Nova ordem
mundial do narcotráfico: como o negócio se expandiu para as Américas Central e
do Norte?
Novos
atores contribuem para a diversificação do "mercado da droga" nas
Américas. Antes concentrado nos países andinos, o cultivo da matéria-prima se
estendeu para o os vizinhos das Américas Central e do Norte. Em entrevista ao
Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, especialistas discutem a expansão desse
mercado ilegal e seus desdobramentos.
"Segundo
um relatório que foi emitido ano passado pela OCCRP, a Organized Crime and
Corruption Reporting Project, existe uma nova ordem mundial do tráfico",
conta Renata Alvares Gaspar, especialista em América Latina e professora da
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Nesse
cenário, despontam países da América Central e da América do Norte, com
destaque para Guatemala, Honduras e México, além de El Salvador e Panamá.
"A
América Central e outros países andinos eram apenas rota. Agora já há
plantações de folha de coca nesses Estados. No México e na Guatemala aumentou
muitíssimo. Nos países centro-americanos, por uma confluência de aspectos,
também se consolidaram nessa nova ordem mundial do tráfico de drogas. E Panamá
também entra, pela mesma razão que o mercado de coisas lícitas precisa do
Panamá, que é rota de escoamento. Liga o Pacífico ao Atlântico", analisa.
A
especialista ressalta ainda que esses mercados atuam como empresas
transnacionais, mas de artigos ilícitos. Como se trata de um mercado ilegal,
estratégias de guerrilha são adotadas para tocar o negócio. Como exemplo,
Gaspar cita como as facções criminosas que comandam o narcotráfico cooptam
pessoas.
O
plantio de coca, que aumentou na Guatemala e no México, se dá em regiões onde
vivem populações camponesas que sobreviviam do plantio de outras coisas menos
lucrativas, mas que se veem obrigadas a obedecer os mafiosos.
"Como
eles obrigam? Como as máfias fazem. Plata o plomo (dinheiro ou 'chumbo'). É
exatamente essa expressão que se usa", explica a professora sobre as
ameaças que são feitas a esses camponeses.
Uma
das razões para a diversificação desse mercado em expansão, segundo Gaspar, foi
o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
"Os dissidentes, que não aceitaram esse acordo, transformaram o que era um
monopólio no mercado diversificado".
Outro
fator elencado por Gaspar foi a necessidade da região de aumentar o plantio de
folha de coca frente à crescente distribuição do fentanil, droga sintética que
se popularizou e atingiu alta demanda de consumo, sobretudo nos Estados Unidos.
Questões
políticas também influenciam no mercado de drogas?
Para
a especialista, esse é um eixo central, mas pouco falado publicamente. Segundo
ela, é preciso descortinar que a questão das drogas tem muito a ver com a
democracia representativa e o sistema econômico.
"As
democracias representativas foram um meio adequadíssimo, por exemplo, para os
países centro-americanos adequarem e consolidarem o mercado de drogas ilícitas.
Por quê? Porque eram países que vinham de uma redemocratização, de sistema
autoritário para sistema democrático."
São
características desses países, segundo Gaspar, uma elite política que não se
considera latino-americana, mas europeia, e que precisa de dinheiro para se
estabelecer. Com a ausência de industrialização forte, o mercado do
narcotráfico acaba sendo o caminho "mais fácil" para obter esse
dinheiro.
"Então
as democracias representativas são um veículo importante para a consolidação
[do negócio], em países com institucionalidade baixa, com pouco desenvolvimento
social e já com essa tradição, porque a gente tinha aqui perto países que se
dedicavam a isso. Então eu acho que a gente não pode falar de questão de droga,
de nova ordem do mercado, de drogas ilícitas, do mercado de cocaína, sem falar
do nosso sistema econômico e sem falar dessa nova droga sintética chamada
fentanil", analisa.
Em
síntese, Gaspar avalia que o poder político em alguns países andinos e na
América Central se sustenta a partir do narcotráfico. "Não haveria poder
político se não houvesse a consolidação desse mercado polpudo e milionário
[…]."
Em
relação ao sistema econômico, a especialista o avalia como um "fio
condutor bárbaro" para o consumo de drogas. Como exemplo, ela cita os EUA,
país de grande poderio econômico e com alto público consumidor de cocaína, e
agora de fentanil.
