terça-feira, 26 de março de 2024

Sergio Di Benedetto: Cristianismo, uma religião fundada no ódio (social)

No vasto mundo da rede, os cristãos parecem se caracterizar mais pela agressividade e pela violência do que pela misericórdia e pelo amor: é um contratestemunho do qual precisamos estar conscientes.

O comentário é de Sergio Di Benedetto, doutor em Literatura Italiana pela Universidade da Suíça Italiana, em Lugano. O artigo foi publicado por Vino Nuovo,

>>> Eis o texto:

Naquele entrelaçamento cada vez mais estreito (e nem sempre salutar) entre onlife e online, muitas vezes me deparo com postagens sobre “temas religiosos”, sobretudo porque parte da minha “bolha” social discute e compartilha isso. O que me impressiona, sempre, é o estilo de muitas pessoas, explicitamente cristãs (como desejam declarar, começando já pelas imagens emblemáticas dos próprios perfis: figuras sagradas, ícones etc.), que, quando se veem tratando de qualquer assunto, manifestam modos, tons e posturas muito agressivas, desrespeitosas e até violentas. A ironia logo dá lugar ao sarcasmo venenoso e depois a epítetos pouco edificantes, até chegar ao insulto (às vezes, acredito, com algumas implicações jurídicas). Nada de escuta, nada de estima recíproca, nada de benevolência: o capacete e a lança (verbal) empunhada são o que há de mais difundido entre os usuários “católicos” médios e etariamente maduros que passam (muito) tempo na internet.

Divididos em bandos, substituímos muitas vezes o diálogo pacato – mesmo nas diversas sensibilidades – por um conflito violento sem trégua. Os haters, que tanto conforto encontram no mundo virtual, também e sobretudo protegidos por um vil anonimato, fazem escola e agora não têm mais discípulos, mas verdadeiros mestres nas bolhas de inspiração católica.

Aquilo que se comunica, entre um santinho e uma jaculatória (a gramática artística “cristã” que circula pela rede mereceria uma discussão à parte), é uma inimizade acalorada, um ódio sempre vivaz, um estado permanente de guerra. Nos poços envenenados da internet, nas fossas lívidas das pradarias virtuais, os cristãos são muitas vezes protagonistas.

Então, é cada vez mais urgente nos perguntarmos que tipo de espetáculo damos como cristãos em rede, entre redes sociais digitais e fóruns, sem esquecer que existe uma dimensão do mal cometido que se amplia e se espalha também por meio do teclado.

A religião da misericórdia e a fé em um Deus de amor tornaram-se muitas vezes, na conjugação da internet, a religião do homem frustrado, a fé em um Deus que abençoa as armas virtuais, a moral estéril do olho por olho. Especialmente quando nos sentimos investidos de uma missão divina, voltada à defesa da (minha) verdade, eis que o ataque é “descriminalizado”; a violência, tolerada, senão até fomentada; o confronto, procurado e provocado.

Mas que impressão se oferece a quem não compartilha a fé cristã? Uma religião que apostou tudo no amor, a começar por Cristo, tornou-se uma religião do ódio. O mandamento supremo, aquele fundamental “ama o teu próximo como a ti mesmo” é esquecido e pisoteado (sempre com mil justificativas interiores).

A “diferença cristã”, em rede, parece mais ligada à diferenciação para pior do que para melhor. Entre uma devoção e uma novena, que olhar virtual sabemos cultivar na internet? Que espaço de reflexão e de expectativa sabemos construir, vencendo também a tentação da intervenção imediata, da resposta dura a ser lançada imediatamente? Sabemos ainda esperar e, se necessário, decidir pelo caminho do silêncio para não alimentar círculos verbais de prepotência?

Na verdade, em rede, nós, cristãos, parecemos ser pessoas que vivem da raiva e não da esperança e da caridade. O testemunho que oferecemos é muitas vezes um contratestemunho, uma marretada na credibilidade da fé que professamos. Quem não compartilha as nossas ideias torna-se um inimigo, e certamente não para ser “amado” (Mt 5,44), mas para ser combatido tão a fundo quanto possível, especialmente se for um “cristão a ser corrigido”.

Enfim, é interessante sublinhar como não captamos a contradição entre a partilha de um versículo da Palavra, uma citação de um santo, uma “imagem sagrada” e, ao mesmo tempo, a entrada nos círculos viciosos do ódio online que destroem tudo, a começar pela própria pessoa com quem se entra em relação.

