Sergio Di Benedetto: Cristianismo, uma
religião fundada no ódio (social)
No vasto mundo da
rede, os cristãos parecem se caracterizar mais pela agressividade e pela
violência do que pela misericórdia e pelo amor: é um contratestemunho do qual
precisamos estar conscientes.
O comentário é de
Sergio Di Benedetto, doutor em Literatura Italiana pela Universidade da Suíça
Italiana, em Lugano. O artigo foi publicado por Vino Nuovo,
>>> Eis o
texto:
Naquele entrelaçamento
cada vez mais estreito (e nem sempre salutar) entre onlife e online, muitas
vezes me deparo com postagens sobre “temas religiosos”, sobretudo porque parte
da minha “bolha” social discute e compartilha isso. O que me impressiona, sempre,
é o estilo de muitas pessoas, explicitamente cristãs (como desejam declarar,
começando já pelas imagens emblemáticas dos próprios perfis: figuras sagradas,
ícones etc.), que, quando se veem tratando de qualquer assunto, manifestam
modos, tons e posturas muito agressivas, desrespeitosas e até violentas. A
ironia logo dá lugar ao sarcasmo venenoso e depois a epítetos pouco
edificantes, até chegar ao insulto (às vezes, acredito, com algumas implicações
jurídicas). Nada de escuta, nada de estima recíproca, nada de benevolência: o
capacete e a lança (verbal) empunhada são o que há de mais difundido entre os
usuários “católicos” médios e etariamente maduros que passam (muito) tempo na
internet.
Divididos em bandos,
substituímos muitas vezes o diálogo pacato – mesmo nas diversas sensibilidades
– por um conflito violento sem trégua. Os haters, que tanto conforto encontram
no mundo virtual, também e sobretudo protegidos por um vil anonimato, fazem
escola e agora não têm mais discípulos, mas verdadeiros mestres nas bolhas de
inspiração católica.
Aquilo que se
comunica, entre um santinho e uma jaculatória (a gramática artística “cristã”
que circula pela rede mereceria uma discussão à parte), é uma inimizade
acalorada, um ódio sempre vivaz, um estado permanente de guerra. Nos poços
envenenados da internet, nas fossas lívidas das pradarias virtuais, os cristãos
são muitas vezes protagonistas.
Então, é cada vez mais
urgente nos perguntarmos que tipo de espetáculo damos como cristãos em rede,
entre redes sociais digitais e fóruns, sem esquecer que existe uma dimensão do
mal cometido que se amplia e se espalha também por meio do teclado.
A religião da
misericórdia e a fé em um Deus de amor tornaram-se muitas vezes, na conjugação
da internet, a religião do homem frustrado, a fé em um Deus que abençoa as
armas virtuais, a moral estéril do olho por olho. Especialmente quando nos
sentimos investidos de uma missão divina, voltada à defesa da (minha) verdade,
eis que o ataque é “descriminalizado”; a violência, tolerada, senão até
fomentada; o confronto, procurado e provocado.
Mas que impressão se
oferece a quem não compartilha a fé cristã? Uma religião que apostou tudo no
amor, a começar por Cristo, tornou-se uma religião do ódio. O mandamento
supremo, aquele fundamental “ama o teu próximo como a ti mesmo” é esquecido e
pisoteado (sempre com mil justificativas interiores).
A “diferença cristã”,
em rede, parece mais ligada à diferenciação para pior do que para melhor. Entre
uma devoção e uma novena, que olhar virtual sabemos cultivar na internet? Que
espaço de reflexão e de expectativa sabemos construir, vencendo também a tentação
da intervenção imediata, da resposta dura a ser lançada imediatamente? Sabemos
ainda esperar e, se necessário, decidir pelo caminho do silêncio para não
alimentar círculos verbais de prepotência?
Na verdade, em rede,
nós, cristãos, parecemos ser pessoas que vivem da raiva e não da esperança e da
caridade. O testemunho que oferecemos é muitas vezes um contratestemunho, uma
marretada na credibilidade da fé que professamos. Quem não compartilha as nossas
ideias torna-se um inimigo, e certamente não para ser “amado” (Mt 5,44), mas
para ser combatido tão a fundo quanto possível, especialmente se for um
“cristão a ser corrigido”.
Enfim, é interessante
sublinhar como não captamos a contradição entre a partilha de um versículo da
Palavra, uma citação de um santo, uma “imagem sagrada” e, ao mesmo tempo, a
entrada nos círculos viciosos do ódio online que destroem tudo, a começar pela
própria pessoa com quem se entra em relação.
