Waleska Miguel
Batista: Endividamento ou fome?
O
endividamento pode, por um lado, ser uma consequência de escolhas financeiras,
para que as pessoas preencham expectativas de conquista de sonhos, como o
desenvolvimento empresarial e pessoal, o custeio de formação escolar, a
aquisição de imóveis ou mesmo o investimento de produtos na empresa ou negócio.
Por outro lado, há o endividamento pela impossibilidade de arcar com as contas
mensais de serviços básicos como água, luz, telefone e alimentação, o que
caracteriza um enfrentamento cotidiano de boa parte da nossa população.
O
primeiro endividamento é uma dívida calculada e potencialmente benéfica, uma
vez que é possível colher seus frutos a médio ou longo prazo. Todavia, o
segundo endividamento acontece porque, muitas vezes, o rendimento recebido
mensalmente é incapaz de suprir as necessidades mais básicas, que garantem a
dignidade da pessoa humana. Neste grupo, encontram-se parte dos endividados
brasileiros, e as mais atingidas são as mulheres, a população negra e pobre,
pois estruturalmente estão com os piores salários.
Com
a pandemia da Covid-19 houve aumento do desemprego, e este motivo representa
30% das razões do endividamento. As mulheres, especialmente as negras, já
estavam na faixa com os menores rendimentos e em atividades informais. Nesse
sentido, este grupo ficou alijado quanto ao acesso aos direitos básicos como
educação, saúde e alimentação, pois são direitos que possuem custo, e as
mulheres, tanto brancas como negras, têm mais dificuldade de custeá-los.
Conforme
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021) o rendimento do
trabalho das pessoas brancas foi, em média, 69% superior ao das pessoas pretas
ou pardas. Inclusive, foi constatado que pretos e pardos receberam menos em
todos os níveis educacionais, sendo que, no grupo das pessoas com nível
superior, o diferencial alcançou 41%. Somente 14,6 % de pessoas em cargos
gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, ante 84,4% brancas.
O
IBGE também apontou que o rendimento médio domiciliar per capita das pessoas
por cor ou raça da população em 2021 dividiu-se da seguinte maneira: na
população branca era de R$ 1.866,00, da população preta foi de R$ 956,00 e da
população parda de R$ 945,00. Isso implica dizer que o rendimento da população
branca foi quase duas vezes maior do que da população negra como um todo
(incluídos pretos e pardos).
É
importante pensar, simultaneamente, na questão do endividamento e nos dados
sobre a fome no Brasil. Pesquisa encomendada pela Rede Brasileira de Pesquisa
em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, executada pelo Vox Populi e
divulgada no final de junho de 2023, que integra o 2º Inquérito Nacional sobre
a Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasi (Vigisan),
aponta que a fome atinge 22% das famílias chefiadas por mulheres negras, mas
apenas 8% das famílias chefiadas por homens brancos.
Considerando
os domicílios em que a(o) “chefe” da família tinha trabalho remunerado nos três
meses anteriores à realização da entrevista, havia segurança alimentar em:
(I) 59,5% das famílias chefiadas por homens
brancos;
(II) 48,6%, por mulheres brancas;
(III) 41,5%, por homens negros; e apenas
(IV) 32,1%, por mulheres negras. Para o grupo das
mulheres negras, mesmo nos casos em que elas estavam de fato empregadas, quase
20% dos lares passaram fome.
Isso
impõe pensarmos, novamente, sobre a remuneração dessas mulheres: quanto menor o
salário, pior a capacidade de evitar a insegurança alimentar grave.
Desse
modo, as mulheres negras, destinadas à margem da sociedade, muitas vezes são,
erroneamente, acusadas de não terem educação financeira, praticarem uma má
gestão econômica, e algumas até são acusadas de “não gostarem de pagar as
contas”. Na verdade, acontece o contrário: frente a esse salário reduzido, para
as famílias que de fato possuem remuneração fixa, é importante destacar que o
endividamento acontece como última saída à manutenção da própria vida e
dignidade.
