segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Por que são dez anos e não dois de guerra na Ucrânia

Em 24 de fevereiro de 2022, Maryna Lyushyna ministraria um curso de culinária com chocolate. Ela arrumou as mesas na noite anterior e estava ansiosa pela chegada das crianças que compareceriam ao seu teatro infantil na cidade de Konotop, no norte da Ucrânia. Na véspera, a atriz e mãe de dois filhos não dormiu bem: ouviu barulhos e pensou que fosse o bonde.

"Às sete da manhã, um amigo telefonou e disse: 'ligue a TV, é a guerra'", lembra Lyushyna, que agora mora em Bonn, na Alemanha.

Konotop fica a cerca de 80 quilômetros da fronteira com a Rússia. Dois anos atrás, a cidade foi cercada por tropas russas em questão de horas. Houve resistência, mas as forças eram desiguais, e o exército ucraniano recuou (eventualmente, a cidade acabaria sendo libertada pelas tropas de Kiev).

Nos primeiros dias da guerra, Lyushyna fugiu para a casa da mãe nos arredores da cidade, onde encontrou soldados russos.

"Perguntei o que eles faziam ali. E a resposta foi: 'viemos buscar o presidente [Volodimir] Zelenski'", conta. Ela ficou indignada: era como se a Ucrânia não fosse um Estado independente.

Segundo a ucraniana, os ocupantes russos pensaram que seriam bem-vindos – e ficaram surpresos quando não foi bem assim. Após três dias, Lyushyna fugiu para o oeste da Ucrânia e de lá, juntamente a milhões de compatriotas, para a União Europeia. O marido ficou.

Hoje, ela ainda se sente desamparada e traída. "Não esperava que houvesse uma grande guerra. Como pode ocorrer algo assim no meio da Europa em pleno século 21?", questiona. Lyushyna acusa o Ocidente de ver a Ucrânia como um peão e uma moeda de troca. "A Europa observou e esperou para ver se seríamos mortos ou não", diz.

Nem todos os aliados da Ucrânia agiram com passividade. Estados Unidos, Reino Unido e outros países já forneciam armas a Kiev antes da invasão russa. Apesar da demora em sua reação, a Alemanha está atualmente no topo da lista de países apoiadores.

Muitos ficaram surpresos na época, inclusive na própria Ucrânia. Mas, na realidade, o ataque russo havia começado oito anos antes, com a anexação da Crimeia, em 27 de fevereiro de 2014. Naquela época, homens armados, mascarados e sem distintivo ocuparam o parlamento e a administração da península. O presidente russo, Vladimir Putin, admitiu mais tarde que eram seus soldados.

Não é uma guerra congelada

Na época, a Ucrânia ficou gravemente debilitada. Em Kiev, protestos da oposição forçaram o então presidente pró-Moscou Viktor Yanukovych a fugir para a Rússia. O novo governo pró-Ocidente não se atreveu a defender a Crimeia com armas. O Ocidente também recomendou que Kiev agisse com moderação – e isso mesmo quando batalhas na região carbonífera do Donbass, no leste da Ucrânia, eclodiram na primavera europeia de 2014.

Não houve sanções duras. A Rússia colocou o seu próprio povo à frente das forças pró-Moscou em Donetsk e Lugansk e os armou secretamente cada vez mais. O Ocidente tentou congelar o conflito por meio de negociações; a Ucrânia não impôs uma lei marcial. A guerra foi chamada de "operação antiterrorista".

Tudo isso fez a guerra parecer distante para muitos. "A maioria dos ucranianos não entendia que a guerra era deles", diz Lyushyna.

Isto não se aplica a Maksym Kosub. O intérprete de Kiev lembra-se de ter participado de um protesto que pedia o rompimento das relações com Moscou em frente à embaixada russa, em junho de 2014. "Entendi que era uma guerra", diz Kosub. Ele se ofereceu como voluntário para a frente no Donbass e foi ferido. Fazia parte de uma minoria patriótica que se interpôs no caminho da Rússia – e voltou a lutar no exército ucraniano após o ataque de fevereiro de 2022.

