Eliara Santana: O golpe, ontem e hoje, e o
esquecimento calculado
Para 63% dos
brasileiros, a data do golpe militar de 1964, que implantou uma ditadura
violenta de 21 anos, deve ser esquecida.
Os dados são da
recente pesquisa Datafolha. Não quero discutir aqui a decisão do Governo Lula
de proibir qualquer ato oficial relativo à data.
Entendo que houve
acordos e até entendo a necessidade deles diante da ameaça constante contra a
democracia. Nós não vencemos a guerra. Vencemos uma batalha bem difícil, e
estamos todos estripados, daí os acordos.
Portanto, quero
discutir neste 31 de março de 2024, 60 anos do golpe militar, um tema muito
sensível e que tem despertado minha atenção cada vez mais: o esquecimento
calculado.
“Conceito” que estou
elaborando a partir de um olhar atento para várias questões, o esquecimento
calculado é tanto conveniente quanto programado.
E com essa percepção,
quero discutir também nesta data a falta de memória que marca a vida nacional –
o que revelam os dados da pesquisa.
Somos um país
desmemoriado, não temos uma memória cultivada: esquecemos datas, feitos,
atores, acontecimentos.
E esse esquecimento,
amigos, nada tem de aleatório — a memória, como o amor, é algo construído e
cultivado — e aqui, a ideia de cultivar é muito importante.
Portanto, a ausência
calculada do ato de lembrar — com um certo desprezo calculado por tudo o que
passou, por tudo o que vivemos, por tudo de bom e de ruim que as pessoas
fizeram — é uma estratégia de certos grupos e certas pessoas.
Do ponto de vista
pessoal, esquecer o que aconteceu e o que fizeram conosco vem muito a calhar.
Se fizeram coisas
ruins, bola pra frente; mas se fizeram coisas boas e queremos mudar de lado ou
arranjar novos parceiros, esquecer é muito conveniente.
Do ponto de vista
político-nacional, o esquecimento é estratégico para os grupos dominantes — e
cultivar o esquecimento é uma ação que se oculta sob o véu da máxima “o que
passou passou”. Mas não passou, não passa.
A tortura não passa, a
dor de perder alguém amado não passa, o silenciamento não passa, a falta de
reconhecimento não passa, as puxadas de tapete não passam, a traição não passa,
a ausência de um corpo da pessoa amada para enterrar não passa.
Nada disso passa, fica
sempre ali, latente. Uma memória nacional apagada e silenciada — um não dizer
permanente, mesmo em governos democráticos. E seguimos como se nada tivesse
havido. Ou fingindo que nada houve.
Eu gosto de lembrar,
gosto de cultivar a memória, gosto de revisitar os acontecimentos — isso me faz
entender muitas coisas e muitas ações. Lembro-me de acontecimentos bons e
ruins, de coisas boas e ruins que pessoas importantes para mim me fizeram. Isso
também ajuda a pensar sobre o futuro.
Do ponto de vista de
uma Nação, eu diria que é bem semelhante. Se nós não cultivamos o ato de
lembrar, se nós varremos parte da vida nacional para debaixo do tapete, não
vamos conseguir pensar o futuro de modo íntegro.
A ditadura que se
instalou com o golpe de 1964 matou, torturou, roubou sonhos, levou embora um
projeto nacional e é também responsável pela eclosão do bolsonarismo.
Toda a estrutura
militar corrupta, que se apropriou do Estado e se enriqueceu, formando uma
casta na qual não se mexe — com familiares que seguem se beneficiando muito de
tudo isso — é incompatível com a democracia.
Essa casta segue
dominando — basta ver as milícias e as polícias e os generais golpistas.
Portanto, o
esquecimento é muito conveniente para também manter intactos os privilégios.
O Brasil deveria ter
um grande museu da tortura, um grande museu pra lembrar que ditadura mata e
destrói, que a tortura não é aceitável, que regimes totalitários não são
benéficos. Mas não temos nada assim. E vamos assistindo à casta militar tramar
golpes e se safar.
