terça-feira, 11 de julho de 2023

Racismo impacta no envelhecimento dos negros no Brasil, aponta pesquisa

Envelhecer não é fácil para boa parte da população, mas é ainda mais difícil para quem é negro, e Terê Cordeiro, 70, ex-empregada doméstica e hoje poeta, cita um dentre vários exemplos para ilustrar essa realidade:

"Se chega uma velhinha branca a um pronto-socorro público, o atendimento é ruim. Mas, se é uma velhinha negra que chega, com o chinelo de dedo gasto na parte de trás, o atendimento é muito pior."

O que ela e tantos idosos negros sentem na pele foi traduzido em números por uma pesquisa recém-lançada, intitulada Envelhecimento e Desigualdades Raciais, realizada pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em parceria com o Itaú Viver Mais.

O estudo entrevistou 500 pessoas com mais de 50 anos, presencialmente, em suas residências, em três capitais: São Paulo, Salvador e Porto Alegre, em 2021.

As cidades foram escolhidas por apresentarem um alto índice de envelhecimento populacional, em que o grupo dos idosos cresce mais do que o de jovens. Já a faixa dos 50 aos 60 anos, não considerada idosa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foi incluída no estudo com a intenção de avaliar o envelhecimento de uma forma mais ampla, como um processo contínuo, que resulta de um acúmulo de vivências.

Os resultados da pesquisa confirmam que a velhice dos negros no Brasil é o somatório das desigualdades impostas pelo racismo ao longo da vida, como a baixa escolaridade, a insegurança alimentar, o trabalho precário, a falta de acesso a serviços de saúde e de cultura e a exposição à violência, entre outros.

O estudo apresenta o índice de envelhecimento ativo --formado por condicionantes que influenciam na qualidade de vida, como saúde física e mental, mobilidade, segurança, inclusão digital, sociabilidade e condição financeira.

O índice é o resultado de uma série de perguntas relacionadas a esses aspectos, e vai de 0 a 100. Quanto mais próximo de cem, melhor a situação daquele grupo de pessoas.

Considerando as três cidades e as diferentes faixas etárias a partir dos 50 anos (50-59; 60-69; 70-79 e 80 ou mais), na maior parte delas a população branca tem índices mais elevados do que a negra.

Além disso, na maioria das faixas etárias nas diferentes cidades, a situação dos homens tende a ser melhor do que a das mulheres.

Entre pessoas de 60 a 69 anos da cidade de São Paulo, por exemplo, o índice de envelhecimento ativo das mulheres negras é de 51, enquanto o das mulheres brancas é de 53,3. No caso dos homens, o índice dos negros é de 46,5, enquanto o de brancos, de 55,1.

A pesquisa traz uma série de dados a partir dos quais fica claro por que o envelhecimento da população negra é mais difícil do que o da branca.

Avaliemos, por exemplo, o acesso a serviços privados de saúde, com base no mesmo grupo de São Paulo, de 60 a 69 anos. Dentre as mulheres entrevistadas, são 30% das brancas e 27% das negras as que têm acesso a eles. A diferença foi gritante para os homens nessa amostra pesquisada pelo Cebrap. Apenas 1% dos negros entrevistados (foram ouvidos 70, segundo os pesquisadores) acessa serviços pagos de saúde, enquanto, no caso dos brancos, são 46%.

Os homens negros, também destaca a pesquisa, são as maiores vítimas de mortalidade prematura, já a partir dos 15 anos e normalmente associada à violência, mas também a riscos no trabalho e à falta de acesso a serviços de saúde.

Em geral, a mortalidade da população negra brasileira é maior do que a da branca, o que faz com que a proporção de pretos e pardos se reduza em faixas etárias mais altas. No Sudeste, por exemplo, na faixa dos 25 aos 49 anos, a população de pretos e pardos é de 51%, enquanto, acima dos 50, cai para 43%.

"O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco", disse, no evento de lançamento da pesquisa, o enfermeiro Roudom Ferreira Moura, cujo doutorado na USP apontou a desigualdade racial entre idosos.

