Evangélicos dominam posts de extrema
direita e fake news, revela estudo
Postagens no Brasil
exploram sentimentos de ameaça, medo e desconfiança, enaltecem bolsonarismo e
defendem práticas antidemocráticas. Rede social X (ex-Twitter) é a mais popular
entre os extremistas, mostra pesquisa.
A menos de seis meses
das eleições municipais no Brasil, uma pesquisa inédita mostra que entre os dez
publicadores de extrema direita mais influentes nas redes sociais, oito são
evangélicos. O estudo, que radiografou a movimentação de extremistas ao longo
de três meses, aponta Santa Catarina e São Paulo como os dois principais
centros dessas postagens.
“No universo
acompanhado pela pesquisa, os atores que se autodeclaram evangélicos são os que
mais postam e os que têm maior alcance junto aos seguidores desse espectro
político”, diz Christina Vital, professora do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das coordenadoras da
pesquisa divulgada nesta segunda-feira (22/04), que mapeou perfis e técnicas
usadas pela extrema direita.
Realizado por
pesquisadores da UFF e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) entre
novembro do ano passado e janeiro de 2024, o estudo contou com financiamento da
Fundação Heinrich Böll.
O campo é marcado por
publicações curtas e conteúdos que exploram sentimentos de ameaça, medo e
desconfiança, e pela repetição de palavras negativas e críticas sem propostas
construtivas. “Em muitos casos, as postagens apenas direcionam o leitor para
links que induzem à leitura de outros materiais desse ecossistema”, observa
Vital, que dividiu a coordenação da pesquisa com Michel Gherman, professor do
Programa de Pós-graduação em História da UFRJ.
O estudo investigou
191 “atores sociais” de extrema direita, divididos em quatro grupos: políticos,
influenciadores, blogs ou sites e antidemocráticos. Deste total, 14 eram
mulheres, 111 homens e 66 coletivos – como sites de notícias ou comunidades com
histórico de publicações de apoio à tentativa de golpe de 8 de janeiro ou ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, além de agendas associadas ao extremismo.
Na lista dos oito
perfis com maior engajamento no campo evangélico, aparecem nomes como os do
deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), do senador Flávio Bolsonaro(PL-RJ),
e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro – única mulher a constar no grupo,
segundo a pesquisadora.
Entre as quatro redes
sociais analisadas, o X (antigo Twitter) – cujo dono, Elon Musk, fez ataques
recentes contra o ministro Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes
–, aparece disparado como a mídia mais utilizada pelos perfis extremistas mais
populares, seguido por Instagram, Facebook e YouTube.
• Militares retratados como melancias
No último 8 de
janeiro, aniversário de um ano dos atos golpistas em Brasília, um fluxo febril
de postagens com ataques contra o STF se disseminou desde cedo em perfis de
extrema direita nas redes sociais. Havia também muitas mensagens favoráveis ao
ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Nas postagens, eles
tentavam separar a manifestação do vandalismo, e imputar a desordem ao atual
governo. Para esses influenciadores extremistas, o STF é o verdadeiro inimigo
da democracia. É a chamada ‘retorsão’ do argumento”, explica Vital.
Também no X, uma
postagem do perfil Movimento sem Picanha, chamou especialmente a atenção da
pesquisadora. A publicação dizia que o 8 de janeiro foi o “dia da traição dos
patriotas” e trazia uma imagem das Forças Armadas criada por inteligência
artificial, que retratava seus integrantes como melancias, abaixados no chão e
pintando faixas no asfalto.
“No linguajar do
militarismo, a melancia é associada aos traidores – com o verde por fora,
vinculado ao Exército, e o vermelho por dentro, vinculado à esquerda e ao
comunismo. Seria mais um indício de que um golpe estava sendo armado, mas foi
esvaziado no último minuto pelas Forças Armadas?”, indaga a pesquisadora.
A coleta de dados,
feita com um software de inteligência artificial, alcançou 50 milhões de
pessoas por dia. “Em sua maioria, os atores mais atuantes e com maior alcance
são homens, brancos, influenciadores, políticos e lideranças religiosas”, diz
Vital.
