Lula e os militares – concessões
necessárias ou erros estratégicos?
A lógica
conciliadora de Lula tem como base o princípio de buscar a pacificação, mas é
preciso pensar se isto funciona
1.
A polêmica posição do
presidente sobre as rememorações do golpe de 1964 tem que ser discutida a
partir de uma visão mais abrangente das relações do governo com o estamento
militar.
Muito já foi dito e
escrito sobre a conveniência ou a necessidade de se “remoer o passado”. Por um
lado, assistimos a inúmeros e justos protestos de ex-presos políticos, parentes
de militantes “desaparecidos” ou os abertamente assassinados nos porões do regime
militar, assim como de dezenas de organizações que pregam a necessidade de uma
justiça de transição, com a revisão da lei de anistia (no que tange a sua
aplicação aos torturadores e assassinos) e a retomada da comissão de mortos e
desaparecidos.
Por outro lado, vemos
o governo “esquecendo” por mais de um ano em uma gaveta do ministro da Casa
Civil o decreto que nomearia a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, proposta
pelo ministro Silvio Almeida. E vemos a ordem de silêncio dada por Lula aos entes
governamentais para a rememoração do golpe de 64.
2.
A posição de Lula faz
parte de uma atitude que não é nova. Desde os seus primeiros governos ele
adotou uma postura de evitar “provocar os quartéis”. Ordens do dia dos
comandantes militares nomeados por ele repetiram, ano após ano, loas ao
“movimento democrático” dos militares, execrável pretexto da quartelada que
traumatizou o país por 21 anos e que deixou raízes daninhas até hoje. Sem uma
palavra crítica do presidente. Lula também evitou interferir nos programas de
formação dos militares ao longo desses anos, permitindo que os novos oficiais
fossem doutrinados na justificativa, não só do golpe, mas em tudo que fizeram
os militares ao longo de mais de duas décadas de repressão feroz.
Finalmente, Lula nunca
utilizou seu poder como chefe das Forças Armadas para promover oficiais
comprovadamente, senão democratas, pelo menos voltados exclusivamente às suas
atividades profissionais. Notórios agentes do golpismo não tiveram qualquer
óbice nas suas promoções, todas decididas exclusivamente pela hierarquia, ela
também oriunda dos tempos da ditadura.
Foi assim que, por
exemplo, o capitão Augusto Heleno, participante ativo em uma tentativa de golpe
em 1977, do ministro do exército, general Silvio Frota, contra o presidente da
época, general Ernesto Geisel, pode chegar ao posto mais alto na hierarquia militar,
atravessando os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e
Dilma Rousseff.
Esta atitude de
passagem de pano no golpismo vem de longe. Enquanto isso, oficiais legalistas
foram afastados ou preteridos pelos hierarcas das Forças Armadas ao longo da
história. Exemplo notório, mas longe de ser único, é o do capitão Sérgio
“Macaco”, que se recusou em 1968 a utilizar o seu comando no PARASAR, do
ministério da Aeronáutica, para sequestrar e lançar ao mar “inimigos do
regime”.
Tenho outro exemplo
menos dramático, mas significativo. Meu tio Carlos de Matos, brigadeiro e
comandante da Zona Aérea de São Paulo em 1968, censurou a participação não
autorizada de oficiais desta arma na invasão da faculdade de filosofia da USP,
na rua Maria Antônia, e pagou este gesto com seu afastamento e colocação em
disponibilidade por anos, até sua passagem prematura para a reserva.
O raciocínio de Lula
foi e é, sempre, de cunho político e mais centrado no presente do que no
passado ou no futuro. Neste seu novo governo o presidente se viu confrontado
com uma tentativa de golpe, antes mesmo de sua posse e outra vez logo nos
primeiros dias da sua gestão. Não se sabia, até recentemente, a amplitude
destes complôs, agora revelados pelo inquérito do STF e da Polícia Federal.