Os
salários das mulheres negras e dos homens negros são destinados,
majoritariamente, para a aquisição de alimentos. Como a população negra sofre
em todos os setores com a discriminação racial, em que pesem os dados sobre
inadimplência aqui mencionados não terem evidenciado o recorte de endividamento
por raça e cor, a percepção é que as mulheres negras devem ter um número expressivo
de inadimplemento. Frisa-se que as mulheres negras são chefes de família,
direcionam o dinheiro para alimentação, transporte e até roupas e cabelo, para
evitar violências cotidianas, que podem culminar em ataques discriminatórios.
Ou seja, a decisão econômica dessas mulheres é acertada tática de sobrevivência
em uma sociedade desigual, conforme o artigo de minha autoria intitulado
“Direcionamento do dinheiro das mulheres negras”.
Dados
do Serasa apontam que, em 2021, as pessoas de baixa renda com acesso ao cartão
de crédito utilizaram esse saldo para compra de alimentos, ou seja, o saldo de
crédito se torna de fato o complemento do “rendimento mensal”. Assim, para
muitas famílias, o salário é utilizado para algumas contas e o cartão de
crédito para outras, como para custeio da alimentação.
Porém,
como o salário não é suficiente para arcar com todas as despesas mensais, as
famílias precisam fazer a opção do pagamento de uma percentagem mínima do
cartão de crédito, no lugar da fatura completa, e ainda optar por pagar conta
de aluguel, água ou luz. O resultado é uma dívida elevada junto às financeiras,
inclusive porque os bancos em geral praticam taxas mais altas de juros,
principalmente para a população com acesso precário ao crédito.
Além
disso, cerca de 70% das pessoas entrevistadas precisaram optar por qual dívida
pagar. Desse total, 76% das mulheres tiveram de fazer essa opção. Portanto, não
se trata de mera vontade de não pagar determinada obrigação, mas da ausência de
pagamento diante da insuficiência financeira. Não há opção de renegociação da
dívida, principalmente quando o salário é baixo.
Os
salários mais baixos; a necessidade de suprir os direitos básicos para garantir
a dignidade – sua e de sua família; a dificuldade de acesso ao crédito e o contexto
estrutural, político e econômico da sociedade brasileira são componentes que,
de um modo ou de outro, atingem uma situação temerária para as mulheres do
Brasil. Dentro desse grupo, as mulheres negras, conforme os dados apresentados
demonstram, são as que enfrentam as maiores dificuldades para se manterem fora
do quadro de devedores do país, que só tende a crescer se a estrutura política
e a econômica não forem alteradas. Este é o desafio. Educação financeira é
extremamente importante, mas ela precisa estar aliada a um movimento em prol da
igualdade em todas as relações sociais, especialmente quando se fala em
garantir a sobrevivência.
Emir Sader: Todos são iguais diante das
desigualdades?
A
Suprema Corte dos Estados Unidos, refletindo a virada conservadora em sua nova
composição, ameaça retroceder nos avanços conquistados em relação ao aborto e
encerra as possibilidades das políticas de cotas no país.
Como
é comum no liberalismo, a Suprema Corte se apoia no princípio constitucional de
que "todos são iguais perante a lei" para promover o cancelamento de
qualquer tipo de política de cotas que visa beneficiar os mais desfavorecidos.
Essa postura é frequentemente acompanhada por declarações de pais que afirmam
que seus filhos obtiveram notas melhores do que outros, mas foram superados por
beneficiados pelas políticas de cotas.
No
Brasil, as políticas de cotas foram iniciadas pelo Laboratório de Políticas
Públicas (LPP) da Uerj, partindo da evidente constatação de que, embora os
negros sejam maioria na população brasileira, constituíam uma pequena minoria
nas universidades públicas do país.
Essa
prática já existente nos Estados Unidos era buscada por nós para implementar de
forma adaptada no Brasil. No entanto, a iniciativa foi alvo de uma grande
quantidade de argumentos, todos eles de ordem liberal.
Esses
argumentos sempre partiam do princípio constitucional da igualdade entre todos.
Alegava-se que a política de cotas feriria esse princípio, pois favoreceria
aqueles que obtivessem notas inferiores em relação a outros, que seriam vítimas
dessa política, sendo deixados para trás em favor daqueles com notas mais
baixas.