Centenas e centenas de
famílias não enterraram seus mortos na ditadura. Mães não encontraram nunca
mais seus filhos.
Isso é resultado da
ditadura, isso tem de ser dito e mostrado — vivemos numa sociedade midiatizada.
Hoje, as polícias
matam e ainda torturam — isso é legado do golpe de 1964, tem de ser mostrado e
dito.
O bolsonarismo como se
articulou no Brasil é fruto da ditadura e do esquecimento calculado — que é
muito conveniente para os dominantes e poderosos.
Precisamos nos lembrar
do 31 de março de 1964 e de todas as suas consequências, pois ainda choram
Marias e Clarices e nossa Pátria mãe, tão distraída, segue sendo subtraída em
tenebrosas transações que golpeiam a democracia.
O esquecimento
calculado nos rouba a voz coletiva e nos mata aos poucos. Por isso, precisamos
lembrar, para que nunca mais aconteça.
Ø
Ainda se ouvem os ecos barulhentos de 1964.
Por Jeferson Miola
1964 não ficou no
passado. Ainda hoje, 60 anos depois do golpe militar que levou à longa ditadura
de 21 anos, ainda se escutam os ecos ruidosos de 1964 na atualidade.
O 8 de janeiro de 2023
testemunha cabalmente que 1964 não pertence só ao passado, continua muito vivo
no tempo presente.
Quem está por trás do
que aconteceu em 8/1 senão as mesmas cúpulas das Forças Armadas que em toda
história republicana abalaram o país com golpes de Estado e rupturas
institucionais?
Os militares já vinham
executando o plano conspirativo sub-repticiamente pelo menos desde 2013, 2014,
época em que condecoravam agentes da gangue de Curitiba que eram incensados
pela Rede Globo porque executavam a destruição semiótica do Lula, do PT e da
esquerda.
Em 2015 e 2016,
comandantes militares afiançaram apoio a Michel Temer para o impeachment fraudulento
da presidente Dilma.
Os
generais-conspiradores Sérgio Etchegoyen e Villas Bôas traíram a presidente que
os havia nomeado, e, em troca, ganharam o controle do governo Temer,
militarizaram o aparelho de Estado e rapidamente reestruturaram o sistema de
informações da ditadura.
No breve período
Temer, os militares reuniram condições para tomar o poder de assalto outra vez
não pela imposição das armas, mas por meio da eleição fraudada da chapa militar
Bolsonaro/Mourão.
Para isso, precisariam
eliminar da concorrência o virtual vencedor daquela eleição e blindar seu
candidato, vinculado a milícias e ao submundo do crime.
Então eles mandaram o
STF prender o único competidor efetivo, Lula, sem precisar usar um cabo e um
jipe, apenas um simples tweet do Alto Comando do Exército
assinado pelo comandante Villas Bôas.
E controlaram o
“risco-milícia” para a candidatura militar com a intervenção federal no Rio.
Durante o governo
militar com Bolsonaro, os fardados passaram a agir abertamente para quebrar o
Estado de Direito, dobrar a institucionalidade vigente e instaurar um regime
fascista-autoritário duradouro.
A derrocada da
democracia foi uma política permanente de governo. A ponto de Bolsonaro
comunicar isso oficialmente ao mundo em encontro convocado com embaixadores
estrangeiros no Palácio da Alvorada.
Diferentemente de
1964, quando destituíram Jango, nas tentativas de 2022 e 2023 os militares não
conseguiram materializar o intento golpista.
Desta vez, eles não
contaram com a autorização dos EUA e não ganharam o verniz de legitimidade que
o STF conferiu ao golpe militar na madrugada de 2 de abril de 1964.
Naquela ocasião, o
presidente do STF Ribeiro da Costa legitimou a farsa do presidente do
Congresso, senador Auro de Andrade, que declarou falsamente a vacância da
Presidência da República e ilegalmente empossou o presidente da Câmara Ranieri
Mazzilli no lugar do Jango sob as ordens e os olhares de generais golpistas num
Palácio do Planalto já violado.