Talvez, dada a
preponderância de certos modos agressivos e tão pouco evangélicos, a
indiferença do mundo não cristão pareça ser uma profilaxia útil e necessária: a
quem poderá parecer interessante uma religião que se baseia no amor, mas que,
depois, na internet, torna-se desculpa para o uso de palavras desrespeitosas,
violentas e ofensivas?
A paz que tanto
desejamos... também deve ser salvaguardada e construída online.
O pânico sobre a Teologia do Domínio e a
cegueira sobre a ganância laica. Por Christina Vital da Cunha
"O que se
convencionou chamar de Teologia do Domínio tem raiz em interpretações bíblicas
cujo livro de Gênesis é uma referência fundamental onde se lê: 'E Deus os
abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo
animal que rasteja pela terra' (Gênesis 1:28)", escreve Christina Vital da
Cunha, professora do PPG em Sociologia, coordenadora do Laboratório de Estudos
em Política Arte e Religião (LePar) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
>>>> Eis o
artigo.
Depois da manifestação
promovida por líderes evangélicos em apoio aos projetos da extrema-direita no
dia 25 de fevereiro de 2024 na Avenida Paulista, vimos uma onda de jornalistas
e estudiosos circunscrevendo os problemas nacionais em um grupo social, os
evangélicos neopentecostais e seus líderes, e em uma teologia, a Teologia do
Domínio. Qual a importância desses atores no cenário político atual? Em qual
medida a Teologia do Domínio e formulações correlatas como a Batalha Espiritual
e o Reconstrucionismo se manifestam na sociedade brasileira hoje? São perguntas
cujas respostas não se esgotam nas linhas a seguir, mas aqui sugiro olhares que
nos afastem do pânico e nos permitam pensar com mais serenidade e traçar
estratégias coletivas de afirmação democrática e civilizatória no sentido da
inclusão e justiça social.
O que se convencionou
chamar de Teologia do Domínio tem raiz em interpretações bíblicas cujo livro de
Gênesis é uma referência fundamental onde se lê: “E Deus os abençoou e lhes
disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre
os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela
terra” (Gênesis 1:28). A característica central desta Teologia advoga a
legítima e necessária dominação do mundo pelo cristianismo (seus fiéis e seus
valores e sistemas de crença) e isso não é novo. Contudo, atualizações desta
teologia acontecem de tempos em tempos (como ocorre em outras formas teológicas
também) atendendo a necessidades espirituais/eclesiásticas e/ou a interesses
institucionais/de poder. O contexto estadunidense de renovação e inspiração da
Teologia do Domínio tal como nos chega na atualidade data dos anos 1970. E o
que estava acontecendo nos Estados Unidos no período? Mudanças sociais
profundas que tensionavam relações de poder e as instituições sociais e estatais
que sustentavam o status quo ante. Sendo assim, naquele período, os direitos
civis de pessoas negras se afirmavam, inclusive com integração escolar entre
crianças negras e brancas imposta por força de lei, direitos sexuais e
reprodutivos com, por exemplo, a legalização do aborto, mobilização social
contra a participação estadunidense em guerras como a do Vietnã, nova fase do
movimento feminista e, com tudo isso, observava-se uma mudança na correlação de
forças desafiando a dominação/valorização da masculinidade viril e a supremacia
branca, ambos elementos basilares da identidade nacional norte americana
propagada na política, na economia e na cultura – e os filmes americanos foram
muito importantes nesse processo. As teologias, formas de ver o mundo e viver a
religião, estavam sendo remexidas naquele período por toda essa efervescência,
assim como a Teologia da Libertação na América Latina reverberava as questões
experimentadas pelos povos desta região.
Sendo a Teologia do
Domínio podemos dizer que ela tem uma matriz reformada também chamada
Reconstrucionismo e uma pentecostal, mais conhecida como Batalha Espiritual
cuja referência fundacional é o teólogo norte-americano Charles Peter Wagner.
Simplificando as várias singularidades existentes em suas concepções e
aplicações, podemos dizer que a Teologia do Domínio advoga a liderança de
cristãos na sociedade em áreas como religião, família, educação, governo,
economia, artes e entretenimento. A Opus Dei tem projeto similar tornado
explícito nos anos 1930 por ação de um religioso católico espanhol. Mas
continuemos entre evangélicos, alvos do principal pânico social recente. A Teologia do Domínio se expressa também na
chamada Doutrina dos Sete Montes, criada pelos norte-americanos Loren
Cunningham e Bill Bright, fundadores respectivamente da Jovens com Uma Missão
(Jocum) e da Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (Cru). Essa
doutrina, segundo eles, surgiu de uma revelação divina ocorrida em 1975, uma profecia
sobre a condição para o retorno de Cristo à Terra.
