Fabrício Maciel: No Capitalismo Indigno,
raiz da extrema-direita
O cenário global atual
conforma um daqueles momentos da história no qual nos sentimos sem rotas de
fuga evidentes e com a sensação de estarmos vivendo em uma era de transição, na
qual o passado ainda não sucumbiu totalmente e o futuro ainda não se mostrou.
Em tais momentos, recorrer ao passado histórico e às pistas que a teoria social
nos apresenta pode ser um caminho seguro, de modo a não ficarmos presos às
ilusões do presente, do qual muitas vezes não conseguimos ter distanciamento
afetivo e cognitivo. Para tanto, é preciso identificar as questões e
consequentemente as discussões mais urgentes de nosso tempo, dentre as quais a
que me parece mais importante é a ascensão da extrema direita em escala global nos últimos anos.
Ao revisitar
criticamente as principais transformações estruturais do capitalismo
global, desde a década de 1970, vemos que a ascensão da
extrema-direita não se compreende simplesmente através dos debates de
“conjuntura”, como tem sido feito atualmente. Com isso, tal fenômeno, tanto nos
países centrais quanto nos periféricos, só pode ser compreendido profundamente
se reconstruirmos as suas origens ao longo da “grande transformação” sofrida
pelo capitalismo global nas últimas cinco décadas. Este é o cenário histórico
que procurarei reconstruir aqui a partir do conceito de “capitalismo indigno”.
Como indigno, percebo
a forma de capitalismo que se estruturou no mundo, desde os anos de 1970, tendo
como característica principal a naturalização, em escala global, do desvalor da
vida humana como um todo, e especialmente da vida daqueles mais necessitados,
os “sobrantes” (Robert Castel), ou seja, uma “ralé global”[1]. Este é o
principal produto do capitalismo indigno em escala global, que tem como marco
inicial central o fracasso do welfare state em
países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha[2]. A
naturalização do desvalor dos mais pobres e necessitados, ou seja, aqueles que
“sobraram” ou que nunca conseguiram se inserir no sistema do trabalho digno e
produtivo, sempre foi um marco nos países periféricos, como mostrou Jessé Souza (2009), por
exemplo, no caso brasileiro.
Atualmente, o desvalor
da vida humana nas classes populares, o que já ameaça as camadas mais baixas da
classe média, também afeta os países centrais, como uma ferrugem que corrói o
sistema por dentro, deixando claro que o capitalismo jamais promoverá justiça social, explicitando assim sua lógica intrínseca e inevitável. Este
novo cenário global é o que eu estou provocativamente chamando de capitalismo
indigno, ou seja, um sistema global cuja marca central é a generalização,
institucionalização e naturalização da indignidade da vida sofrida das classes
populares, cuja realidade consiste em vagar entre o não emprego sistemático e a
realização de ocupações indignas. Outro traço central deste novo sistema é a
indignidade das relações entre as classes, inclusive nos países centrais,
marcadas pelo desrespeito e a intolerância, típicos de contextos nos quais
predominam a radicalização da desigualdade socioeconômica[3].
Neste contexto, a
sociologia do trabalho normalmente recorre ao conceito de trabalho precário
para tematizar as condições de trabalho produzidas pelo capitalismo atual. Ainda que tenha provocado e servido de base para um grande
número de importantes pesquisas empíricas, o conceito de trabalho precário
apenas descreve situações de trabalho que são obviamente ruins. Em
contrapartida, proponho a ideia de trabalho indigno, (Maciel, 2021) para
pensar o tipo de trabalho realizado pela ralé brasileira e global, o que é
essencialmente igual tanto no centro quanto na periferia. Neste contexto, o
conceito de trabalho indigno nos permite tematizar o sofrimento e a
humilhação social, ou seja, a dimensão moral da condição de subocupado ou
simplesmente de desempregado estrutural.
A dignidade da pessoa
humana é um dos princípios centrais de nossa hierarquia moral de valores no
Ocidente, o que pode ser visto no ditado que diz que “todo trabalho é digno”,
mas que apenas obscurece a realidade de descartabilidade e inutilidade vivida por
milhões de pessoas no mundo hoje. Esta realidade, que sempre foi a marca
central de países periféricos como o Brasil, agora corrói também o seu centro,
lançando todo o sistema global em uma condição indigna, estruturada pelo
capitalismo indigno, o que pôde ser visto com toda a nitidez nos piores
momentos da pandemia.
