domingo, 9 de julho de 2023

Waleska Miguel Batista: Endividamento ou fome?

O endividamento pode, por um lado, ser uma consequência de escolhas financeiras, para que as pessoas preencham expectativas de conquista de sonhos, como o desenvolvimento empresarial e pessoal, o custeio de formação escolar, a aquisição de imóveis ou mesmo o investimento de produtos na empresa ou negócio. Por outro lado, há o endividamento pela impossibilidade de arcar com as contas mensais de serviços básicos como água, luz, telefone e alimentação, o que caracteriza um enfrentamento cotidiano de boa parte da nossa população.

O primeiro endividamento é uma dívida calculada e potencialmente benéfica, uma vez que é possível colher seus frutos a médio ou longo prazo. Todavia, o segundo endividamento acontece porque, muitas vezes, o rendimento recebido mensalmente é incapaz de suprir as necessidades mais básicas, que garantem a dignidade da pessoa humana. Neste grupo, encontram-se parte dos endividados brasileiros, e as mais atingidas são as mulheres, a população negra e pobre, pois estruturalmente estão com os piores salários.

Com a pandemia da Covid-19 houve aumento do desemprego, e este motivo representa 30% das razões do endividamento. As mulheres, especialmente as negras, já estavam na faixa com os menores rendimentos e em atividades informais. Nesse sentido, este grupo ficou alijado quanto ao acesso aos direitos básicos como educação, saúde e alimentação, pois são direitos que possuem custo, e as mulheres, tanto brancas como negras, têm mais dificuldade de custeá-los.

Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021) o rendimento do trabalho das pessoas brancas foi, em média, 69% superior ao das pessoas pretas ou pardas. Inclusive, foi constatado que pretos e pardos receberam menos em todos os níveis educacionais, sendo que, no grupo das pessoas com nível superior, o diferencial alcançou 41%. Somente 14,6 % de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, ante 84,4% brancas.

O IBGE também apontou que o rendimento médio domiciliar per capita das pessoas por cor ou raça da população em 2021 dividiu-se da seguinte maneira: na população branca era de R$ 1.866,00, da população preta foi de R$ 956,00 e da população parda de R$ 945,00. Isso implica dizer que o rendimento da população branca foi quase duas vezes maior do que da população negra como um todo (incluídos pretos e pardos).

É importante pensar, simultaneamente, na questão do endividamento e nos dados sobre a fome no Brasil. Pesquisa encomendada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, executada pelo Vox Populi e divulgada no final de junho de 2023, que integra o 2º Inquérito Nacional sobre a Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasi (Vigisan), aponta que a fome atinge 22% das famílias chefiadas por mulheres negras, mas apenas 8% das famílias chefiadas por homens brancos.

Considerando os domicílios em que a(o) “chefe” da família tinha trabalho remunerado nos três meses anteriores à realização da entrevista, havia segurança alimentar em:

(I)      59,5% das famílias chefiadas por homens brancos;

(II)     48,6%, por mulheres brancas;

(III)    41,5%, por homens negros; e apenas

(IV)    32,1%, por mulheres negras. Para o grupo das mulheres negras, mesmo nos casos em que elas estavam de fato empregadas, quase 20% dos lares passaram fome.

Isso impõe pensarmos, novamente, sobre a remuneração dessas mulheres: quanto menor o salário, pior a capacidade de evitar a insegurança alimentar grave.

Desse modo, as mulheres negras, destinadas à margem da sociedade, muitas vezes são, erroneamente, acusadas de não terem educação financeira, praticarem uma má gestão econômica, e algumas até são acusadas de “não gostarem de pagar as contas”. Na verdade, acontece o contrário: frente a esse salário reduzido, para as famílias que de fato possuem remuneração fixa, é importante destacar que o endividamento acontece como última saída à manutenção da própria vida e dignidade.