Mas Lula tinha claro
que as Forças Armadas estavam contaminadas pelo bolsonarismo e o tinham como um
inimigo a ser abatido na primeira oportunidade. Sua opção foi a mesma dos seus
governos anteriores e a nomeação de José Múcio Monteiro para o ministério da
Defesa indicava que queria pacificar as relações. Isto não impediu que os
complôs avançassem, chegando até a intentona de 8 de janeiro. Lula foi
desafiado pelos ministros da Marinha e do Exército, o hoje “herói da
democracia” general Gomes Freire, que se recusaram a participar da troca de
comando sob o seu governo. Fingiu que não viu.
Em seguida o
presidente engoliu a indisciplina e ameaça feita pelo comandante militar do
Planalto no dia da intentona, impedindo a ação da polícia do DF que buscava
prender os golpistas invasores dos palácios da Esplanada que tinham se
refugiado no acampamento às portas do Quartel General do Exército. “Tenho mais
tropa do que você”, disse o general, enquanto seus tanques se posicionavam
defendendo os meliantes.
O ministro da Justiça,
Flávio Dino e o interventor na secretaria de segurança do DF, Ricardo Capelli,
consultaram Lula e engoliram a afrontosa indisciplina. Lula só tomou uma medida
como autoridade máxima neste período, ao exigir a demissão do comandante do
Exército, general Arruda, quando este se recusou a revogar a nomeação do
tenente coronel Mauro Cid para o comando de uma força de combate ultra
especializada, localizada a uma hora da sua residência. E nomeou o hoje também
“herói da democracia”, general Thomás Paiva, para substituí-lo, não por ser de
maior confiança, mas por ser o mais graduado dos candidatos natos. Parece que
deu sorte e o general anda defendendo o profissionalismo na Força.
Embora tenha travado a
segunda tentativa de golpe com a recusa de decretar uma GLO no Distrito
Federal, pedida pelos militares através do seu representante no governo, o
ministro da Defesa José Múcio Monteiro, Lula rapidamente procurou agradar as
Forças Armadas com generosas dotações orçamentárias que deram aos militares
mais recursos do que receberam os ministérios da Educação e da Saúde somados.
E evitou fazer a
limpeza dos mais de sete mil militares contratados por Bolsonaro em seu
governo, ocupando postos em vários ministérios. Até organismos estratégicos
como Abin e o Gabinete de Segurança Institucional continuaram relativamente
intocados, apesar das falhas ou conivências no 8 de janeiro.
Não cabe ao presidente
fazer justiça e punir os infratores golpistas. Isto é tarefa para Xandão e para
a PF (e deveria ser para a justiça militar, que hoje se finge de morta). Mas
limpar o governo dos militares contratados por Jair Bolsonaro é, sim, uma decisão
que pode (e deveria) ser tomada pelo presidente. E elaborar listas de promoções
com base no profissionalismo versus ativismo político também está na alçada de
Lula.
3.
A lógica conciliadora
de Lula tem como base o princípio de buscar a pacificação, mas é preciso pensar
se isto funciona.
As nossas Forças
Armadas, além de viverem ainda orientadas pelas doutrinas da guerra fria e pela
adesão automática aos comandos dos EUA, passaram por um período de fragilização
dos princípios da disciplina e da hierarquia, abalados de cima para baixo em todos
os escalões da oficialidade pela anarquia bolsonarista. Foram anos de
militância nas redes sociais, com manifestações políticas, sempre de extrema
direita, de inúmeros oficiais.
A inteligência do
governo, se é que ela existe e pode ser confiável, não teria dificuldades em
identificar quem se manifestou em seus sites, facebooks e blogs nos últimos
anos. Isto permitiria plotar, senão quem são os legalistas e profissionais,
pelo menos os que não se arriscaram em botar a cara bolsonarista e golpista à
mostra. E, desde logo, manifestar-se politicamente é algo vedado a militares da
ativa e uma leva de punições disciplinares teria um efeito salutar para mostrar
o rumo certo para a oficialidade. Mas o general Thomás Paiva está passando o
pano no passado e cobrando de seus subordinados que se limitem, nas redes, a
mensagens sobre futebol, o clima ou as suas atividades profissionais… a partir
de agora.