·
A ausência do estado de bem-estar como base
para a extrema-direita
Diante disso, farei
uma análise em dois movimentos, que precisam ser articulados, de modo a
compreendermos como o capitalismo indigno proporcionou a ascensão da extrema-direita,
tanto no Brasil como em outras realidades nacionais. Primeiro, é preciso
compreender o grande ciclo deste capitalismo em escala global, a partir da
década de 1970. Uma de suas características centrais é seu refluxo dos vetores
econômicos, fazendo com que agora os países centrais também sintam o gosto
amargo de algumas das principais realizações negativas do sistema, relegadas
sempre à sua periferia. É isso que vai explicar, por exemplo, o fortalecimento da extrema direita em países como França e Alemanha[4].
No caso da última, a
obra de Klaus Dörre permite compreender a adesão da classe
trabalhadora à extrema-direita no cenário recente. Para tanto, o
autor vai usar a metáfora da “fila da espera”, recorrendo à obra de Arlie Hochschild, de modo
a tematizar o aumento da precariedade e da consequente angústia social na
Alemanha nos últimos anos, o que conforma um contexto propício para a adesão
a sentimentos autoritários. Neste sentido, o autor percebe uma profunda
conexão entre racismo, populismo e a
questão do trabalho (Dörre, 2018). Ademais, as motivações que levam boa parte
da classe trabalhadora ao encontro de sentimentos autoritários foram tema de
pesquisa do autor por vários anos. Dentre elas, o medo diante da situação de
instabilidade crescente se encontra entre os principais aspectos.
Na mesma direção,
encontra-se a análise de Arlie Hochschild sobre
o caso dos Estados Unidos. Neste sentido, a autora realizou uma pesquisa no
interior de alguns dos estados mais conservadores do país, de modo a
compreender como o coração de pessoas comuns foi seduzido pelo movimento que
levou à eleição de Donald Trump (Horschild, 2018). A autora tematizou
esta complexa situação com a metáfora do “estranho em seu próprio país”, se
referindo ao sentimento do cidadão americano mediano diante do estrangeiro, que
no atual contexto é visto como aquele que vem para “roubar” os empregos. Não
por acaso, a apropriação de Trump do slogan de Ronald Reagan “Make American
great again” vai fazer bastante sucesso nesta direção.
Outra importante
análise no contexto alemão foi feita por Wilhelm Heitmeyer. Para o autor,
presenciamos agora um novo tipo de radicalismo de direita. Este
caracteriza-se como um novo radicalismo nacional autoritário, representado
pelo AfD e com articulação em movimentos como o PEGIDA e alguns
milieus intelectuais. Trata-se ainda de um populismo de direita difuso,
mobilizando instrumentalmente a contradição entre “elite” e “povo”, e
posicionando-se como se falasse “pelo povo”. Neste sentido, este novo tipo
de populismo, para o autor, apresenta três características centrais.
Primeiro, o “autoritário” se torna o paradigma de controle contra a política e
a sociedade. Segundo, o “nacional” passa a acentuar a posição excepcional do
povo alemão e de sua identidade. Por fim, o “radical” passa a ser celebrado
como o estilo de mobilização por excelência, ultrapassando todas as fronteiras
emocionais, éticas e morais.
Ademais, para o autor,
presenciamos atualmente a ascensão de um capitalismo autoritário e de uma perda
de controle múltipla, o que é decisivo para a compreensão do fortalecimento
da extrema-direita. Com isso, ele percebe o ressurgimento do radicalismo
nacional autoritário não apenas como um problema relacionado a erros de
desenvolvimento do sistema político das democracias liberais, mas sim como uma
mudança de relações entre processos econômicos, sociais e políticos, os quais
conformam a “ambivalência da modernidade” (Bauman) e as velozes transformações em curso
na globalização[5].