A Ucrânia deveria ter lutado pela Crimeia? Muitos pensam que sim. "Sou inclinada a dizer que deveríamos ter tentado", destaca Susan Stewart, especialista em Ucrânia do think tank de Berlim Fundação Ciência e Política (SWP). No entanto, ela ressalta a "liderança fraca em Kiev" na época.

O fato é que a Rússia também concentrou tropas ao longo das fronteiras ucranianas em 2014 e ameaçou uma invasão massiva. O exército ucraniano na Crimeia ficou desmoralizado e grande parte desertou.

A importante ajuda ocidental

A guerra no Donbass parecia congelada entre 2015 e 2022, mas, na verdade, foi uma guerra de trincheiras, com milhares de mortes. Por que o Ocidente acreditou que continuaria assim, não fornecendo armas pesadas à Ucrânia e seguindo com projetos empresariais com a Rússia, como o gasoduto Nord Stream 2? Susan Stewart vê a resposta na crença de que a integração pode prevenir guerras na Europa.

Depois de 2022, a Ucrânia mudou. "Nós resistimos e continuamos lutando pela Ucrânia, mesmo que o preço seja muito alto", afirma o soldado Maksym Kosub.

O exército evoluiu muito e se profissionalizou, embora ainda haja problemas. "A sociedade tem demonstrado muita auto-organização", diz Kosub. Como exemplo, ele cita os voluntários que abastecem o exército há dez anos – com carros, aparelhos de visão noturna e medicamentos.

Kosub acredita que a guerra será longa, com muitas vítimas, mas com uma vitória ucraniana no final. Olhando para trás, ele garante: "Todos subestimaram Putin e a sua vontade de ignorar as regras".

Lyushyna também acredita na vitória. A guerra a tornou mais dura e intransigente em relação à Rússia, à língua e à cultura russas. No futuro, ela gostaria de voltar para o marido, mas não quer mais viver em Konotop, e, sim, no oeste da Ucrânia: "lá é mais seguro." A Rússia continuará sendo um vizinho perigoso.

Stewart não ousa fazer previsões para além de um ano. Ela não espera nenhuma "surpresa" na Rússia. Com o apoio ocidental, a Ucrânia resistirá, mas a exaustão após dez anos de guerra se torna cada vez mais perceptível. "Não se pensa o suficiente sobre o que acontecerá se a Ucrânia perder", diz a especialista. Os custos seriam "muito mais elevados", avalia.

 

Ø  Ucrânia promete vitória no segundo aniversário da invasão russa

 

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, prometeu neste sábado (24) que o país vencerá as tropas da Rússia, no dia em que a guerra completa dois anos e no momento em que Kiev enfrenta um desgaste com a redução da ajuda das potências ocidentais para enfrentar Moscou.

“Nós estamos lutando por isto durante 730 dias de nossas vidas. E nós venceremos, no melhor dia das nossas vidas”, afirmou Zelensky em um evento ao ar livre no aeroporto de Gostomel, perto de Kiev, na presença de alguns líderes ocidentais.

Mais cedo, apesar das dificuldades atuais, o comandante das Forças Armadas ucranianas, general Oleksander Sirski, insistiu que a vitória está na “unidade”.

“A luz sempre prevalece sobre as trevas”, afirmou o militar, que foi nomeado para o cargo no início de fevereiro, como substituto do general Valeri Zaluzhni.

A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, desembarcou em Kiev, onde presidirá uma reunião virtual do G7 sobre a ex-república soviética. O encontro terá a participação de Zelensky e examinará uma nova série de sanções contra Moscou.

O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, seu homólogo belga Alexander de Croo e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também estão na capital ucraniana para expressar apoio ao país no segundo aniversário da invasão russa.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, esperava ocupar a capital Kiev em poucos dias quando ordenou a invasão, em 24 de fevereiro de 2022. Mas as tropas de seu país sofreram derrotas humilhantes para a resistência ucraniana.