Quando a desigualdade de gênero se soma à racial, o estudo aponta a mulher idosa negra no mais distante patamar de um envelhecimento ativo. Isso fica evidente quando se considera o aspecto financeiro.

As mulheres negras relataram uma maior dificuldade para pagar as contas. Ainda avaliando a mesma população de São Paulo, entre 60 e 69 anos, 63% das mulheres negras disseram considerar difícil ou muito difícil quitar as contas mensais com o rendimento disponível. No caso das brancas, foram 54%. Para os homens, a dificuldade com os gastos mensais foi apontada por 58% dos negros e por 38% dos brancos.

Em debate realizado no lançamento da pesquisa, Márcia Lima, professora de sociologia da USP e secretária nacional de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação ao Racismo, do Ministério da Igualdade Racial, citou a obra "Sítio do Picapau Amarelo", de Monteiro Lobato, para corroborar a conclusão do estudo.

"Temos aquelas duas velhices, a da Dona Benta, a vovó que acolhe, e a da Tia Anastácia, que está lá para servir e não tem história, não tem família."

Lúcia Xavier, coordenadora-geral da ONG Criola, que defende os direitos das mulheres negras, apontou que "alcançar a velhice, sobretudo no caso da população negra, é vencer processos complexos de violência e de discriminação".

"Quem conseguiu vencer a morte neonatal, a morte na adolescência e passou dos 60 anos já ganhou na loteria", afirmou.

Alexandre Silva, secretário nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, do Ministério de Direitos Humanos, abordou, no debate sobre a pesquisa, a necessidade de se realizar no país o "letramento das pessoas idosas em relação aos seus direitos".

"Desde o pré-natal da mãe a desigualdade se coloca, e o negro acumula traumas sem viver plenamente a cidadania", afirmou ele, que é fisioterapeuta, gerontólogo e doutor em saúde pública pela USP, com uma tese sobre a desigualdade racial dos idosos.

"Trauma" aparece na primeira estrofe do poema criado por Terê Cordeiro a pedido para esta reportagem. Sua avó, negra, tinha 15 anos quando, em 1912, foi estuprada pelo senhor de engenho, em Pernambuco.

O filho dessa violência foi o pai de Terê, que nasceu branco, casou-se com uma negra e replicou práticas de violência, racismo e machismo com a mulher, a quem repetia sempre "Cala boca, sua negrinha".

Terê trabalhou na roça na infância, mudou-se para São Paulo na adolescência e conta ter vivido uma semiescravidão como empregada doméstica, morando em um quartinho na casa dos patrões, com uma folga por mês.

Ela conseguiu terminar o ensino médio aos 60 anos, entrou para um grupo de poetas idosas, e escreveu o seguinte poema sobre desigualdade racial no envelhecimento:

"Ser idoso nos dias de hoje

É difícil e quase um trauma

Além das dores físicas

Também tem as dores da alma.

Nos equipamentos públicos

Ou mesmo supermercado

Sofremos racismo explícito

Por vezes ele vem velado.

Entramos no transporte público

Já somos chamados de velhos

Por não passar a catraca

E é um bafafá eterno.

Nos lares deveria haver ternura

Mas nem sempre isso existe

A falta de compreensão

Deixa nossa vida triste.

Por fim, uso de gratidão

Com Deus, família e irmãos

Pela dádiva de envelhecer

Obrigada, Deus, pela unção."

 

       O Brasil que mostra a sua cara. Por Marcio Pochmann

 

O Brasil do primeiro quarto do século 21 se apresenta profundamente diferente daquele que existia antes do ingresso na globalização dos anos 1990. Sinteticamente, a nação vergou.

De acordo com o Fundo Monetário Internacional, a participação do Brasil no PIB mundial (em preços correntes e em poder de paridade de compra) declinou de 4,3%, em 1980 para 1,7%, em 2022. Da sexta maior economia do mundo, retrocedeu à nona posição global.

Para as Nações Unidas, a presença do Brasil na população mundial decresceu de 2,7%, em 1980, para 2,5%, em 2022. Da quinta maior população, regrediu para a sétima. A se manter essa trajetória demográfica, o Brasil pode deixar de estar entre os dez países mais populosos do mundo no final do século 21.

Considerando as informações do Censo de 2022, chamam a atenção três grandes mudanças identificadas no Brasil desde o início do século 21.

A primeira diz respeito à longa estagnação da renda per capita nacional, que terminou por impactar direta e indiretamente nas decisões dos brasileiros, especialmente no que diz respeito à trajetória da natalidade. A aceleração na queda dos nascimentos em relação ao total da população se mostrou decisiva para que a transição demográfica se aprofundasse muito rapidamente.

Assim, o Brasil, que tinha o seu passado de forte crescimento populacional, inverteu o sinal ao longo do início do século 21. Caso não seja alterada a política demográfica, por exemplo, a população do país se manterá estabilizada, podendo ainda diminuir em termos absolutos, enquanto no século 20, o número de brasileiros foi multiplicado por dez vezes e no século 19 multiplicado por cinco vezes.

A segunda grande alteração é o inédito processo da desmetropolização populacional, com a mudança do sistema industrial, outrora complexo, diversificado e integrado regionalmente, para o modelo econômico primário-exportador acompanhado pela desindustrialização nacional.

No ano de 2022, por exemplo, o conjunto das grandes cidades constituídas por 500 mil e mais habitantes reduziu a participação relativa no total da população para 29%.

Em 2010, as metrópoles brasileiras responderam por 29,3% do total da população, bem acima do ano 2000, quando era de 27,6%. Em contrapartida, o conjunto das cidades médias constituídas por 100 mil a 500 mil habitantes cresceu a presença relativa no total da população para 28%, enquanto em 2010 era de 25,4% e, em 2000, de 23,2%.

Destaca-se que as regiões metropolitanas, em sua maioria situadas nas áreas litorâneas do país, exerciam até os anos 1980 uma forte centralidade no progresso da industrialização nacional. Atualmente, após o longo percurso da desindustrialização, as bases da moderna sociedade urbana e industrial encontram-se arruinadas, com as metrópoles do país concentrando atrasos da pobreza, desemprego e violência.

Uma verdadeira síntese da cara do Brasil forjado pelo novo sistema jagunço a dominar pelo fanatismo religioso e pelo banditismo social as multidões de sobrantes sem destino que vagueiam nas periferias dos centros urbanos desmetropolizados. Em contrapartida, avança a modernidade na forma de enclaves econômicos cada vez mais conectados ao exterior com o turismo e, sobretudo, o agrarismo exportador.

Neste contexto do enriquecimento interiorizado nas cidades médias, crescendo no ritmo “chinês”, o vazamento da riqueza atrai um segmento crescente e variado de ocupações “servis”, indispensáveis à reprodução do modelo consumista copiado do american way of life e situado na “cobertura aberta no andar de cima” da sociedade brasileira. Assim, a dinâmica contida do emprego na atividade econômica primário-exportadora termina por ser “compensada” pela difusão de serviços de atenção à reprodução dos novos-ricos do país.

Por fim, mas não menos importante, os múltiplos impactos decorrentes da inclusão da população brasileira na Era Digital – em grande medida, a defasagem dos atuais padrões tributário e federalista, próprios do passado da sociedade industrial que ficou para trás. Neste sentido, o decréscimo da população e o seu deslocamento geográfico no território nacional revelam a reconfiguração social do país.

A nova cara do Brasil rebate direta e indiretamente nos municípios, especialmente naqueles que perdem e nos que convivem com a estagnação dos seus habitantes. Na Era Digital, o motor dos negócios não mais se assenta na exclusividade do dinamismo tradicional exercido pela ocupação realizada fora do local de moradia.

Sem condições de oferecer condições de vida e trabalho decentes, o país passou a conviver com o ineditismo da diáspora de brasileiros que emigraram para outros países. No ano de 2022, as estimativas apontam 2,4% da população nacional vivendo fora, enquanto em 1980 era menos de 1%.

 

Fonte: FolhaPress/Terapia Política

 

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