Assim, a política
nacional vai sofrer a perda de controle, diante da vitória do controle
do capitalismo autoritário, por exemplo, com a política de desregulação,
produzida pelo próprio sistema político. Além disso, a perda de controle social
e individual de vários cidadãos será percebida por estes como perda de controle
político, o que vai levar à perda de confiança nos partidos políticos
estabelecidos e até mesmo na democracia como um todo. Algo bastante
semelhante pode ser visto no caso brasileiro. No geral, o que estes autores
estão mostrando é o triunfo do capitalismo indigno, pavimentando o caminho
para a ascensão de sentimentos, articulações e políticas de extrema-direita no
cenário atual.
Por outro lado, é
preciso compreender que os ciclos do capitalismo periférico não necessariamente
acompanham os ciclos do centro. Neste sentido, é preciso tematizar o que
aconteceu no Brasil recente, ou seja, como o capitalismo indigno possui um
ciclo específico recente entre nós e como ele nos trouxe a um contexto
autoritário, que reflete em grande medida o cenário global. Na década de 1960,
quando o capitalismo “social” começa a mostrar sua verdadeira face no
Atlântico Norte, expondo os limites do estado de bem-estar e sofrendo várias
críticas sociais e estéticas (Boltanski & Chiapello, 2009), o Brasil sofreu
um golpe militar, no contexto da guerra-fria, sob o pretexto de “garantir a
ordem”.
Na década de 1980,
como consequência da crise estrutural do capitalismo na década anterior, os governos Reagan e Thatcher
inauguram seu neoliberalismo perverso e
anti-social, o que se reflete nas dificuldades com a inflação que marcam nossa
“década perdida”. Na década de 1990, com
o neoliberalismo estabelecido enquanto modelo político inquestionável
do Ocidente, verdadeira face do capitalismo indigno, o Brasil curiosamente
inicia um ciclo ambíguo que marca nossa nova dependência já no governo de Fernando Henrique Cardoso,
inesquecível por suas privatizações e integrando por baixo o país na nova ordem
global. Apesar de neoliberal, nossa década de 1990 pavimenta parcialmente
o caminho para a era do lulismo.
Assim, se quisermos
compreender o que de fato aconteceu no Brasil recente precisamos romper com as
ilusões da conjuntura e fazer uma reconstrução estrutural de ordem maior. Neste
sentido, é preciso ir além da novelização da política na qual fomos imersos, ou
seja, tematizar as verdadeiras razões obscuras do capitalismo indigno, que
estão sendo sistematicamente escondidas pela grande mídia, cuja especialização
maior atualmente é o foco na teatralização do campo político.
Diante deste complexo
cenário, é preciso compreender o que aconteceu no Brasil durante os anos do lulismo. Estes podem ser entendidos como um esboço de welfare state
entre nós, apesar de toda as limitações estruturais impostas pelo capitalismo
indigno a países periféricos e dependentes.6 Neste sentido, é preciso escapar
de leituras apressadas que têm sido feitas no Brasil atual, de modo a culpabilizar
a esquerda e seus erros na conjuntura anterior, como se isso explicasse o aumento de nossa desigualdade e
violência recente. Com isso, o antipetismo se tornou um dos principais
paradigmas analíticos da política contemporânea durante o governo Bolsonaro,
fundamentado muito mais no discurso da grande mídia do que em pesquisas
acadêmicas especializadas.
Se não quisermos
reproduzir este argumento superficial, precisamos compreender a ação efetiva e
obscura do capitalismo indigno entre nós. São as suas transformações
estruturais profundas que se encontram por trás do golpe de 2016 [7], que
abortou nosso ensaio de bem-estar social e colocou no poder um governo de
legitimidade questionável, pavimentando o caminho para uma série de reformas anti-sociais que romperam nosso pacto social.[8] Apesar de um movimento crescente no Brasil, na conjuntura
anterior, no sentido de minimizar os efeitos do capitalismo indigno, as
forças externas que refletem o fracasso do sistema em escala global,
especialmente a partir da crise de 2008, sempre estiveram presentes nas
decisões dos assuntos nacionais.
No movimento que
inaugura a complexa conjuntura atual, boa parte da elite brasileira, em
consonância com o movimento global do capitalismo indigno, reproduziu o
discurso seletivo da corrupção, bem como a linguagem política
do anti-petismo, dominante no Brasil dos últimos 20 anos, e com isso
apostou na eleição de Jair Bolsonaro em
2018. Não por acaso, o discurso do expresidente é ultra meritocrático, legitimando toda a ação neoliberal devastadora do
capitalismo em países periféricos como o Brasil. Também não é casual
que Lula tenha vencido a última eleição para presidente, confirmando
que sua imagem enquanto líder popular e sua conexão afetiva com grande parte
das classes populares no Brasil conseguiu sobreviver ao golpe de Estado sofrido por seu partido em 2016 e à sua controversa prisão, em 2018, quando ele liderava as
intenções de voto, o que deixou o espaço livre para a ascensão de
Bolsonaro na reta final. Além disso, boa parte da população brasileira,
incluindo parte da elite, não conseguiu evitar o descontentamento com o governo
Bolsonaro que, além de sua tonalidade explicitamente autoritária, também demonstrou
incompetência na condução do país como um todo. A trágica administração da
pandemia pelo governo, culminando em mais de 600 mil mortes, fato conhecido e
bastante criticado na mídia internacional, é a principal prova empírica desta
afirmação.
·
Conclusão
Como conclusão,
gostaria de propor uma interpretação de como a estruturação do capitalismo
indigno nas dimensões da economia política, da moralidade, da ideologia e da
cultura vai explicar a ascensão da extrema-direita hoje em escala global. Trata-se de uma articulação teórica entre estes quatro níveis,
de modo a contribuir para uma compreensão ampla de como chegamos até aqui.
Desde os anos de 1970 presenciamos a grande transformação do capitalismo
global em todas estas dimensões, o que vai naturalmente intensificar
a desigualdade nos países periféricos, além de iniciar nos países centrais um processo de indignidade
das condições de trabalho e das relações entre as classes aparentemente sem
volta.
Assim, no plano da
economia política, o que presenciamos é o espectro da indignidade em escala
global, o que se conforma como a principal marca do período pós-welfare
state nos países centrais e o aprofundamento da desigualdade estrutural
nos países periféricos. Isto significa uma indignidade ainda conjuntural nos
países centrais e estrutural nos países periféricos. Entretanto, a
naturalização do desvalor da vida humana dos mais necessitados, ou seja, a
produção de uma ralé global, é uma marca do capitalismo indigno como um todo.
Isso é o que Robert Castel (1998)
vai tematizar com as noções de “sobrantes” e “vulnerabilidade” e Richard Sennett (2006) com
o conceito de “descartabilidade”. Esta situação, ainda que conjuntural nos
países centrais, foi suficiente para alimentar os sentimentos de medo, angústia
e insegurança, tanto material quanto ontológica, que levam em grande medida à
simpatia e adesão a movimentos de extrema-direita, como pudemos ver a
partir das obras de Klaus Dörre, Arlie Hochschild e Wilhelm
Heitmeyer.
Além disso, a tese da “sociedade do conhecimento”, de André Gorz (2005), na qual o conhecimento tecnológico se torna uma força
produtiva sem precedentes, pode ser atualizada para a compreensão do capitalismo digital e de plataformas, bem como sua capacidade em aprofundar a indignidade do
trabalho e consequentemente a desigualdade de classe. Neste sentido, a dimensão
tecnológica do capitalismo indigno criou mecanismos ainda mais invisíveis e
impessoais de reprodução da desigualdade do que em períodos anteriores, o que
pode ser visto em toda a sua voracidade na ação de empresas como a Uber e o
I-Food em países como o Brasil, no qual o número
de pessoas vulneráveis que recorrerão a este tipo de trabalho indigno digital,
ou seja, uma nova ralé digital, é bem maior do que nos países centrais.
Na dimensão da
moralidade, como entendida por Axel Honneth (2015), é
preciso compreender aqui a atualização do pano de fundo moral e das interações
éticas em um contexto de indignidade generalizada, o que vai explicar em grande
medida a adesão ao radicalismo de extrema direita. Neste sentido, o que
presenciamos com o trumpismo e o bolsonarismo é o aprofundamento de uma moralidade ultra meritocrática.