Os golpes frustrados e
denunciados, na opinião pública e na justiça, levaram o golpismo da
oficialidade para a defensiva. Isto não quer dizer que não houvesse (e que
continue a haver) uma enorme adesão ao bolsonarismo golpista neste estamento,
mas a falta de comando na implantação do golpe paralisou esta massa de
potenciais aderentes.
Não se pode achar que
a passividade atual da oficialidade signifique uma segurança para o futuro. Ela
está mais para uma tática de preservação de cargos e funções e por uma paciente
espera de uma oportunidade. Isto já aconteceu desde o fim do regime militar e
deu certo, até o desastre do governo Bolsonaro e a vacilação dos generais em
endossar o golpe.
Com esta ameaça
pairando permanentemente sobre a cabeça do presidente (e as nossas…) a melhor
estratégia é essa adotada pelo presidente? Acalmar a fera com todo tipo de
concessões faz do pitbull um doce poodle? A decisão de Lula de calar as
manifestações oficiais sobre o golpe de 64 vai nesta direção. E é bem possível,
senão provável, que o aniversário desta última tentativa de golpe, no próximo 8
de janeiro, encontre a mesma atitude de “evitar remoer” o passado.
O cálculo de Lula é
centrado em uma certeza e em uma hipótese. A certeza é que as amplas massas não
estão sensíveis a este debate do passado. Não foi por passar o pano para os
militares que Lula está perdendo apoio na opinião pública, algo causado mais pela
epidemia de dengue, pelos altos preços dos alimentos e pelas questões chamadas
de “costumes” (maconha, aborto, …) ou do “comunismo”, estas últimas sempre
atiçadas pelo bumbo evangélico e pelo bolsonarismo.
Lula não é bobo e
sabia muito bem que os democratas em geral e a esquerda em particular iriam
cair de pau e o fizeram. Nem os mais ferrenhos defensores do presidente no PT
saíram em sua defesa, preferindo um silêncio obsequioso. Mas Lula também sabe
que estes críticos não têm alternativa senão apoiá-lo, mesmo torcendo o nariz
ou resmungando. Claramente, não existe alternativa de esquerda à Lula, desde
que ele puxou a greve dos metalúrgicos em São Bernardo em 1978.
E não vai a haver
alternativa tão cedo, pelo andar da carruagem. Ou seja, Lula avaliou que a sua
hipótese de apaziguar os militares compensava receber críticas da esquerda e
talvez até estas críticas o ajudassem a se demarcar junto às Forças Armadas. O
cálculo político faz sentido, na lógica de Lula.
4.
O problema não está
neste último gesto, mas no conjunto da obra. É a estratégia que está errada e
ela apenas mantém a espada de Dâmocles erguida, mas não afastada. Lula avalia a
quantidade de problemas que tem que enfrentar no convívio difícil com um Congresso
de ultradireita (e com o freio nos dentes … de Artur Lira), no esforço de
retomar um desenvolvimento econômico distributivo, na crise ambiental que se
agrava a cada dia e prefere não mexer no vespeiro de intervir nas Forças
Armadas.
O preço a pagar é
viver sob a chantagem constante de um público que tem um diferencial em relação
aos outros: trata-se de gente com armas na mão e uma ideia (de direita) na
cabeça. Reformar as Forças Armadas, redirecionar o seu papel na atualidade,
garantir a hierarquia e a disciplina é algo difícil, mas a ocasião propiciada
pela derrota do golpismo nas intentonas golpistas é única. Perdê-la por não
usar a autoridade de comandante em chefe e aceitar engolir sapos cururus que
corroem o seu poder de mando é, a meu ver, um erro histórico e pode
comprometer, não só o futuro do seu governo, mas o futuro do país.
Ø
Lula não pode e nem deve temer o militar.
Por Manuel Domingos Neto
A ministra Luciana
Santos e o ministro Camilo Santana suspenderão o financiamento de pesquisadores
que estudem o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu?