Os salários das mulheres negras e dos homens negros são destinados, majoritariamente, para a aquisição de alimentos. Como a população negra sofre em todos os setores com a discriminação racial, em que pesem os dados sobre inadimplência aqui mencionados não terem evidenciado o recorte de endividamento por raça e cor, a percepção é que as mulheres negras devem ter um número expressivo de inadimplemento. Frisa-se que as mulheres negras são chefes de família, direcionam o dinheiro para alimentação, transporte e até roupas e cabelo, para evitar violências cotidianas, que podem culminar em ataques discriminatórios. Ou seja, a decisão econômica dessas mulheres é acertada tática de sobrevivência em uma sociedade desigual, conforme o artigo de minha autoria intitulado “Direcionamento do dinheiro das mulheres negras”.

Dados do Serasa apontam que, em 2021, as pessoas de baixa renda com acesso ao cartão de crédito utilizaram esse saldo para compra de alimentos, ou seja, o saldo de crédito se torna de fato o complemento do “rendimento mensal”. Assim, para muitas famílias, o salário é utilizado para algumas contas e o cartão de crédito para outras, como para custeio da alimentação.

Porém, como o salário não é suficiente para arcar com todas as despesas mensais, as famílias precisam fazer a opção do pagamento de uma percentagem mínima do cartão de crédito, no lugar da fatura completa, e ainda optar por pagar conta de aluguel, água ou luz. O resultado é uma dívida elevada junto às financeiras, inclusive porque os bancos em geral praticam taxas mais altas de juros, principalmente para a população com acesso precário ao crédito.

Além disso, cerca de 70% das pessoas entrevistadas precisaram optar por qual dívida pagar. Desse total, 76% das mulheres tiveram de fazer essa opção. Portanto, não se trata de mera vontade de não pagar determinada obrigação, mas da ausência de pagamento diante da insuficiência financeira. Não há opção de renegociação da dívida, principalmente quando o salário é baixo.

Os salários mais baixos; a necessidade de suprir os direitos básicos para garantir a dignidade – sua e de sua família; a dificuldade de acesso ao crédito e o contexto estrutural, político e econômico da sociedade brasileira são componentes que, de um modo ou de outro, atingem uma situação temerária para as mulheres do Brasil. Dentro desse grupo, as mulheres negras, conforme os dados apresentados demonstram, são as que enfrentam as maiores dificuldades para se manterem fora do quadro de devedores do país, que só tende a crescer se a estrutura política e a econômica não forem alteradas. Este é o desafio. Educação financeira é extremamente importante, mas ela precisa estar aliada a um movimento em prol da igualdade em todas as relações sociais, especialmente quando se fala em garantir a sobrevivência.

 

       Emir Sader: Todos são iguais diante das desigualdades?

 

A Suprema Corte dos Estados Unidos, refletindo a virada conservadora em sua nova composição, ameaça retroceder nos avanços conquistados em relação ao aborto e encerra as possibilidades das políticas de cotas no país.

Como é comum no liberalismo, a Suprema Corte se apoia no princípio constitucional de que "todos são iguais perante a lei" para promover o cancelamento de qualquer tipo de política de cotas que visa beneficiar os mais desfavorecidos. Essa postura é frequentemente acompanhada por declarações de pais que afirmam que seus filhos obtiveram notas melhores do que outros, mas foram superados por beneficiados pelas políticas de cotas.

No Brasil, as políticas de cotas foram iniciadas pelo Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Uerj, partindo da evidente constatação de que, embora os negros sejam maioria na população brasileira, constituíam uma pequena minoria nas universidades públicas do país.

Essa prática já existente nos Estados Unidos era buscada por nós para implementar de forma adaptada no Brasil. No entanto, a iniciativa foi alvo de uma grande quantidade de argumentos, todos eles de ordem liberal.

Esses argumentos sempre partiam do princípio constitucional da igualdade entre todos. Alegava-se que a política de cotas feriria esse princípio, pois favoreceria aqueles que obtivessem notas inferiores em relação a outros, que seriam vítimas dessa política, sendo deixados para trás em favor daqueles com notas mais baixas.

Além dessa formulação, havia uma visão igualmente elitista segundo a qual a entrada de um contingente de estudantes por meio da política de cotas resultaria na diminuição do nível das universidades.

No entanto, nada disso ocorreu. Pelo contrário, a democratização do acesso às universidades proporcionada pela política de cotas fortaleceu as instituições de ensino superior. Apoiada na política de combate às desigualdades sociais e regionais, essa medida ampliou significativamente o contingente de estudantes universitários em todo o país.

O nordeste, que anteriormente enviava seus filhos para estudar nas universidades do sul e sudeste, teve a criação de nove novas universidades, todas elas com reitorias localizadas no interior dos estados. Como resultado, o nordeste passou a ter um número maior de estudantes universitários em comparação ao sul do país.

Aqueles que acreditavam que o nível das universidades diminuiria com as políticas de cotas tiveram que encarar a realidade da política de promoção de estudantes brasileiros para bolsas no exterior. Mais de 200 mil estudantes negros, que ingressaram por meio das políticas de cotas, conquistaram essas bolsas competindo com todos os estudantes.

Em suma, as desigualdades diminuíram nas universidades brasileiras com as políticas de cotas, enquanto o nível de ensino aumentou. O país passou a ser um lugar melhor, menos desigual em termos sociais e regionais, mais democrático. Com as políticas de cotas, nem todos se tornaram iguais, mas passamos a viver em um país menos desigual, com menos exclusão social, e as universidades passaram a refletir de maneira mais próxima as condições sociais no conjunto do país.

 

       Nordeste tem maior taxa de analfabetismo entre pessoas com deficiência

 

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta sexta-feira (7/7), escancaram a desiguldade de acesso a educação entre as pessoas com deficiência (PCDs). No Brasil, há uma população com deficiência estimada em 18,6 milhões de pessoas de dois anos ou mais. Segundo o IBGE, apenas uma em cada quatro PCDs concluiu o ensino básico obrigatório. A taxa de analfabetismo nesse público é de 19,5%, sendo o Nordeste a região que apresenta o maior índice do país, com 31,2% — maior que a média nacional.

A região com menor taxa foi o Sul, com 12,7%. No recorte das pessoas de 25 anos ou mais, 63,3% têm ensino fundamental incompleto. Considerando os recortes de gênero e raça entre as pessoas com deficiência que concluíram o ensino básico obrigatório, o índice é maior em mulheres e brancas (26,5% e 29,7%, respectivamente). A pesquisa também quantificou o atraso escolar: para o grupo 6 a 14 anos com deficiência, 89,3% frequentavam o ensino fundamental, contra 93,9% entre os sem deficiência.

Enquanto apenas 25,6% das pessoas com deficiência tinham concluído o Ensino Médio, mais da metade das pessoas sem deficiência (57,3%) tinham esse nível de instrução. Já no nível superior, 14,3% dos jovens de 18 a 24 anos com deficiência estão nas universidades, contra 25,5% dos sem deficiência. Em relação ao descompasso na idade-etapa de ensino, 54,4% dos jovens de 15 a 17 anos com deficiência frequentavam o ensino médio, frente a 70,3% dos jovens sem deficiência. No grupo de 18 a 24 anos, 14,3% dos PCDs estavam no ensino superior, contra 25,5% dos sem deficiência.

Segundo a analista da PNAD Contínua, Maíra Bonna Lenzi, esses dados apontam para a necessidade de observar o que afasta crianças, adolescentes e jovens com deficiência dos espaços de educação e desenvolver políticas para assegurar condições de ensino. "Esse indicador é muito importante para ajudar a entender por que muitas crianças com deficiência estão fora da escola. Nós temos, por exemplo, a Lei Brasileira de Inclusão, que garante que toda a criança tenha recursos de acessibilidade para potencializar ao máximo o seu desenvolvimento e habilidades amenizando a barreiras. Então, é interessante investigar o que falta para dar oportunidade para essas crianças e esses jovens”, pontua.

 

Fonte: Brasil 247/Correio Braziliense

 

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