Como grupos neonazistas usam MMA para
atrair jovens ao redor do globo?
Em entrevistas cedidas
à Sputnik Brasil, especialistas detalharam como grupos neonazistas utilizam as
artes marciais como fluxo de captação de jovens ao redor do mundo, promovendo e
difundindo ideologias radicais e formando militantes cada vez mais violentos.
Um dos lutadores mais
reconhecidos do Ultimate Fighting Championship (UFC, na sigla em inglês), o
franco-americano Sean Strickland, já admitiu publicamente ter vivido uma
"fase neonazista", período em que, por influência familiar, divulgava
ideologias preconceituosas, racistas e andava até armado, "na esperança de
matar alguém", conforme relatou à mídia The Sun.
Campeão atual da
modalidade peso médio da competição, Strickland estreou no maior palco da luta
no mundo — no caso, um octógono, instalação específica de oito lados para a prática
de artes marciais em solo e em pé — em 2014, tornando-se mundialmente
reconhecido.
No caso do
profissional, as artes marciais mistas ou MMA (Mixed Martial Arts, na sigla em
inglês) foram uma fuga, salvando-o da antiga forma de pensar.
"Lembro da
primeira vez que entrei na academia, quando era criança, e toda a minha raiva
desapareceu", conta o profissional.
Não é assim para
todos, contudo.
O fenômeno de
cooptação de jovens em grupos neonazistas, por meio do ambiente do MMA, tem
aumentado cada vez mais no contexto internacional.
Para entender esses
casos, o podcast Mundioka, produzido pela Sputnik Brasil, que vai ao ar nesta
quarta-feira (8), conversou com Alexandre de Almeida, historiador e
antropólogo, membro do Observatório da Extrema Direita (OED) e autor da obra
"Os mitos políticos do Poder Branco Paulista (1988–1992)".
Para ele, a
manifestação desses episódios, que ultimamente ganham força na Alemanha,
ultrapassa as barreiras locais do país.
"No caso
específico alemão, o livro 'Mein Kampf', escrito por Adolf Hitler nos anos
1920, menciona artes marciais, o jiu-jitsu. Ele explica por que o jiu-jitsu, em
sua concepção [nazista], é uma forma de defesa pessoal mais nobre do que a
prática de tiro. Para ele, há um contato pessoal, é algo mais viril do que o
uso de armas de fogo para se defender, que seria algo ligado a uma pessoa
covarde", especifica o historiador.
Em síntese, na
percepção fascista, a arte marcial representa "o belo em relação ao corpo,
o moralmente correto" e também é "uma arma que pode ser utilizada
para defesa", explica Almeida.
Esses aliciamentos
acontecem em vários países. A forma de aproximação depende da academia e qual
espectro político é adotado internamente.
O perfil procurado é
diverso, mas tem como base central jovens "fragilizados, vulneráveis e que
sofreram algum tipo de violência".
"É o jovem que se
sente fragilizado, ou que busca a sua identidade coletiva, e vai encontrar
nesses espaços esse tipo de camaradagem, esse tipo de acolhimento […]. Há outro
perfil, que é aquele jovem ou adulto que tem o gosto pela aventura, quer se desafiar,
que já tem um histórico de ser uma pessoa violenta […]. Em relação à faixa
etária, os jovens são mais suscetíveis a isso. Mas há adultos também que se
vinculam a esses grupos buscando justamente a mesma coisa", completa o
antropólogo.
·
Contexto alemão revive tendências do
passado
A concentração de
atuação profissional dos grupos ocorre principalmente na Alemanha. Como explica
à Sputnik Brasil Vinícius Bivar, historiador, mestre e doutorando em história
contemporânea na Universidade Livre de Berlim, o ciclo começou "em 2008,
através da atuação do grupo supremacista branco russo White Rex". Depois
disso, "surgem vários grupos que tentam emular esse modo de operação, organizando
eventos de MMA, boxe e kickboxing, incutindo a ideologia nazista aos
jovens".
"É uma questão
bastante preocupante e está sendo monitorada pelo governo alemão desde a
primeira década do século 21. Operações policiais para apreender material e
pessoas vinculadas a esses grupos já acontecem […]. O arcabouço legal de
proteção da Constituição, que é como chamam a legislação que combate esse tipo
de grupo neonazista na Alemanha, é bastante rígida e prevê justamente a
proibição não só do uso de símbolos, como também da atuação de organizações que
promovam ideologias associadas ao nazismo", completa Bivar.
De acordo com
Alexandre de Almeida, "a forma de cooptação é um processo", com um
"contato pessoal para conhecer a pessoa".
A partir disso, os
caminhos são diversos, com grupos que, por exemplo, realizam uma espécie de
"batismo", com um "espancamento coletivo do neófito, para saber
até que ponto ele se sustenta em pé, ou se ele consegue se defender, porque no
momento de um confronto na rua isso fará diferença", explica o
historiador.
A fiscalização e a
aplicação da lei alemã é delicada, como explica Bivar, visto que "não
existe necessariamente uma pena de prisão associada à prática de nazismo",
mas "é necessário que esse crime esteja associado".
Portanto, em alguns
casos, os grupos "se declaram abertamente de outras formas, como em
eventos políticos, porque isso dificulta o processo de proibição, "visto
que isso poderia ser interpretado como um cerceamento ilegal da liberdade de
expressão e de associação política desses indivíduos", reflete o
especialista.
A preocupação e
xenofobia com imigrantes também é um dos fatores que expandem a atuação dos
grupos. Com um alto fluxo de estrangeiros que entraram no país em 2015, devido
às políticas "bastante progressistas em relação à recepção de
imigrantes" da ex-chanceler da Alemanha Angela Merkel, grande parte da
população se sentiu "desprestigiada", afiliando-se a partidos
contrários a essas ideias. Sendo a Alemanha um país que visa o incentivo a
atividades culturais e físicas, tudo se aglutinou.
"A principal
novidade desse fenômeno é a instrumentalização dos esportes de combate, a
popularização global do MMA. É bastante importante a gente estabelecer essa
distinção. A expansão dos grupos não é um produto necessariamente da existência
do MMA enquanto esporte, mas da instrumentalização do uso do esporte como uma
forma de difundir uma ideologia extremista em meio aos jovens", diz Bivar.
O fenômeno se estende
por toda a Europa. "A gente tem notícia de grupos semelhantes a esse na
Polônia, na Ucrânia e, também, na Holanda […]. Ele não necessariamente se
restringe ao contexto alemão. Inclusive, [esse movimento na Europa] também deu
origem a organizações similares nos Estados Unidos. É um fenômeno que vem
ganhando, cada vez mais, uma escala global", reflete Bivar.
No Brasil, ideologia
esbarra em particularidades regionais e materiais
Por se tratar de uma
ideologia racista, as particularidades regionais importam, principalmente no
que tange o conceito de "pureza racial" pregada pelo nazismo.
"Os primeiros neonazistas brasileiros, no passado, fizeram contato com os
europeus e houve repulsa. Afinal de contas, o brasileiro é miscigenado",
relata Alexandre de Almeida.
O problema maior e
estrutural, no entanto, parece ser a falta de investimento público e de acesso
a alternativas culturais na cidade, o que leva a maioria dos jovens à descrença
de alguma esperança política de um futuro melhor, assim como a lacuna existente
de acolhimento e integração social.
"As artes
marciais no Brasil, para o nosso imaginário brasileiro, por muito tempo
estiveram ligadas àquela ideia de cultura autoritária. É um processo das
próprias academias construírem um espaço mais adequado […]. E que ali é o
espaço de convivência, de tolerância", ressalta Almeida.
Para Bivar, é notável
como a crise política afeta a percepção de mundo de populações marginalizadas,
ressaltando que "o simples convencimento racional ou a disponibilização de
contranarrativas" não são "suficientes para promover o processo de
redução da radicalização dos jovens".
"Quando [o jovem]
percebe que está em um mundo instável, há recorrência a esses grupos que
prometem uma estabilidade, um mundo com um norte, com começo, meio e fim",
complementa Almeida.
As soluções são
complexas e levam tempo, sendo necessário discutir "o papel das próprias
associações e federações de artes marciais na criação de alternativas a esses
grupos, na integração de indivíduos que têm interesse em deixar essas
organizações extremistas, mas que buscam uma maneira de continuar praticando o
esporte, de utilizar o esporte de maneira mais construtiva", diz Bivar.
"Existe uma série
de políticas públicas que podem ser tomadas, como montar uma academia que preze
pela tolerância, pela empatia, para que as pessoas se sintam mais seguras, não
vejam o outro como inimigo, porque é o elemento central de todo esse processo",
complementa Almeida.
A esquematização de
respostas ao problema, portanto, passa por uma análise profunda do perfil
social que compõe os grupos, compreendendo "quais são os elementos que
promovem a radicalização, justamente para a gente tentar criar alternativas a
esses elementos", associando a arte marcial ao papel saudável que ela
mesma desempenha.
Fonte:
Sputnik Brasil
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