Talvez, dada a preponderância de certos modos agressivos e tão pouco evangélicos, a indiferença do mundo não cristão pareça ser uma profilaxia útil e necessária: a quem poderá parecer interessante uma religião que se baseia no amor, mas que, depois, na internet, torna-se desculpa para o uso de palavras desrespeitosas, violentas e ofensivas?

A paz que tanto desejamos... também deve ser salvaguardada e construída online.

 

       O pânico sobre a Teologia do Domínio e a cegueira sobre a ganância laica. Por Christina Vital da Cunha

 

"O que se convencionou chamar de Teologia do Domínio tem raiz em interpretações bíblicas cujo livro de Gênesis é uma referência fundamental onde se lê: 'E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra' (Gênesis 1:28)", escreve Christina Vital da Cunha, professora do PPG em Sociologia, coordenadora do Laboratório de Estudos em Política Arte e Religião (LePar) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

>>>> Eis o artigo.

Depois da manifestação promovida por líderes evangélicos em apoio aos projetos da extrema-direita no dia 25 de fevereiro de 2024 na Avenida Paulista, vimos uma onda de jornalistas e estudiosos circunscrevendo os problemas nacionais em um grupo social, os evangélicos neopentecostais e seus líderes, e em uma teologia, a Teologia do Domínio. Qual a importância desses atores no cenário político atual? Em qual medida a Teologia do Domínio e formulações correlatas como a Batalha Espiritual e o Reconstrucionismo se manifestam na sociedade brasileira hoje? São perguntas cujas respostas não se esgotam nas linhas a seguir, mas aqui sugiro olhares que nos afastem do pânico e nos permitam pensar com mais serenidade e traçar estratégias coletivas de afirmação democrática e civilizatória no sentido da inclusão e justiça social.

O que se convencionou chamar de Teologia do Domínio tem raiz em interpretações bíblicas cujo livro de Gênesis é uma referência fundamental onde se lê: “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gênesis 1:28). A característica central desta Teologia advoga a legítima e necessária dominação do mundo pelo cristianismo (seus fiéis e seus valores e sistemas de crença) e isso não é novo. Contudo, atualizações desta teologia acontecem de tempos em tempos (como ocorre em outras formas teológicas também) atendendo a necessidades espirituais/eclesiásticas e/ou a interesses institucionais/de poder. O contexto estadunidense de renovação e inspiração da Teologia do Domínio tal como nos chega na atualidade data dos anos 1970. E o que estava acontecendo nos Estados Unidos no período? Mudanças sociais profundas que tensionavam relações de poder e as instituições sociais e estatais que sustentavam o status quo ante. Sendo assim, naquele período, os direitos civis de pessoas negras se afirmavam, inclusive com integração escolar entre crianças negras e brancas imposta por força de lei, direitos sexuais e reprodutivos com, por exemplo, a legalização do aborto, mobilização social contra a participação estadunidense em guerras como a do Vietnã, nova fase do movimento feminista e, com tudo isso, observava-se uma mudança na correlação de forças desafiando a dominação/valorização da masculinidade viril e a supremacia branca, ambos elementos basilares da identidade nacional norte americana propagada na política, na economia e na cultura – e os filmes americanos foram muito importantes nesse processo. As teologias, formas de ver o mundo e viver a religião, estavam sendo remexidas naquele período por toda essa efervescência, assim como a Teologia da Libertação na América Latina reverberava as questões experimentadas pelos povos desta região. 

Sendo a Teologia do Domínio podemos dizer que ela tem uma matriz reformada também chamada Reconstrucionismo e uma pentecostal, mais conhecida como Batalha Espiritual cuja referência fundacional é o teólogo norte-americano Charles Peter Wagner. Simplificando as várias singularidades existentes em suas concepções e aplicações, podemos dizer que a Teologia do Domínio advoga a liderança de cristãos na sociedade em áreas como religião, família, educação, governo, economia, artes e entretenimento. A Opus Dei tem projeto similar tornado explícito nos anos 1930 por ação de um religioso católico espanhol. Mas continuemos entre evangélicos, alvos do principal pânico social recente.  A Teologia do Domínio se expressa também na chamada Doutrina dos Sete Montes, criada pelos norte-americanos Loren Cunningham e Bill Bright, fundadores respectivamente da Jovens com Uma Missão (Jocum) e da Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (Cru). Essa doutrina, segundo eles, surgiu de uma revelação divina ocorrida em 1975, uma profecia sobre a condição para o retorno de Cristo à Terra.

