sábado, 24 de fevereiro de 2024

Gravuras rupestres, catamarã, cerâmicas: a história guardada pelos rios na Amazônia

A maior seca registrada em 121 anos na bacia amazônica revelou no leito dos rios, além da crise ambiental e social, importantes fragmentos da história de ocupação da região de diferentes fases dos últimos dos mil anos. Para pesquisadores, estudar o passado da Amazônia é um dos caminhos para o Brasil lidar com os desafios impostos pela crise climática.

No rio Negro, um dos gigantes da Amazônia, a estiagem severa trouxe à tona, após 13 anos submersas, gravuras rupestres no sítio arqueológico e geológico Ponta das Lajes, próximo ao Encontro das Águas, na orla de Manaus. Neste local, as gravuras foram identificadas pela primeira vez em 2010, ano da segunda maior seca registrada na região. Em 2023, com o nível da água mais baixo, petróglifos de animais e rostos humanos ainda não catalogados apareceram no sítio.

Entre as marcas naturais do pedral da Ponta das Lajes há incisões indicando que os povos que viveram no local antes da colonização europeia usavam as rochas como amoladores e polidores de ferramentas. O arqueólogo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) Jaime Oliveira afirma que, pelas características, funcionou ali, no mesmo período da era cristã, uma oficina para confeccionar instrumento de caça. “Nesse local, os povos confeccionavam ferramentas pré-coloniais com técnicas de lascamento para obter objetos cortantes e bifaciais, usados no dia a dia deles para cortar alimentos e caçar”, explicou.

O arqueólogo trata as gravuras rupestres como “emotions pré-colombianos”. “As gravuras nitidamente têm sorriso no rosto, feição mais dramática. Esses registros rupestres têm a função de comunicação social. São tais quais os nossos emotions porque também conseguem passar uma mensagem com as diferentes feições”, disse.

A 260 quilômetros de Manaus, outros "emotions pré-colombianos" foram encontrados no município de Urucará, no baixo Amazonas, em ao menos dois locais. Na filmagem feita há um século pelo cineasta documental Silvino Santos, “Amazonas, o maior rio do mundo”, petróglifos de animais e rostos humanos aparecem como parte do cenário regional na estiagem dos rios. O filme com imagens da Amazônia no século passado era dado como perdido há décadas e, após ser reencontrado na República Tcheca, foi exibido em 2023 em algumas capitais do País.

Uma das hipóteses é a de que os povos que fizeram as gravuras nas pedras eram nômades e, ao percorrerem as margens do rio, deixaram suas marcas. A pedagoga Nísia Gama, que mora no Urucará e visitou os locais com os petróglifos, teme que a história se perca por abandono das autoridades. Ferramentas pré-colombianas foram retiradas do local após a descoberta, pessoas defenderam levar as rochas para a sede urbana da cidade e a grande procura deixou rastro de lixo e vandalismo no sítio arqueológico. “São muitos desenhos em muitas pedras. Para mim, precisamos criar o sítio arqueológico de Urucará, trabalhar na educação do povo para preservar o local. Buscamos, mas o Iphan nem apareceu aqui”.

Os registros de cerca de dois mil anos, locais sagrados para os povos indígenas e protegidos no fundo dos rios, exigem mais estudos e maior investimento do Estado para resguardá-los como patrimônio histórico do país. A barreira é a desestruturação do setor, especialmente em se tratando de Amazônia.

O Amazonas, estado com extensão territorial maior que a região nordeste, contava até poucos meses com apenas um arqueólogo. Após o sítio arqueológico das Lajes reaparecer e ser vandalizado, outro profissional foi deslocado para o Amazonas.

É pouco para os 810 sítios arqueológicos já reconhecidos no Estado – 8.099 em toda a Amazônia. O quadro piora com a possibilidade de novos sítios revelados por estudo de pesquisadores do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ao investigarem 0,08% da Amazônia, o estudo encontrou 24 estruturas, ainda não catalogadas, no Mato Grosso, Acre, Amapá, Amazonas e Pará.

Com um sensor acoplado a aeronaves, os pesquisadores fizeram um raio-x da terra sem derrubar as árvores, que escondem a superfície da floresta. Onde se imaginava haver mata virgem foram identificadas áreas de terraplanagem, extensas obras de engenharia e cultivo e domesticação de plantas de sociedades pré-colombianas. A pesquisa indica que os povos ancestrais da população indígena brasileira dominavam técnicas sofisticadas de manejo da terra e das plantas.

O estudo aponta manejo e domesticação de pelo menos 50 espécie de árvores na região no período pré-colombiano, informou o geógrafo que liderou o estudo do Inpe, Vinicius Peripato. “Diversas espécies hiperdominantes na Amazônia foram intensamente manejadas por esses povos indígenas”.

Várias regiões da Amazônia, segundo o pesquisador, são resultado de intensa intervenção humana do passado. O estudo possibilita alterar o entendimento sobre o processo de recuperação da floresta. “Os estudos nos ajudam a perceber que a Amazônia não é tão intocada como muitos pensam. Essa questão é extremamente importante para a arqueologia e ecologia. O entendimento sobre como a floresta se regenera ao longo do tempo pode nos guiar nos diversos modelos de mudanças climáticas. Hoje, a ciência tem conhecimento sobre regeneração florestal de 40, 50 anos. Mas podemos estudar áreas que estão em processo de regeneração há 500 anos ou mais”, avaliou o geógrafo.

A interpretação de que secas mais severas já ocorreram no passado e que a floresta tem poder de recuperação não pode ser feita de forma linear sem aprofundamento e pesquisas. Para o geógrafo do Inpe, nenhum dado científico deve ser usado para negar a crise climática e a responsabilidade da sociedade em mitigar seus efeitos.

“A capacidade de desmatar do homem hoje é muito maior do que era naquele período. Além disso, essas comunidades indígenas tinham estilo de vida integrado à floresta. O que eles produziam estava voltado a um sistema agroflorestal. Por mais que abrissem áreas para construir essas estruturas, era baixo o impacto na floresta”, declarou.

·        Passado e presente

No livro Sob os tempos do equinócio, em que trata sobre oito mil anos de história na Amazônia Central, o pesquisador Eduardo Neves explica que os solos conhecidos como terra preta tem origem antrópica (que se refere à ação do homem sobre o meio ambiente). Neves indica que os locais com esse tipo de solo correspondem a territórios anteriormente ocupados por povos ancestrais.

Além de modificarem o terreno e estabelecerem padrões de assentamentos no passado, esses povos moldaram modelos para o futuro, segundo o autor. Isso porque a terra preta é fértil e “desempenha papel social e econômico” com produção de alimentos para cidades da região.

A seca severa dos rios também revelou novos artefatos de cerâmica indígenas. O Iphan Amazonas foi comunicado de ocorrências em Anamã e Tefé, no rio Solimões. “Vamos orientar as prefeituras municipais para que eles nos ajudem na ponta, nas urgências. Nossa mobilidade ficou limitada. Até meados de novembro só tínhamos um arqueólogo”, declarou a superintendente do Iphan, no Amazonas, Beatriz Calheiros.

Embora os vestígios revelados pela estiagem datem de cerca de dois mil anos, estudos anteriores indicam que a Amazônia brasileira, na sua região central, era ocupada por povos originários há mais de 12 mil anos.

O geógrafo Vinicius Peripato afirma na Amazônia brasileira havia sociedades densas no período pré-colombiano, como por exemplo na região do alto Xingu, que tinha uma constelação de cidades com independência, mas com bastante comunicação. 'Machu Pichu (Peru) deixou estruturas monumentais e tinham materiais líticos (relativo a pedras) para fazer essas construções. No território brasileiro, os povos só tinham madeira e terra, que degradam bastante. Os estudos mostram que as atividades na Amazônia brasileira eram bem badaladas”, afirmou.

·        Seca mostrou forte de madeira que assegurou o limite territorial do Brasil

A degradação da madeira também é um fator prejudicial ao forte Francisco Xavier, em Tabatinga, que deteriorou, foi parar no fundo do rio na cheia de 1932 e reapareceu em 2023, na maior estiagem medida na cabeceira de outro gigante da bacia amazônica, o rio Solimões. O que sobrou do forte é um registro histórico da ocupação da coroa portuguesa na tríplice fronteira do Brasil/Peru/Colômbia. As fortificações também representam a imposição da cultura europeia sobre os povos que habitavam a região e sofreram massacres e etnocídio. O nome foi uma homenagem ao irmão do Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal entre 1750 e 1777, período colonial no Brasil.

Nos séculos 17 e 18, os fortes da coroa portuguesa na Amazônia funcionaram estrategicamente na política de defesa das terras pertencentes a Portugal a partir dos tratados internacionais como de Tordesilhas (1494) e Madri (1750). Nos locais onde não havia pedra, a estrutura foi construída em madeira.

De acordo com pesquisa apresentada ao programa de pós-graduação da UNB (Universidade de Brasília) da pesquisadora Graciete Costa, a determinação de construção do forte de Tabatinga data de 1684, mas os registros históricos indicam que o mesmo só foi erguido em 1766.

A pesquisa mostra que a vulnerável estrutura de madeira foi importante para a resistência portuguesa do controle da maior extensão da bacia do rio Amazonas e sua localização representava o limite ocidental das terras portuguesas na região. O forte era a última e mais importante parada no rio Solimões.

Registros históricos de 1820 afirmam que a estrutura, que protegia a fronteira, sobrevivia “em ruínas” com canhões enferrujados. Outro registro, sete anos depois, diz que o forte não tinha sequer uma bandeira para alçar. Segundo a pesquisa, os canhões do forte já eram obsoletos quando ele foi construído e hoje estão no Museu Histórico do Rio de Janeiro, no Comando de Fronteira do Solimões/8º Batalhão de Infantaria de Selva e no fundo do rio Solimões.

Não é a primeira vez que vestígios do forte reaparecem. A cada vazante mais forte, a história emerge e também se perde com artefatos históricos saqueados pela própria população e desprezados pelo Estado. O comando de fronteira do Exército guarda parte desse material.

 

Fonte: Um só Planeta

 

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