A frágil democracia do
Brasil sobreviveu por um fio no período recente. Por muito pouco não foi
destruída.
A repercussão nacional
e internacional da vitória do presidente Lula na eleição foi essencial para
salvá-la, e contou com a mudança de postura dos vilões da democracia de ontem,
que levaram o país ao precipício em 2016, e que hoje posam de heróis da democracia
porque se assombraram com a escalada fascista – STF, mídia hegemônica e frações
das classes dominantes.
Os atores que em 1964
conspiraram, violentaram o Estado de Direito e instalaram a ditadura são os
mesmos atores por trás do empreendimento golpista que por muito pouco não
vingou desta vez.
O golpe de 64 não
ficou no passado, continua vivo e presente no Brasil contemporâneo. As
tentativas de insurreição militar contra a vitória de Lula são ecos barulhentos
de 1964 que subsistem no tempo presente.
Enquanto esse passado
de traumas e violências contra o povo brasileiro e a democracia não for
enfrentado pela sociedade civil e pelos poderes da República, a possibilidade
de um futuro sombrio do Brasil continuará sendo uma hipótese muito realista.
Principalmente no caso
da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em novembro próximo. Aliás,
este poderá ser o prazo de validade das escolhas do governo na questão militar.
Ø
Artigo 142: um resto de ditadura militar em
nossa democracia?
Desde a década
passada, em qualquer manifestação de extrema direita no Brasil é possível ver
cartazes pedindo pelo uso do artigo 142 da Constituição Federal para a
realização de uma "intervenção militar" no país. Na prática, um golpe de Estado.
O artigo 142 da
Constituição de 1988 é um tema de polêmica há décadas no Brasil e sempre foi
utilizado por figuras da direita brasileira para validar, de alguma maneira, a
tutela dos militares sobre os brasileiros.
60 anos depois
do golpe militar de 1964 e a
implementação da ditadura no país, o fantasma de um golpe das Forças Armadas ainda não se afastou
do país. E no campo jurídico, é justamente o artigo 142 que assombra os
democratas.
Antes, é necessário
ler o dito cujo.
"Art.
142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente
da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
·
As origens do 142
Conversamos com o
historiador Chico Teixeira,
professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, da UFRJ e da
UFJF, além de ex-funcionário do Gabinete de Segurança Institucional e do
Ministério da Defesa, para entender um pouco mais dessa história.
"Tudo isso que
está acontecendo é por causa da forma que se deu a transição entre a ditadura e
a democracia brasileira. A transição brasileira não foi uma transição por
colapso", afirma, relembrando a transição "lenta, gradual e segura"
da ditadura militar até a Constituinte. "É a transição mais longa de toda
a história. Além de ser uma transição pactuada, é uma transição extremamente
longa. E somente cerca de 10% a 12% dos constituintes de esquerda, e que
queriam, de fato, renovar a democracia do Brasil."
"O centrão surge
aí. E ele impõe, ao lado dos militares, limites à transição brasileira. Um
desses limites é a garantia de uma tutela militar sobre a república. Essa
tutela está expressa no artigo 142. A doutrina da tutela militar no Brasil era
muito ativa. Ela vem desde 1889, quando os militares derrubaram o império,
tomaram o poder, implantaram a república, e, a partir daí, eles acharam que
eles eram os tutores da república", explica.
·
As interpretações
nefastas
Foi no seio do
bolsonarismo que o artigo 142 ganhou interpretações mais 'fascistoides'. Juristas da extrema direita justificaram que as Forças
Armadas tinham o poder de intervir nos poderes por meio de um molde de
golpe militar como o de 1964, mas tutelados pela Constituição.
Em 2023, foi revelado
que a cúpula militar do governo Bolsonaro chegou a consultar o jurista Ives
Gandra para entender mais sobre as possibilidades de uso do artigo 142, para o
qual ele respondeu: "pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito
entre poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra
solução”.