"Quando
a gente olha com uma sensibilidade maior para o desenvolvimento das coisas como
elas estão, a gente não se espanta nem com as guerras, nem com o alto consumo
de drogas em países como os Estados Unidos, que é padrão histórico de um
sistema político patrimonial."
·
Por que o combate ao narcotráfico é
insuficiente?
O
combate ao narcotráfico ainda é, em grande parte, notabilizado pelo discurso de
"guerra às drogas", inflamado pelos EUA a partir da década de 1970,
resultando em ações repressivas, especialmente na Colômbia, líder na produção
de cocaína.
Para
Gaspar, a guerra às drogas não tinha como intenção acabar com o consumo de
drogas nos EUA, que começava a viver um boom nesse período. A questão era usada
como pretexto para que os norte-americanos tivessem uma base de apoio na
América do Sul.
"Não
tem melhor forma de você trocar apoio do que fazer coisas grandiosas, como
costurar acordo de paz, oferecer os seus tribunais para que os narcotraficantes
fossem processados, já que as instituições colombianas, nesse particular, não
se sentiam autônomas o suficiente por causa desse narcotráfico das
Américas", explica a especialista, destacando um interesse mais
geopolítico que propriamente de segurança ou saúde pública.
A
ideia de guerra difundida nos EUA é um fator que representa o fracasso dessa
política apresentada como combate ao narcotráfico, analisa Lenin Pires,
antropólogo e professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
"Eu
prefiro pensar que se os Estados Unidos não fossem uma sociedade fundamentada
na guerra, na ideia de guerra, a coisa seria diferente. […] Foi na Segunda
Guerra Mundial que eles se descobriram para a vocação de uma indústria de
guerra."
A
partir daí, Pires avalia que os EUA "aprendem que o que eles têm que fazer
em todo e qualquer lugar é guerra". A guerra às drogas, estabelecida
contra uma substância e seus efeitos, significa para os EUA "desenvolver a
indústria armamentista, desenvolver logística, estratégia, fazer com que a
presença do Exército americano se dê de maneira quase que legitimada", o
que envolve muito dinheiro.
O
fracasso dessa política deságua em acontecimentos corriqueiros, dos quais o
Brasil também faz parte, que é o surgimento de grupos paramilitares e o
envolvimento de agentes de segurança como elos do narcotráfico.
"As
forças policiais no mundo inteiro são pressionadas para não só fazerem vista
grossa para esse mercado, para essas dinâmicas de distribuição de drogas, mas
até mesmo se envolverem diretamente ou indiretamente. Se envolve indiretamente
quando aceita a chamada propina e se envolve de maneira muito direta quando
parte de seus agentes atuam no aluguel de armas, na distribuição de armas, ou
mesmo fazendo parte de determinados grupos que, de alguma maneira, acabam se
vinculando a essas dinâmicas, como o caso flagrante das milícias no Rio de
Janeiro" diz o antropólogo.
·
Há solução para os efeitos nefastos
produzidos pelo narcotráfico?
O
mercado de drogas se ancora na produção da violência ou, como cita Gaspar, ele
"vive da violência […], porque precisa sustentar seu poder ilegítimo
através da força".
A
solução enxergada pela especialista para tentar mitigar os efeitos do
narcotráfico é "discutir a governança global", com uma agenda
política internacional, uma vez que se trata de um mercado internacional. Ela
destaca, no entanto, que esse é um problema complexo e não exige fórmula
mágica.
Para
Pires, a continuidade de um sistema unicamente repressivo, que mira pessoas
pobres, pretas e faveladas, é "fundamentalmente enxugar gelo". Ainda,
em um cenário neoliberal, onde a educação pública é desqualificada por um lado,
"injeta em segmentos mais jovens uma desesperança, e no meio de tudo isso
tem um mercado pujante de droga", diz.
Além
da zona cinzenta, onde o Estado não chega e o crime organizado se situa como
poder paralelo, os especialistas também apontaram um Estado mínimo para
questões sociais e mais presente na forma repressiva como um problema a ser
superado.
A
possível reversão do cenário passa, de acordo com Pires, por um olhar mais
criativo por parte dos governos sobre o assunto.