A Ucrânia, por sua vez, teve seus planos frustrados em 2023 com o fracasso de uma grande contraofensiva no verão (hemisfério norte, inverno no Brasil). Atualmente, o Exército de Kiev enfrenta a escassez de soldados, munições e de baterias antiaéreas.

– Unidade –

A presença de vários líderes ocidentais neste sábado em Kiev não modifica a realidade: a ajuda dos Estados Unidos está bloqueada pelos opositores republicanos do presidente, Joe Biden, e a assistência da União Europeia enfrenta atrasos.

Zelensky afirmou na sexta-feira que as decisões sobre a entrega de ajuda militar devem ser “a prioridade”.

O Reino Unido anunciou neste sábado um pacote de 245 milhões de libras (1,54 bilhão de reais) a Kiev para estimular a produção de armas e mais 8,5 milhões de libras (R$ 53,8 milhões) de ajuda humanitária.

O secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, afirmou que Kiev e os aliados não devem perder a esperança porque “o objetivo do presidente (russo Vladimir) Putin de dominar a Ucrânia não mudou”.

Ao desembarcar em Kiev, Von der Leyen, presidente do Executivo europeu, destacou a “resistência extraordinária do povo ucraniano” e afirmou que o bloco apoiará a nação “até que o país seja finalmente livre”.

A solidariedade econômica, no entanto, começa a demonstrar fragilidades devido ao bloqueio das fronteiras por agricultores poloneses que não aceitam o aumento das importações de cereais ucranianos.

– Uma questão de fé –

Ao mesmo tempo, a Rússia celebra o aumento das ações no front e reivindicou vitórias como a tomada de Avdiivka, no leste do país, em 17 de fevereiro, após meses de combates violentos.

As tropas russas também passaram à ofensiva em outra área da região leste, nas proximidades Mariinka.

“Hoje, em termos de proporção de forças, a vantagem está do nosso lado”, afirmou o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, durante uma visita às tropas neste sábado.

Porém, os ucranianos entrevistados em Kiev pela AFP se declararam convencidos da vitória contra os invasores.

“Aprendemos a resistir, a nos fortalecer e a acreditar. Aqui dizemos que quem tem fé será recompensado”, declarou Nina, uma aposentada.

A Rússia também está animada com as vitórias recentes. Putin parabenizou na sexta-feira os “heróis” de seu Exército que lutam na Ucrânia. Quase 500.000 pessoas se alistaram nas Forças Armadas em 2023 e outras 50.000 em janeiro, enquanto a economia do país foi orientada para apoiar a máquina de guerra.

A oposição russa foi dizimada pela repressão e pela morte de seu principal líder, Alexei Navalny, em 16 de fevereiro em uma prisão na região do Ártico.

Putin não tem nenhum obstáculo no caminho de sua vitória nas eleições presidenciais programadas para março.

Mas os críticos, que podem ser condenados a longas penas de prisão, mantêm prudência. “Estamos tão afastados da verdade que é difícil tomar decisões”, disse Konstantin, um professor de teatro.

Neste sábado, a polícia russa prendeu várias pessoas, incluindo jornalistas, durante uma manifestação de esposas de soldados russos que exigem o retorno dos militares que estão na batalha da Ucrânia.

Todos os sábados, as esposas dos soldados depositam flores no túmulo do soldado desconhecido, uma ação simbólica perto do muro do Kremlin, conhecida como movimento “Put Domoi” (caminho para a casa, em russo).

Ao comentar as sanções que isolaram a Rússia do mundo ocidental, o ex-presidente russo e atual número dois do Conselho de Segurança, Dmitri Medvedev, afirmou que o país se vingará das medidas.

“Temos que nos recordar e nos vingarmos deles sempre que possível. São nossos inimigos”, escreveu no Telegram após as novas restrições anunciadas nos últimos dias por Estados Unidos, UE e Reino Unido.

 

Fonte: Deutsche Welle/IstoÉ

 

Nenhum comentário: