“A extrema-direita reivindica o realismo da
‘crueldade’ do mundo”, diz professor
Um movimento
orquestrado por diversos atores cresce e ascende no cenário mundial, ainda que
traga consigo traços de fascismo, nazismo e autoritarismo. Uma “rede de
conservadorismo e ressentimento” que se vale das plataformas digitais para
disseminar o ódio. Essa é a extrema-direita, que ascendeu ao topo em diferentes
países, do Norte rico ao Sul em desenvolvimento. Mas como esse movimento ganhou
ainda mais força no Brasil?
Para chegar ao poder,
a extrema-direita não mede esforços e se vale das estratégias mais repulsivas,
inclusive, com o uso da violência. É o que aponta Moysés Pinto Neto, em
entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo
o professor, “o traço essencial da extrema-direita não se passa na linha do
tempo, mas na utilização da violência como forma de manutenção do poder e na
ideia de que um segmento social, baseado em algum elemento específico, tem
direito a manter a hierarquia pela força”, coloca.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Como você definiria a chamada “nova
direita” ou extrema-direita? O que há de novo em relação à direita tradicional?
Moysés Pinto
Neto – Há aspectos de continuidade e descontinuidade.
Na continuidade,
destacaria em geral aquilo que caracteriza a direita em qualquer das
suas modulações, isto é, a defesa de que, pela razão x ou y (economia, mérito,
religião, raça, nação, gênero, etc.), as hierarquias são justificadas na sociedade.
Durante os avanços nos direitos daqueles que estão na condição de subalternos,
a direita se posiciona de modo “conservador”, entendendo que existe razão
suficiente para que o status quo seja mantido. Em circunstâncias nas quais a
“janela de Overton” se desloca mais para a direita, surge então
a extrema-direita: quando não se trata apenas de evitar incremento nos
direitos dos subalternizados, mas ativamente promover o governo da força
afirmando a supremacia de uma certa camada sobre outra da população. Em geral,
chamava-se isso de “reacionário”, no sentido de restaurar uma ordem perdida,
mas penso que o termo ainda está preso no imaginário do progresso. O traço
essencial da extrema-direita não se passa na linha do tempo, mas na utilização da violência como
forma de manutenção do poder e na ideia de que um segmento social,
baseado em algum elemento específico, tem direito a manter a hierarquia pela
força.
Em relação
à descontinuidade, chamaria atenção para o abandono da ideia de “ordem”.
Hoje, a extrema-direita é propagadora do caos. Ao contrário dos
modelos nazista e fascista do início do século XX, baseados na verticalidade e
na utilização do Estado como meio para impor suas decisões – embora Arendt tenha mostrado que não é bem assim
em As origens do totalitarismo – hoje a extrema-direita funciona fomentando
a desregulação e o caos. Seu programa, próximo do que é chamado
bizarramente de “anarcocapitalismo”, é de impor a força não por meio de um
governo, mas da ausência dele. Assim, sistemas informais de controle substituem
os formais, que eram baseados em princípios jurídicos que limitavam as ações
dos poderes em relação a seus alvos.
A desregulação,
chamada “liberdade”, é o poder de impor sua vontade sem limites, de acordo com
o tamanho da força (econômica, política, religiosa, étnica, racial, de gênero),
sem encontrar qualquer freio normativo. Por isso, a demanda não é pelo “direito”
à liberdade, como supostamente a imprensa transmite, como um pombo-correio
domesticado, mas pela imunidade geral ao direito. Nunca houve um
sistema jurídico que não se baseasse na limitação das ações individuais em
relação a outros direitos de outrem: meu direito à locomoção não permite, por
exemplo, agredir alguém com um soco. Mas é exatamente isso que a demanda por
“liberdade” da extrema-direita reivindica: exercer o poder sendo imune ao
controle jurídico.
·
Como a nova direita compreende o que é a
esquerda e quais as consequências políticas disso?
Moysés Pinto Neto
– De uma maneira genérica, ser de esquerda (o que dá quase na
mesma que ser “comunista” ou “woke”), significa perceber a dimensão
social dos problemas. A extrema-direita reivindica o realismo da
“crueldade” do mundo. Bolsonaro,
por exemplo, sempre recusou pedidos de aumento de direitos afirmando que “não
teria poder para isso”, pois não seria “hipócrita” a ponto de negar a violência
e a dureza do mundo. Na pandemia, isso ficou bem explícito: sobrevivam os mais
fortes, não temos tempo para choramingar em relação às vidas dos fracos que
foram perdidas. O principal problema da esquerda seria, por isso, sua
hipocrisia, ao afirmar que é viável um mundo justo para todos, diante do
cinismo da extrema-direita que reconhece o individualismo
predatório como a única forma possível de vida (algo próximo do “realismo”
que Mark Fisher ligou ao capitalismo, mas que a extrema-direita leva mais
longe).
A principal
consequência disso é a tentativa de abolir todas as formas
de solidariedade social, especialmente aquelas sustentadas pelo Estado.
Por isso, todo tipo de legislação protetiva, como a das crianças e adolescentes
(ECA), o direito do trabalho (CLT), a defesa do meio ambiente, dos povos indígenas,
da população LGBTQIA+, enfim, todo tipo de reconhecimento formal e
informal das relações sociais – e de uma possível solidariedade entre os
indivíduos – é negada como hipocrisia e freio ao progresso. No imaginário da
extrema-direita, só existem indivíduos e suas famílias. Mas, ainda mais longe
que a já extremista Margaret Thatcher, esses indivíduos não estão sujeitos sequer a uma lei comum:
eles podem impor-se pela força.
·
Qual é a cara da extrema-direita no Rio
Grande do Sul? Não me refiro somente a pessoas, mas instituições que dão
sustentação a esta visão de mundo.
Moysés Pinto Neto
– O RS não está fora da curva mundial da extrema-direita. Em
geral, seus principais ícones são homens brancos ricos que controlam boa parte
da informação e do mercado, sendo capazes de impor suas vontades de modo
arbitrário e contrariando padrões jurídicos e éticos mínimos.
O RS também contribuiu para a formação de duas especificidades
do autoritarismo brasileiro: seu
papel nas ditaduras foi indiscutível, desde Getúlio Vargas até Ernesto Geisel,
e por isso existe uma mentalidade visceralmente ligada ao governo pela força
por aqui.
Além disso, agora na
sua face mais moderna, o RS produziu a neocolonização da coluna
oeste do país, do Sul ao Norte, criando boa parte do caldo cultural, político,
econômico e social das monoculturas e da exploração de áreas biodiversas pela
pecuária. O que se repete no interior do Estado, claro. Assim, podemos dizer
que, em parte, o gaúcho foi construtor da mais poderosa
figura da extrema-direita da atualidade: o “ruralista” e seu séquito
de adeptos culturalmente. Isso não foi apenas construção gaúcha, porque também
a cultura “caipira” do interior de São Paulo produziu modulações
estéticas, assim como a incorporação dos rednecks norte-americanos.
Ou seja, a colonização gaúcha, que explorou as políticas de etnogenocídio das
populações indígenas durante a Ditadura para conquistar mais terras,
hoje compõe o quadro sob a rubrica eufemística do “agronegócio”.
Aqui também foi um dos
laboratórios da tendência anarcocapitalista, que radicalizou um setor econômico
que já havia fortemente aderido ao neoliberalismo durante o
governo Antônio Britto, nos anos 90, abrangendo empresários, think
tanks e a mídia local. O Fórum da Liberdade talvez tenha
sido uma das suas principais expressões. Mas também aqui o Movimento Brasil Livre – MBL,
por exemplo, disparou a pauta moral como questão nacional na intervenção
fascista contra o Queermuseu, e inclusive colocou um prefeito alinhado com o movimento
(Nelson Marchezan) no poder durante um mandato. O papel do “Parcão” no cenário
urbano de Porto Alegre, com uma forte mobilização de 2015 até 2022, marca
bem – assim como a própria radicalização da direita em Porto Alegre e no RS.
O terceiro foco talvez
seja ainda mais complicado: o interior da imigração ítalo-germânica, que
se bolsonarizou de modo radical, conta com uma rede muito organizada
de disseminação do ecossistema bolsonarista de mídia (sobretudo WhatsApp).
Esse campo espelha perfeitamente a supremacia branca aqui no Estado, de modo
bem semelhante ao que se passa em Santa Catarina e no Paraná. A
radicalização ali foi extrema, inclusive envolvendo boicotes a pessoas que
votaram em Lula e uma sistematização total. Esses espaços hoje
alcançaram um nível de radicalização inédito em relação às ideias da
extrema-direita.
·
Quanto ao Rio Grande do Sul, que eventos ou
episódios são ilustrativos da força social da extrema-direita? Até que ponto
ela se atualiza no “gauchismo”?