"O
grande problema que envolve as políticas dos governos, que são políticas
executivas, é procurar enxergar essa realidade apenas com uma lupa, que é
geralmente a lupa do chamado direito que, no Brasil, é um direito repressivo,
feito de cima para baixo, por classes mais bem aquinhoadas, que, como eu falei,
são classes que são intolerantes com a diferença, particularmente a diferença
moral, a diferença ética, estética, de classe, e que têm na sua história o
ranço do racismo", aponta o professor, destacando que essa dinâmica
redunda em práticas de reclusão e precisa ser superada.
·
Lula e presidente do Equador conversam
sobre trabalho conjunto contra o narcotráfico na região
O
presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, conversou ao telefone na
terça-feira (23) com o presidente do Equador, Daniel Noboa, sobre o
enfrentamento ao narcotráfico e ao crime organizado na região.
De
acordo com nota divulgada pelo Palácio do Planalto, Lula se solidarizou com o
presidente Noboa na situação de violência no país vizinho e reforçou a
disposição do Brasil em ajudar o Equador por meio de ações de cooperação em
inteligência e segurança.
Ainda
segundo a nota, o presidente brasileiro destacou que a luta contra o crime
organizado é também um desafio do Brasil, nos vários níveis de governo,
agravado pela porosidade e extensão das fronteiras terrestres e marítimas do
país.
"Ambos
concordaram que os países sul-americanos devem estar unidos no combate ao crime
organizado, que atinge a todos, e que o fortalecimento da integração regional é
condição fundamental para a superação do problema. Ressaltaram, também, a
necessidade de coordenação com países consumidores de drogas para o combate
efetivo ao narcotráfico", diz a nota.
Uma
das formas de intercâmbio seria por meio da Comunidade de Polícias da América
(Ameripol), organização fundada no ano passado para estruturar a cooperação
entre polícias de países do continente. A entidade conta com 30 países e se
dedica à cooperação e ao intercâmbio de informações policiais. O Brasil ocupa
atualmente a secretaria-geral da organização.
Na
semana passada, a Polícia Federal brasileira ofereceu ao governo do Equador
apoio na área de inteligência para o enfrentamento às quadrilhas ligadas ao
narcotráfico, após reunião virtual que discutiu a crise no Equador com 14
países da Ameripol.
Entre
os apoios previstos estão treinamento em investigações e ferramentas
tecnológicas voltadas ao rastreio e à apreensão de bens e recursos financeiros
de quadrilhas, com o objetivo de descapitalizar os criminosos e dificultar suas
atividades ilegais. Também foram oferecidos treinamentos e equipamentos para a
identificação de presidiários, com uso de recursos de biometria.
·
Crise no Equador
No
dia 7 de janeiro, o líder da gangue Los Choneros, Adolfo Macías, o
"Fito", fugiu da Penitenciária do Litoral, onde cumpria pena de 34
anos de prisão por tráfico de drogas e homicídio.
A
fuga do criminoso gerou uma série de ações do governo equatoriano e, em
resposta, de criminosos: ocorreram explosões nas ruas e violência, como o
assassinato de dois policiais e o incêndio de carros, além da retenção de
agentes penitenciários nos presídios.
Em
meio à escalada da violência, o governo de Daniel Noboa estabeleceu um decreto
executivo de estado de emergência por 60 dias, que deu às Forças Armadas e à
Polícia Nacional mais poderes para neutralizar os grupos considerados
terroristas.
Uma
emissora de televisão chegou a ser invadida por homens armados e encapuzados
durante a transmissão, em Guayaquil, no dia 9 de janeiro. Também houve
registros de grupos armados dentro de universidades da cidade, quando tentaram
assaltar estudantes.
Dias
depois, em 17 de janeiro, o promotor que investigava o ataque à emissora de TV,
César Suárez, foi assassinado, também na cidade de Guayaquil.
Houve
também a fuga de Fabricio Colón Pico de outra prisão equatoriana. Capitão Pico,
como é conhecido, é ligado à facção criminosa Los Lobos, que a
procuradora-geral do Estado, Diana Salazar Méndez, acusou de participar de um
plano para assassiná-la.
Fonte:
Sputnik Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário