².
As consequências para
os povos indígenas são evidentes. Segundo o sítio Repórter Brasil,
cerca de 60% das terras indígenas já foram atingidas por mais de 115 mil focos
de incêndio até 29 de outubro deste ano. Watatakalu Yawalapiti, do Parque do
Xingu, alertou: “perdemos muitas lideranças, nosso povo tá morrendo [de
covid-19] e, para piorar a situação, nossa casa, que é nossa farmácia e nosso
supermercado, está pegando fogo”.
Há muitas evidências
associando as queimadas à abertura de pastos. Enquanto isso, o governo vem
promovendo um desmonte ambiental, com Ricardo Salles à frente do Ministério do
Meio Ambiente, que paralisou o Fundo Amazônia, reduziu a aplicação de multas, não
executou todo o orçamento para fiscalização e prevenção a incêndios e exonerou,
ou substituiu por militares, servidores experientes do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Assim, apesar de
Salles ter proposto, em reunião interministerial de abril deste ano, aproveitar
a pandemia para “passar a boiada” (flexibilizando regras ambientais), ela já o
estava fazendo. Esse cenário de ecocídio está associado à principal dimensão do
genocídio indígena: as invasões de terras. Segundo relatório do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), com dados de 2019, as invasões às terras
indígenas aumentaram 134% entre 2018 e 2019.
Atualmente, tramitam
vários projetos visando à exploração de terras indígenas, como o PL 191/2020,
do próprio presidente, que propõe regulamentar a mineração e construção de
hidrelétricas nesses territórios. Entretanto, talvez a principal ameaça aos
direitos territoriais dos índios seja a tese jurídica do ‘Marco temporal’, que
entende que esses povos só possuem direito à demarcação das terras que
estivessem ocupando na data da promulgação da Constituição de 1988. Se o
judiciário aceitar essa tese, serão negligenciados toda a violência e os
processos de desterritorialização que os povos indígenas sofreram ao longo de
séculos, notadamente durante a ditadura militar, bem como o direito originário
ao território, reconhecido pela mesma Constituição.
·
Progresso para quem?
O Estado brasileiro é,
historicamente, genocida na sua relação com os povos indígenas, processo
inextrincável de uma ação ecocida. Se as limitações jurídicas do termo
genocídio e sua associação ao Holocausto muitas vezes inibem essa constatação,
é importante deixar evidente que, para além de termo jurídico, genocídio é um
conceito histórico e sociológico, que analisa processos de longa duração e
transborda acusações sobre indivíduos específicos. É inegável que esse Estado
promove, pela ação direta ou pela conivência e omissão, a destruição física e
cultural dos povos indígenas, em uma associação direta com a exploração
econômica e fundiária.
O líder indígena
Ailton Krenak, em entrevista ao antropólogo Pedro Cesarino em 2016, afirmou que
o “branco” (não índio) quer imprimir sua marca sobre tudo, criando uma única
paisagem: “Ora, se virar única, então não é paisagem. A natureza da paisagem é
a pluralidade, a diversidade, é a sucessão. […] Quando nós acabamos com todas
as paisagens da terra, nós entramos em coma”.
Com uma vida não
predatória ao meio ambiente, os povos originários são fundamentais na
preservação da biodiversidade e do equilíbrio climático do planeta. Na
Amazônia, por exemplo, o desmatamento em terras indígenas demarcadas é 66%
menor em comparação às áreas não demarcadas, como mostra estudo recente
publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
O binômio
genocídio-ecocídio empreendido pelo Estado brasileiro é decorrente justamente
da sua incapacidade de aceitar a pluralidade, de conviver com corpos e
paisagens que não existem para produzir em seu nome. Em 1976, o então ministro
do Interior Maurício Rangel Reis (1922-1986) afirmou que “os índios não podem
impedir a passagem do progresso”. No ano passado, o presidente Jair Bolsonaro
declarou que o Cimi “incita os índios contra o progresso”.
Mas esse progresso,
construído sobre a destruição de paisagens e corpos, é progresso para quem? À
custa de quanto sangue indígena mais? Quanto tempo até, finalmente, nos darmos
conta da iminência do coma?
# Artigo
publicado originalmente em dezembro de 2020
Fonte: Por João
Gabriel da Silva Ascenso e Rayane Barreto de Araújo, na Ciência Hoje
Nenhum comentário:
Postar um comentário