• Evangélicos de extrema direita são
minoria
Para o cientista
político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Joanildo Burity, o resultado
da pesquisa confirma o potencial de mobilização dos evangélicos de extrema
direita no Brasil – apesar de o segmento ser minoritário no país.
Projeções de
institutos de pesquisa indicam que cerca de 30% da população brasileira,
estimada em 230 milhões de habitantes, se identifica como evangélica.
“Em termos numéricos,
o segmento de extrema direita não deve ser maior do que 10% da população
evangélica. Mas é um grupo militante, com muito acesso à mídia, recursos
financeiros e conexões internacionais, o que faz com que tenha uma capacidade
de projeção muito maior do que o seu tamanho”, diz o pesquisador.
Estigmatizada por sua
associação com a ditadura militar, com os skinheads e com grupos pró-nazismo, a
extrema direita não tinha popularidade, nem bases sociais no país, observa
Burity. E foi exatamente isso que a militância religiosa trouxe.
“Os evangélicos deram
uma base social de massas para o movimento de extrema direita. Se você tirar
essa militância religiosa da extrema direita, ela se reduz ao que sempre foi:
grupelhos de intelectuais, de empresários, de militares, muito coesos, mas capazes
de reunir bem pouca gente”.
• Conexões internacionais com Bannon e Tea
Party
Para Burity, essa
projeção dos evangélicos nas redes não é casual. Ela é facilitada pela formação
que eles recebem tradicionalmente nas igrejas para “comandarem a palavra” – o
que traz vantagens do ponto de vista da comunicação pública.
Também é resultado de
um processo deliberado de mobilização política – inclusive internacional.
Apesar de majoritariamente conservadores, do ponto de vista político e moral,
os evangélicos não tinham, até pouco tempo, uma posição de extrema direita,
muito menos militante, diz o pesquisador.
Essa vinculação foi se
construindo: “desde 2017, mais ou menos, começou a haver uma aproximação entre
a família Bolsonaro e o Steve Bannon [ex-estrategista de Donald Trump], nos
EUA. O Bannon resolveu investir em um braço do seu movimento, o seu The Movement,
no Brasil. E o Eduardo Bolsonaro [deputado federal pelo PL-SP] foi o contato.
Eles organizaram eventos, atividades, investiram recursos”.
Além disso, houve uma
intensificação da atuação de think thanks de extrema direita americanos no
Brasil.
“Não foi algo voltado
especificamente para os evangélicos, mas para mobilizar certos segmentos –
sobretudo os mais jovens, nesse campo”.
O pesquisador cita
ainda uma série de articulações entre evangélicos brasileiros e grupos da
extrema direita americana, que envolvem, por exemplo, o Tea Party, ala
ultraconservadora do Partido Republicano, e o grupo Capitol Ministries, ligado
à direita cristã nos Estados Unidos, que chegou a ter acesso direto à Casa
Branca no governo Trump.
O impacto desse
segmento hoje pode ser explicado também pela atuação coordenada de pastores,
políticos, empresários, teólogos e leigos, que começou há cerca de uma década
no Brasil.
“Assim se formou o
discurso de alinhamento desses evangélicos em relação a posições altamente
reacionárias”.
• Ataques contra o “PL das Fake News”
Além da tentativa de
golpe, também ganhou destaque nas postagens de extremistas mapeados pela
pesquisa a descoberta de uma rede internacional de prostituição infantil, que
serviu de pano de fundo para conteúdos que propagavam “a ameaça da perda da
autoridade dos pais sobre os filhos, um tema caro aos evangélicos”, diz Vital.
Viralizaram ainda
postagens sobre o suicídio de Jéssica Canedo, de 22 anos, ocorrido após a
divulgação de fake news sobre um suposto caso amoroso entre a jovem e o
influenciador Whindersson Nunes. A empresa Mynd 8 – que agencia artistas que
apoiaram o presidente Lula em sua campanha – foi apontada como responsável pela
difusão das notícias falsas, e passou a ser citada “como exemplo da
perversidade e da falta de valores da esquerda”, aponta a pesquisadora.