Há diferenças em como
as igrejas Anglicana, Presbiteriana e outras identificadas como reformadas ou
protestantes vivenciam a Teologia do Domínio e como este conteúdo teológico é
formulado em igrejas pentecostais e neopentecostais. É perceptível a diferença
de postura pública e estratégia de líderes como o Ministro e pastor André
Mendonça e o ex-Ministro da Educação Milton Ribeiro, presbiterianos, e pastores
como Silas Malafaia, bispo Edir Macedo, Valdemiro Santiago e o deputado federal
Nikolas Ferreira, por exemplo, todos ligados a denominações pentecostais,
neopentecostais ou igrejas renovadas. Enquanto o projeto de poder silencioso,
contínuo e exercido por influência é mais característico do primeiro grupo, um
modo comum ao exercício de poder exercido pelo conservadorismo católico durante
a República, o enfrentamento público, a valorização da visibilidade e a
perseguição ostensiva aos identificados como inimigos é característica do
segundo grupo. Na prática política é possível que esses atores reúnam forças,
mas têm origens sociais e estilos distintos.
O ato realizado em 25
de fevereiro por segmentos sectários evangélicos e políticos identificados como
extremistas revela um comportamento religioso que não é novo, embora venha se
fortalecendo na esteira do crescimento da extrema-direita como fenômeno político.
É um movimento encabeçado por alguns líderes evangélicos como Malafaia e
empresariais e funcionários e funcionárias de partidos, pessoas que representam
interesses institucionais como a própria Michelle Bolsonaro, também evangélica.
A face de movimento religioso naquele ato buscava tanto blindar a manifestação
na medida em que qualquer tentativa de deslegitima-la ou impedi-la seria tomada
como intolerante, como perseguição religiosa, como uma afronta à liberdade
religiosa, ao mesmo tempo em que tinha o objetivo de conduzir emocionalmente as
pessoas como se estivessem todos envolvidos em uma guerra do bem contra o mal
na qual a dominação religiosa da política se justificaria nessa medida.
Ou seja, como ficou
claro na fala inicial da ex-primeira dama e assalariada do Partido Liberal,
Michelle Bolsonaro, “misturar” religião com política é a saída para a dominação
do “bem” nesta esfera, pois o mal estaria à espreita. Nesses discursos, observamos
bastante como põem em curso um conjunto de gramaticas e emoções, ou seja, uma
retórica baseada na Batalha Espiritual na qual espíritos malignos disputariam
com Deus a condução. Mas a Batalha Espiritual se manifestaria não só no
espírito e nos sofrimentos ali verificados, mas também na “carne” = corpo e
instituições sociais como família, escola. As forças malignas estariam
dispostas a destruir todas elas e aos cristãos caberia dominá-las com vistas a
fazer valer o bem. A questão é que esse “bem” exclui qualquer diferença em
relação ao que é estabelecido como paradigma único do correto. E está aí a
semente da perseguição aos grupos que defendem a diversidade de estilos de
vida, de pensamento.
Não resta dúvidas de
que a Teologia do Domínio como orientação espiritual animou a cúpula do poder
Executivo no governo passado e se mantém animando a prática de um conjunto de
políticos no Brasil, mas não é somente esta forma teológica um desafio à democracia,
à diversidade, à superação das desigualdades sociais, mas a ganância econômica
e de dominação de classe de muitos poderosos que não são somente religiosos.
Outro ponto importante
para finalizar é que vem crescendo no Brasil aqueles evangélicos críticos desta
extrema direita, da politização das igrejas. Esses evangélicos críticos não
defendem todas as bandeiras progressistas, mas são mais afinados com a defesa
da justiça social, missão deixada por Jesus Cristo, do que com os interesses
dos chamados “coronéis da fé”. Há ainda uma esquerda evangélica diversificada
internamente e que se reúne em algumas denominações e comunidades, afastados da
vida eclesiástica, mas com vigor na fé. Dado o crescimento evangélico na
sociedade como um todo, em especial em suas bases, observaremos cada vez mais
essa face evangélica na esquerda popular, engajada ou não em partidos, mas
sempre em defesa da democracia e diversidade. As forças democráticas liberais
ou de esquerda, acadêmicos em suas pesquisas, partidos em suas convenções, vão
precisar considerar cada vez mais esses atores sociais em suas investigações
e/ou ações políticas.
Fonte: IHU
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