Além
dessa formulação, havia uma visão igualmente elitista segundo a qual a entrada
de um contingente de estudantes por meio da política de cotas resultaria na
diminuição do nível das universidades.
No
entanto, nada disso ocorreu. Pelo contrário, a democratização do acesso às
universidades proporcionada pela política de cotas fortaleceu as instituições
de ensino superior. Apoiada na política de combate às desigualdades sociais e
regionais, essa medida ampliou significativamente o contingente de estudantes
universitários em todo o país.
O
nordeste, que anteriormente enviava seus filhos para estudar nas universidades
do sul e sudeste, teve a criação de nove novas universidades, todas elas com
reitorias localizadas no interior dos estados. Como resultado, o nordeste
passou a ter um número maior de estudantes universitários em comparação ao sul
do país.
Aqueles
que acreditavam que o nível das universidades diminuiria com as políticas de
cotas tiveram que encarar a realidade da política de promoção de estudantes
brasileiros para bolsas no exterior. Mais de 200 mil estudantes negros, que
ingressaram por meio das políticas de cotas, conquistaram essas bolsas
competindo com todos os estudantes.
Em
suma, as desigualdades diminuíram nas universidades brasileiras com as
políticas de cotas, enquanto o nível de ensino aumentou. O país passou a ser um
lugar melhor, menos desigual em termos sociais e regionais, mais democrático.
Com as políticas de cotas, nem todos se tornaram iguais, mas passamos a viver
em um país menos desigual, com menos exclusão social, e as universidades
passaram a refletir de maneira mais próxima as condições sociais no conjunto do
país.
Nordeste tem maior taxa de analfabetismo
entre pessoas com deficiência
Dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022,
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta
sexta-feira (7/7), escancaram a desiguldade de acesso a educação entre as
pessoas com deficiência (PCDs). No Brasil, há uma população com deficiência
estimada em 18,6 milhões de pessoas de dois anos ou mais. Segundo o IBGE,
apenas uma em cada quatro PCDs concluiu o ensino básico obrigatório. A taxa de
analfabetismo nesse público é de 19,5%, sendo o Nordeste a região que apresenta
o maior índice do país, com 31,2% — maior que a média nacional.
A
região com menor taxa foi o Sul, com 12,7%. No recorte das pessoas de 25 anos
ou mais, 63,3% têm ensino fundamental incompleto. Considerando os recortes de
gênero e raça entre as pessoas com deficiência que concluíram o ensino básico
obrigatório, o índice é maior em mulheres e brancas (26,5% e 29,7%,
respectivamente). A pesquisa também quantificou o atraso escolar: para o grupo
6 a 14 anos com deficiência, 89,3% frequentavam o ensino fundamental, contra
93,9% entre os sem deficiência.
Enquanto
apenas 25,6% das pessoas com deficiência tinham concluído o Ensino Médio, mais
da metade das pessoas sem deficiência (57,3%) tinham esse nível de instrução.
Já no nível superior, 14,3% dos jovens de 18 a 24 anos com deficiência estão
nas universidades, contra 25,5% dos sem deficiência. Em relação ao descompasso
na idade-etapa de ensino, 54,4% dos jovens de 15 a 17 anos com deficiência
frequentavam o ensino médio, frente a 70,3% dos jovens sem deficiência. No
grupo de 18 a 24 anos, 14,3% dos PCDs estavam no ensino superior, contra 25,5%
dos sem deficiência.
Segundo
a analista da PNAD Contínua, Maíra Bonna Lenzi, esses dados apontam para a
necessidade de observar o que afasta crianças, adolescentes e jovens com
deficiência dos espaços de educação e desenvolver políticas para assegurar
condições de ensino. "Esse indicador é muito importante para ajudar a entender
por que muitas crianças com deficiência estão fora da escola. Nós temos, por
exemplo, a Lei Brasileira de Inclusão, que garante que toda a criança tenha
recursos de acessibilidade para potencializar ao máximo o seu desenvolvimento e
habilidades amenizando a barreiras. Então, é interessante investigar o que
falta para dar oportunidade para essas crianças e esses jovens”, pontua.
Fonte:
Brasil 247/Correio Braziliense
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