Os extremistas
aproveitaram o caso, diz Vital, para insinuar que a esquerda tem envolvimento
com a disseminação de notícias falsas – tentando, ao mesmo tempo, “atrair
políticos da situação para o bloqueio ao trâmite do chamado PL das Fakes News,
a regulação das big techs criticada pela maioria desses perfis”. Após concluir
as investigações, em março, a Polícia Civil de Minas Gerais disse que a própria
jovem foi a autora das fake news.
Os pesquisadores
identificaram ainda uma frase repetida à exaustão em postagens que atacavam o
STF e, ao mesmo tempo, tentavam blindar o ex-presidente Jair Bolsonaro:
“conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.
“Eles usam essa
passagem bíblica para dizer que os ‘portadores da verdade’ sempre serão
perseguidos, e que é preciso revelar o que estaria oculto – como, por exemplo,
os ‘reais interesses’ por trás da suposta perseguição a Bolsonaro”, diz Vital.
Com isso, qualquer
investigação da Justiça que recaia sobre eles passa a ser vista como uma busca
de “obstrução dessa ‘verdade'”.
• “A extrema direita quer que o campo
evangélico seja um curral”
A mobilização desses
religiosos nas redes não teria, no entanto, relação direta com a queda de
popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva entre os evangélicos
apontada em pesquisas recentes, acredita Burity. Até porque, “muitos aspectos
podem pesar na avaliação de um governo”.
O que existe, diz o
cientista político, é uma reação da extrema direita para neutralizar qualquer
tentativa de Lula e da esquerda de retomada do espaço perdido nesse campo.
Burity lembra que, em 2018, quando foi impedido de ser candidato, Lula ainda
contava com o apoio majoritário dos evangélicos.
“A esquerda não chegou
a recuperar essa maioria, mas conseguiu se reposicionar o suficiente para
diminuir o impacto do bolsonarismo lá dentro. E essa é uma luta que ainda está
sendo travada. A extrema direita quer que o campo evangélico seja um curral completamente
controlado por ela”, afirma o cientista político.
Vital concorda que a
queda na popularidade se deve a múltiplos fatores. Mas observa que Lula
“enfrenta uma enxurrada contínua e crescente de críticas, desinformações e
difamações”, que não estariam sendo rebatidas à altura.
Não são poucos os
especialistas que sinalizam a deficiência na comunicação presidencial com a
população, diz a pesquisadora. “Hoje, não basta somente o carisma no cara a
cara com a população. Ocupar as redes com autenticidade e intimidade é
fundamental. E Lula ainda não captou bem isso”.
Para a professora, o
presidente tem uma visão de mundo “que nega os novos tempos” em favor da
“verdadeira política” – mas esta não é mais feita predominantemente na rua, e
sim “no território digital”.
Os obstáculos nesse
caminho, porém, são grandes. “Lula precisa se atualizar. Mas jamais poderá
falar com a rapidez e a liberdade de um influenciador digital, porque um
governo tem restrições políticas, institucionais e de linguagem, além de
legais”, diz Burity. Essa lacuna, diz ele, terá que ser preenchida pelos
diversos setores da esquerda, incluindo intelectuais, artistas e a sociedade
civil.
• Impacto vai continuar nas eleições
municipais
O impacto dessa
militância digital deve continuar nas próximas eleições municipais. “Lula ainda
não conseguiu desmontar o contexto de polarização no país. E ter
influenciadores com grande poder de penetração nas bases da sociedade é um
trunfo muito importante para a direita”, explica Burity, que prevê uma forte
representação do campo conservador saindo das urnas em novembro.
Mas seria “temerário”
afirmar que esses influenciadores serão a “ponta de lança” na definição das
eleições. “Elas envolvem muitas outras coisas, além de religião e de gente
berrando nas redes sociais”.
Para Marilene de
Paula, coordenadora de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll no Brasil, a
pesquisa enfatiza “o papel central dos influenciadores religiosos nas redes
sociais para propagar a retórica da extrema direita”. Para viabilizar projetos
políticos que possam se contrapor a essa realidade, diz a coordenadora, é
preciso ter “uma compreensão profunda desse fenômeno”.
Fonte: O Cafezinho
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