Há diferenças em como as igrejas Anglicana, Presbiteriana e outras identificadas como reformadas ou protestantes vivenciam a Teologia do Domínio e como este conteúdo teológico é formulado em igrejas pentecostais e neopentecostais. É perceptível a diferença de postura pública e estratégia de líderes como o Ministro e pastor André Mendonça e o ex-Ministro da Educação Milton Ribeiro, presbiterianos, e pastores como Silas Malafaia, bispo Edir Macedo, Valdemiro Santiago e o deputado federal Nikolas Ferreira, por exemplo, todos ligados a denominações pentecostais, neopentecostais ou igrejas renovadas. Enquanto o projeto de poder silencioso, contínuo e exercido por influência é mais característico do primeiro grupo, um modo comum ao exercício de poder exercido pelo conservadorismo católico durante a República, o enfrentamento público, a valorização da visibilidade e a perseguição ostensiva aos identificados como inimigos é característica do segundo grupo. Na prática política é possível que esses atores reúnam forças, mas têm origens sociais e estilos distintos.  

O ato realizado em 25 de fevereiro por segmentos sectários evangélicos e políticos identificados como extremistas revela um comportamento religioso que não é novo, embora venha se fortalecendo na esteira do crescimento da extrema-direita como fenômeno político. É um movimento encabeçado por alguns líderes evangélicos como Malafaia e empresariais e funcionários e funcionárias de partidos, pessoas que representam interesses institucionais como a própria Michelle Bolsonaro, também evangélica. A face de movimento religioso naquele ato buscava tanto blindar a manifestação na medida em que qualquer tentativa de deslegitima-la ou impedi-la seria tomada como intolerante, como perseguição religiosa, como uma afronta à liberdade religiosa, ao mesmo tempo em que tinha o objetivo de conduzir emocionalmente as pessoas como se estivessem todos envolvidos em uma guerra do bem contra o mal na qual a dominação religiosa da política se justificaria nessa medida.

Ou seja, como ficou claro na fala inicial da ex-primeira dama e assalariada do Partido Liberal, Michelle Bolsonaro, “misturar” religião com política é a saída para a dominação do “bem” nesta esfera, pois o mal estaria à espreita. Nesses discursos, observamos bastante como põem em curso um conjunto de gramaticas e emoções, ou seja, uma retórica baseada na Batalha Espiritual na qual espíritos malignos disputariam com Deus a condução. Mas a Batalha Espiritual se manifestaria não só no espírito e nos sofrimentos ali verificados, mas também na “carne” = corpo e instituições sociais como família, escola. As forças malignas estariam dispostas a destruir todas elas e aos cristãos caberia dominá-las com vistas a fazer valer o bem. A questão é que esse “bem” exclui qualquer diferença em relação ao que é estabelecido como paradigma único do correto. E está aí a semente da perseguição aos grupos que defendem a diversidade de estilos de vida, de pensamento.

Não resta dúvidas de que a Teologia do Domínio como orientação espiritual animou a cúpula do poder Executivo no governo passado e se mantém animando a prática de um conjunto de políticos no Brasil, mas não é somente esta forma teológica um desafio à democracia, à diversidade, à superação das desigualdades sociais, mas a ganância econômica e de dominação de classe de muitos poderosos que não são somente religiosos.

Outro ponto importante para finalizar é que vem crescendo no Brasil aqueles evangélicos críticos desta extrema direita, da politização das igrejas. Esses evangélicos críticos não defendem todas as bandeiras progressistas, mas são mais afinados com a defesa da justiça social, missão deixada por Jesus Cristo, do que com os interesses dos chamados “coronéis da fé”. Há ainda uma esquerda evangélica diversificada internamente e que se reúne em algumas denominações e comunidades, afastados da vida eclesiástica, mas com vigor na fé. Dado o crescimento evangélico na sociedade como um todo, em especial em suas bases, observaremos cada vez mais essa face evangélica na esquerda popular, engajada ou não em partidos, mas sempre em defesa da democracia e diversidade. As forças democráticas liberais ou de esquerda, acadêmicos em suas pesquisas, partidos em suas convenções, vão precisar considerar cada vez mais esses atores sociais em suas investigações e/ou ações políticas. 

 

Fonte: IHU

 

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