"Eles têm o mesmo
papel hoje que Francisco Campos, o grande jurista do golpe de Estado de 1937,
que fundou o Estado Novo, tinha. Tinha o mesmo papel dos juristas como
Francisco Medeiros, e, mais uma vez, Francisco Campos, que apoiaram o golpe de
1964 Então, há uma tradição jurídica brasileira que sempre apoia golpes de
Estado. Não há nenhuma novidade em relação a isso. Mas, do ponto de vista da
concretude do direito, o artigo 142 perdeu a sua validade como tal",
explica Teixeira.
O artigo 142 foi
regulamentado por uma lei editada no período FHC, a Lei Complementar 97, de
1999, que criou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nas GLOs, as FFAA são
convocadas por um poder - Executivo, Legislativo ou Judiciário - para agir na
restauração da ordem pública. É o caso da greve dos policiais de 2017 no
Espírito Santo ou da greve de caminhoneiros de 2018.
Ou seja: o artigo 142
da Constituição já foi utilizado em diversas ocasiões, inclusive por governos
do PT em eventos como a Copa do Mundo 2014.
Interpretá-lo como
anuência para golpe militar é pura e simplesmente errado. "Não há valor de
face no artigo 142. Ele perdeu o seu valor, mas ele não foi suprimido. Ele foi
reinterpretado de uma forma rigorosa e legalista. Os mal-intencionados, como é
o caso do Miguel Reale Júnior e de alguns chefes militares, querem ler apenas o
valor de face do caput do artigo, e não ler as leis complementares que
reformaram a Constituição nesse sentido. Portanto, cometem uma grave
ilegalidade", completa Teixeira.
·
Hora de acabar com o
142?
O desejo de mudar o
142 vem desde o seu surgimento. Deputados constituintes como José Genoino e
Fernando Henrique Cardoso trabalharam para tentar tirar a tutela dos militares
sobre a "lei e a ordem", mas foram pressionados pelo general Leônidas
Gonçalves, ministro da Guerra do governo Sarney.
O deputado federal do
PT de São Paulo Carlos Zarattini lidera o debate, desde o ano passado, por uma
alteração do artigo 142 para retirar o poder dos militares na Constituição.
"Nós queremos
tirar das atribuições das Forças Armadas a chamada Garantia da Lei e da Ordem.
Nós queremos mudar o texto. Porque é uma redação que está muito 'patriotada' e
com pouca definição", explica o deputado.
"Também queremos
introduzir alguns outros parágrafos. Se o militar for candidato a alguma coisa,
ele é automaticamente removido para fora das forças. Assim como é com juízes e
promotores. Na hora que você opta pela política, você deixa de seguir carreira.
Então, nós estamos querendo colocar que se o cara for para um cargo civil, de
natureza civil, ele também deixa de seguir carreira", completa Zarattini.
"A gente propõe que fique proibida qualquer atividade política dos
militares. É um artigo que está na Constituição Portuguesa. Na medida em que o
camarada se meter na política, de algum jeito, ele está automaticamente fora
das Forças Armadas", destaca o parlamentar.
·
O governo e os
militares
Alterar o artigo 142
da Constituição envolveria, em algum nível, como demonstrou o deputado
Zarattini, algum conflito com setores das Forças Armadas.
Segundo o próprio
parlamentar, esse é o principal entrave para que a Proposta de Emenda à
Constituição ganhe força, por conta da política do governo Lula de não entrar
em conflito com as armas.
"O governo tem
uma linha de não ter nenhum tipo de aresta com os militares. E, evidentemente,
esse é um projeto que um setor militar, que quer se envolver em política, vai
reagir contra. Deputados, senadores, que têm origem militar, vão reagir contra.
Mas nós temos certeza que a maioria dos militares não teria nenhum problema com
isso", defende Zarattini.
O historiador Chico
Teixeira avalia que não enfrentar os militares golpistas é um erro do governo
Lula. "O Lula está querendo isolar Bolsonaro como inimigo e absolver os
militares, não entendendo que o bolsonarismo é uma das formas do golpismo militar
na história do Brasil", afirma. "A ideia de que o Lula teve um ótimo
relacionamento com os militares, isso é fantasia. O Lula fantasia
isso."
Fonte: Viomundo/Fórum
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