Isto significa que, em um contexto econômico no qual a diferença entre
vencedores e perdedores no mercado de trabalho é gigantesca, teremos uma
interação ética indigna entre as classes, o que se reverbera no aumento do ódio, da intolerância, da violência e do medo. Não por acaso, os discursos profundamente meritocráticos
de Trump e Bolsonaro, por exemplo, são uma das principais marcas deste
tipo de moralidade conservadora e intolerante, na qual os vencedores se sentem ameaçados em seus
privilégios, considerados justos, e os perdedores se sentem desamparados,
humilhados, esquecidos, abandonados e revoltados. Nenhum contexto é mais
propício do que este para a adesão aos sentimentos autoritários, por razões
distintas, entre vencedores e derrotados. Neste sentido, a revolta muda dos
derrotados se transforma no sentimento antipolítica e
antissistema que vai levar à adesão e identificação afetiva com os líderes da extrema direita.
No plano da ideologia,
a análise de Boltanski e Chiapello (2009) sobre o terceiro
espírito do capitalismo ainda se apresenta como uma das mais produtivas
para esta discussão. Uma das principais características do terceiro espírito,
para os autores, é exatamente a sua capacidade de neutralizar as críticas
sociais e esconder todas as hierarquias do capitalismo indigno, sugerindo a
existência de um novo capitalismo do bem, políticamente correto,
inclusivo e preocupado com todas as questões sociais relevantes de nosso tempo.
[9] Nada é mais falso e perigoso do que isso. Com isso, o terceiro espírito do
capitalismo precisa ser compreendido como uma ideologia, no sentido de amenizar
e ao mesmo tempo justificar as contradições atuais do sistema, buscando o
engajamento afetivo e prático de seus diferentes atores e classes sociais.
Assim,
a desigualdade atual é vista como algo mutável, desde que as pessoas
sejam flexíveis e procurem se engajar nos projetos oferecidos por
este novo capitalismo, supostamente mais dinâmico e inclusivo do que em
períodos anteriores. Deste modo, o fracasso na realização de projetos pessoais
e a não inclusão no mercado de trabalho passa a ser internalizado mais do que
nunca como culpa dos derrotados, ou seja, a ideologia do novo capitalismo de
projetos esconde exatamente a sua verdadeira face profundamente meritocrática.
Com isso, temos um terreno fértil para a extrema-direita, que vai se
apropriar instrumentalmente da pauta trabalhista, prometendo
ironicamente dignidade, como pode ser visto claramente nos discursos de
Trump, Bolsonaro e Le Pen, dentre outros.
Por fim, no plano da
cultura, encontramos na obra de Richard Sennett (2006) uma
importante análise. O principal aspecto de sua percepção sobre o novo
capitalismo flexível é exatamente o que ele vai chamar de “corrosão do
caráter"[10]. Com isso, o autor procura descrever o tipo humano produzido
e exigido pelo novo capitalismo, o qual precisa ser flexível em todos os
sentidos, não se apegando a nenhum laço duradouro, de modo a poder aproveitar
todas as chances que o mercado oferece. Trata-se nada menos do que um tipo
humano ultra-meritocrático, ou seja, um novo self made man em
sua versão mais acabada, ultra individualista e desapegado de
qualquer laço de lealdade, fidelidade e autoridade. Esta cultura prática do
capitalismo, produzida pelas grandes corporações, vai se espraiar para todas as
esferas da vida social e com isso produzir um novo indivíduo blasé e resignado,
preocupado apenas com a construção de sua trajetória pessoal e indiferente
à indignidade alheia.
O que temos com isso?
Para os vencedores do novo capitalismo flexível e indigno, o sistema oferece a
possibilidade de melhora constante da carreira, realização pessoal, prestígio
e, em uma palavra, felicidade. Esta promessa, entretanto, é quase sempre frustrada,
como podemos ver em trágicas históricas de bilionários e celebridades cuja
falta de sentido existencial coloca em questão todas as metas de autenticidade
prometidas pelo novo capitalismo[11]. Por outro lado, para os derrotados, o
sistema oferece frustração, humilhação, culpa, autopunição e, obviamente,
insegurança material, ou seja, em uma palavra, indignidade. Seria possível
impedir a ascensão da extrema-direita, com todas as suas falsas promessas, seu
cinismo e oportunismo, em um cenário tão trágico como esse? A partir dos
relatos empíricos que temos de vários países do mundo neste exato momento, a
resposta é um trágico não. Este é o mundo da vida real de milhões de pessoas,
produzido pelo capitalismo indigno, traduzido na revolta e indignação que alimenta
a extrema direita.
Fonte: IHU
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