Moysés Pinto Neto
– Curiosamente, não vejo o “gauchismo”, no sentido
de tradicionalismo, como algo tão forte na determinação
da extrema-direita por aqui. Isso porque, como no resto do país,
existe um efeito de bolsonarização sobre o setor rural que deságua na figura do “ruralista”, que por aqui não é
mais tão diferente que no campo dos outros Estados. Nisso, pode se dizer que há
uma relação de ida e volta entre o gaúcho que saiu do RS e colonizou
o Oeste do país e suas origens aqui no Sul. O “tradicionalista”
de hoje vive no espaço menor do CTG ou do Acampamento
Farroupilha, mas tem pouco espaço nas figuras de poder do campo (por exemplo, o
recuo da pecuária para as monoculturas).
Na verdade, até o
contrário: vimos em regiões fortemente “gaúchas”, no nosso Pampa, uma
preponderância da esquerda sobre a direita. Basta ver lugares
como Bagé, Dom Pedrito, Caçapava do Sul, em que
o PT ganhou em todos os cargos. O gaúcho que realmente vive como o
gaúcho, que não é apenas o fazendeiro rico com suas caminhonetes, parece se
inclinar mais à esquerda atualmente.
Uma coisa, porém,
marca bem a relação entre gauchismo e extrema-direita: as relações de
gênero e raça. Embora seja totalmente possível uma leitura indígena da
figura do gaúcho, desde a tradição do mate por exemplo, o “tradicionalismo”
embranqueceu o gaúcho, não raro o aproximando da celebrada visão
criptonazista que domina enormes regiões do Estado em relação à supremacia
racial branca oriunda da imigração germânica e italiana. O mesmo se passa
com a questão de gênero, em que a misoginia e o machismo são naturalizados de
modo a engessar os papéis e manter a hierarquia heteropatriarcal sobre a figura
do gaúcho. Gostaria de destacar, nesse sentido, a importância estratégica de
movimentos estéticos como a “estética do frio”, que procuram ressignificar a figura do gaúcho a partir de
abordagens feministas, ecológicas e antirracistas. Cito os trabalhos
de Clarissa Ferreira e Vitor Ramil cantando Angélica Freitas como exemplos dessa
desconstrução.
·
Porto Alegre receberá em junho Jordan
Peterson, no tradicional evento Fronteiras do Pensamento. Além de ser um
polemista, quem é esse personagem? Quais são suas ideias e perspectivas
ideológicas?
Moysés Pinto Neto
– Não sou um especialista no pensamento de Peterson, estou mais
focado no seu papel no ecossistema da extrema-direita. Ele ficou muito
conhecido por ter “desafiado” estudantes “woke” em uma universidade
no Canadá, reivindicando a “liberdade de expressão” dentro das
universidades. Desde então, começou a alavancar seu trabalho atacando as
políticas de gênero que afirmam a plasticidade das relações e dos corpos, como
por exemplo a filosofia queer de Judith Butler. Quando
começou a ficar mais famoso, começou a ampliar seu escopo para atacar como um
todo o “marxismo-cultural”, conceito de origem norte-americana que foi trazido
para cá por Olavo de Carvalho, cujo trabalho político é basicamente uma cópia da
extrema-direita dos EUA.
Essa noção vaga de
“marxismo cultural”, que é basicamente tomado como qualquer politização das
relações sociais, vista como “doutrinação”, serve então de combustível para se
alinhar aos fóruns mais diversos da extrema-direita, circulando o mundo inteiro
e vendendo muitos livros para homens descontentes com a ascensão do feminismo.
Por isso, Peterson foi “adotado” pelos trolls dos
grupos masculinistas, como os “redpills” e “incels”, na medida em
que supostamente ofereceu uma perspectiva alternativa “científica” ao
progressivo reconhecimento de direitos para as populações dissidentes em
relação às formas dominantes de gênero e sexualidade.
·
No cenário gaúcho especialmente, e
brasileiro, que outros personagens cumprem um papel semelhante ao de Peterson?
Moysés Pinto Neto
– Sim, existem diversos “gurus” do bolsonarismo na mesma linha, embora
poucos com papel acadêmico. Na sua maioria, esses disseminadores vêm das
plataformas digitais como influencers, ocupando o ecossistema de
público criado por Olavo de Carvalho. O deputado Nikolas Ferreira e Eduardo
Bolsonaro são exemplos, uma vez que, embora evidentemente sem a mínima
base intelectual, importaram as polêmicas políticas dos EUA. O Brasil
Paralelo é outro exemplo.