A UNB será impedida de
promover homenagem póstuma a Honestino Guimarães, assassinado pela
ditadura?
O Ministério da
Educação sustará reverências a Anísio Teixeira e Paulo Freire? Deixará de
implementar políticas contrárias ao ensino cívico-militar propugnado pelos
fascistas? Punirá professores que aludam ao golpe militar em sala de aula?
A ministra Marina
Silva cancelará estudos ambientais que se refiram à devastação da Amazônia
promovida pela Ditadura?
O ministro Sílvio
Almeida coordenará o “esquecimento” do terrorismo de Estado praticado por mais
de duas décadas?
A ministra Anielle
Franco ignorará a homofobia e a misoginia praticada nos quartéis?
As homenagens aos
golpistas serão suprimidas dos logradouros das cidades brasileiras?
O busto do golpista
Castello Branco será retirado do hall da Escola de Comando e Estado Maior do
Exército?
A orientação
governamental para que os agentes públicos silenciem sobre o golpe de 1964 é
esdrúxula e inexequível. Como entende-la?
Dissemina-se entre
certos democratas a falsa ideia de que a contenção do intervencionismo político
castrense deve ser operada pela Polícia Federal, Ministério Público e STF. O
governo não teria nada a ver com isso. Lula teria agido corretamente ao interditar,
no âmbito governamental, iniciativas relacionadas ao Golpe de 1964. Assim,
apaziguaria “tensões” e governaria com tranquilidade.
Essa ideia destitui
Lula da condição de Comandante Supremo das Forças Armadas, conforme definido
pela Constituição. Cabe ao presidente definir as diretrizes para a organização,
funcionamento e emprego do aparelho militar. Cumpre-lhe exigir que seus subordinados
acatem a lei.
A orientação de Lula
confere autonomia descabida às Forças Armadas. As corporações militares não
podem ser entregues à sua própria vontade. Isso respaldaria a noção de que o
militar constitui poder moderador, conforme o discurso fascista. Militar não é
responsável, em última instância, pelos destinos do Brasil.
Não cabe ao Comandante
Supremo negociar politicamente com os comandantes. Comandante comanda; político
negocia com político.
A ideia de confronto
entre o poder político e as Forças Armadas admite a insubordinação. Ao poder
político cumpre exercer autoridade constitucional cobrando obediência e
disciplina. A atuação do Judiciário não suprime a responsabilidade do
Presidente.
É compreensível a
atitude temerosa de Lula diante dos quartéis. Todos nós tememos o desconhecido
e Lula, como a maioria dos brasileiros, desconhece o militar.
Lula parece não
entender que o militar é um agente público educado para cumprir ordens. Se não
as recebe, decidirá por conta própria o que fazer. Tramará em busca do comando
político. Desavisado, Lula está estimulando a insubordinação da caserna.
É verdade que a
Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário cercam os militares mais
reconhecidos como atuantes na arena política. Mas trata-se de um cerco
limitado: o conjunto das corporações têm responsabilidades na eleição de um
promotor do descalabro. A punição de algumas dezenas de oficiais, mesmo de alta
patente, será recado importante, mas insuficiente.
O Brasil precisa de
novas diretrizes para a Defesa Nacional. Se bem definidas, essas diretrizes
orientarão uma reforma do aparelho militar.
Não se trata de punir
e, muito menos, promover desforra. Trata-se de preparar o Estado para exercer
sua soberania em um mundo conflagrado. Neste mister, o Comandante Supremo é
insubstituível.
O grito “sem anistia”
exprime a vontade democrática. Mas há um enorme fosso entre essa vontade e a
organização Forças Armadas missionadas para garantir a soberania nacional e
democracia.
Quando Lula detiver
conhecimento dos problemas da Defesa e dos assuntos militares, compreenderá que
não tem direito de temer o soldado. Nem terá motivo para isso. Emitindo ordens
claras, amadurecidas e justificadas, o soldado lhe obedecerá.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em A Terra é Redonda/Brasil 247
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