·
O que explica esses personagens serem
vistos como “pensadores”, enquanto pesquisadores e professores universitários
são vistos como “doutrinadores”?
Moysés Pinto Neto
– A adesão desse público às ideias de extrema-direita. Segundo essa
perspectiva, viveríamos em um mundo controlado pela cultura woke e
pelo marxismo cultural. No caso do Brasil, ainda seríamos um país
desde sempre e ininterruptamente (salvo no governo Bolsonaro, e olhe
lá) socialista.
A crítica da
“doutrinação” nasceu na esquerda para criticar conteúdos compulsórios
que violavam a liberdade das crianças e dos adolescentes. Por exemplo, noções
puritanas de sexualidade sem base científica ou obrigações religiosas impostas
a adeptos de outras religiões ou nenhuma. Quando, porém, essa crítica se fez
valer, alterando os currículos e produzindo a introdução de discussões
científicas ou críticas sobre esses tópicos, os derrotados passaram a chamar
seus inimigos de doutrinadores, como se houvesse apenas uma inversão dos polos.
No entanto, é óbvio
que não é assim. Primeiro, porque os conteúdos estão baseados na argumentação
racional e nas ciências, e não na tradição, no dogmatismo e na autoridade, como
eram os anteriores. Segundo, porque nenhum desses conteúdos é imposto como uma
necessidade obrigatória se envolvem controvérsia filosófica. Eles são
apresentados como alternativas ao estudante para se orientar. Em certas áreas,
como a medicina, há evidências que não podem ser substituídas por meras
“opiniões” e a desconsideração destas não significa uma limitação de direitos,
mas a simples produção do conhecimento sujeito ao erro e acerto. Terceiro,
porque o que esses sujeitos reclamam não é da doutrinação em si, uma vez que
eles próprios gostariam de ser os doutrinadores. Os pais que atacam as escolas
querem ter o direito absoluto sobre as ideias dos filhos, como se fosse o poder
do pater familias romano, e nem comento os pastores que cuidam do
seu “rebanho”.
Esse problema,
impulsionado pelas plataformas digitais (veja-se o trabalho de Leticia Cesarino), levou a
uma criação de uma rede de conservadorismo e ressentimento: de
um lado, aqueles que gostariam do retorno reacionário dos “valores
tradicionais” impostos a todos indistintamente, como se fossem o único caminho
possível para o desenvolvimento da disciplina e da responsabilidade; de outro,
os fracassados do sistema escolar que se entendem vítimas de “injustiça”,
porque suas opiniões (infundadas) não foram consideradas, como se a liberdade
de expressão se confundisse com o mérito acadêmico. As peças produzidas pela
extrema-direita, como o recente rascunho de fundamentação do golpe encontrado,
ou os tuítes do Carlos Bolsonaro, falam por si só: trata-se de pessoas
extremamente despreparadas e arrogantes, em geral acreditando que sua condição
(branca, masculina, hétero, cristã, rica, forte) pudesse, por si só, levar à
credibilização das suas “opiniões” fraquíssimas.
·
Voltando ao Fronteiras do Pensamento. O que
significa o evento ser patrocinado pela RBS, empresa de comunicação
jornalística com concessão pública, e pelo Brasil Paralelo, uma produtora que
publica vídeos propondo revisionismos históricos (senão desinformação/fake news)?
Como compreender essa contradição, se é que há?
Moysés Pinto Neto
– O Fronteiras do Pensamento se celebrizou como uma ocasião para
trazer ao RS grandes intelectuais. Trouxe Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky, Edgar Morin, entre outros.
Portanto, construiu uma marca específica. Em função da sua comunicação mais
agressiva, sobretudo a partir da RBS, conseguiu atingir uma marca de
público bem superior aos eventos acadêmicos, embora grandes nomes do pensamento
mundial também tenham comparecido ao RS sem o mesmo alarde. Em função
de uma mudança na equipe curatorial, acredito que tenha havido uma inflexão
mais à direita.
O cenário atual, no
entanto, indica que não foi uma inflexão suave. Ao fazer a parceria com
o Brasil Paralelo, assumiu uma postura agressiva, pois a produtora não é
considerada como uma interlocutora com credibilidade no país, mas como mera
transmissora de propaganda de ultradireita. Basta pesquisar as pesquisas
acadêmicas já feitas em todo Brasil sobre ela. Temas como escravidão, racismo,
colonização e sistemas políticos são reconsiderados a partir do enfoque mais
reacionário possível, subvertendo anos e anos de pesquisa e revisão crítica de
conceitos produzidos pela academia. Curiosamente, se colocam contra a
“doutrinação”, quando a academia é infinitamente mais diversa e
problematizante, enquanto a produtora é linear, previsível e doutrinadora das
ideias de direita mesmo em questões hoje praticamente indiscutíveis.
Ao realizar essa
virada, trazendo Peterson em parceria com o Brasil Paralelo,
o Fronteiras busca naturalizar a discussão trazida a um eixo muito à
direita, da mesma forma que os norte-americanos foram empurrando a janela
de Overton chamando a social-democracia de comunismo, para depois
chamar o liberalismo (algo próximo do que Nancy Fraser chama de
“neoliberalismo progressista”) de comunista e, enfim, manter a disputa entre
uma centro-direita muito moderada e uma extrema-direita muito radical
(supremacista). Mesmo os neocons, como Bush, hoje são tidos
como moderados por lá. É o mesmo que querem fazer aqui.
·
Na virada do milênio, Porto Alegre foi uma
espécie de farol global, reunindo representantes de inúmeras lutas
altermundialistas no Fórum Social Mundial, em contraposição ao evento de Davos.
O que houve com aquela cidade de 2000? O que ainda hoje sobrevive daquele
ideário?
Moysés Pinto Neto
– É uma pergunta que nós, porto-alegrenses, nos temos feito
constantemente. A realidade é que a cidade mudou profundamente e é melhor virar
a página do FSM, do orçamento participativo e tudo que marcou
aquela época das ótimas gestões do PT. A nostalgia e a comparação óbvia
com a situação triste atual já se mostraram ineficazes para vencer a disputa
política. São 20 anos de gestões de direita na Prefeitura.
Prefiro olhar para
uma Porto Alegre mais recente, a que fez explodir no Brasil inteiro o
barril de pólvora de 2013, que
mobilizava ativistas para preservar o corte de árvores no Gasômetro,
a Massa Crítica das bicicletas, que buscava o “Largo vivo” e a
“Defesa pública da alegria”, juntando-se ainda com os movimentos
feminista, LGBTQQIA+, negro e indígena, para capitalizar um novo processo
de reinvenção da cidade, como fizemos, surpreendentemente, colocando a bancada
negra como protagonista da política de Porto Alegre e do RS.
Infelizmente,
os partidos de esquerda, engessados pelas suas burocracias, seguem muito
presos nas suas próprias memórias e dinâmicas e pouco abertos ao novo. Veja por
exemplo a disputa para a Prefeitura: ao longo dos últimos seis meses, a
principal discussão foi se haveria “frente de esquerda”. O que importa isso? Na
prática, os votos da esquerda convergem no segundo turno. O problema é se
enraizar na população, mostrar que a cidade é dominada pelas construtoras, que
tem um projeto elitista voltado para os ricos, que perde constantemente seu
patrimônio cultural, seus espaços públicos e sua riqueza ambiental. Isso com
uma política de comunicação eficaz, uma mobilização social. Em
vez disso, a esquerda fica discutindo quem será vice e quem será cabeça de
chapa, e em geral os nomes são sempre os mesmos.
·
Nós, enquanto sociedade, temos repertório
para lidar com o emaranhado de crises conexas que hoje vivenciamos? Como
superar essa encruzilhada?
Moysés Pinto Neto
– É uma pergunta muito ampla. Mas o que ela mostra sem dúvida é o
entrelaçamento de todas as crises. O declínio do patriarcado e o backlash homofóbico,
misógino e fundamentalista religioso; as vitórias do movimento
negro e o rebote supremacista; a consciência do direito à autonomia
dos povos indígenas e a resposta colonial violenta do mundo rural; a
devastação ambiental e o negacionismo, impulsionado pelas exigências do
capitalismo de crescimento infinito sem qualquer lastro material. Tudo está
entrelaçado. A direita sabe disso. Por isso, seu espectro vai do garimpeiro no
território Ianomâmi até Jordan Peterson, da terra ao gênero, da
racialização à desregulação econômica, do discurso de ódio à devastação
ambiental. A direita conhece a interseccionalidade das suas questões. E nós,
conhecemos?
Fonte: Entrevista com
Moysés Pinto Neto, para IHU
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