domingo, 9 de julho de 2023

Por que o Carf é a “galinha dos ovos de ouro” do governo

No apagar das luzes do Congresso antes do recesso, o governo obteve vitória crucial para o plano fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O Planalto conseguiu um acordo para a aprovação do projeto de lei que retoma o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), após momentos ao longo da semana em que se acreditava que o tema só seria apreciado em agosto.

O voto de qualidade, em que o governo tem a palavra de desempate em questões tributárias julgadas no Carf, havia sido derrubado em 2020. O governo estima que pode arrecadar, neste ano, em torno de R$ 50 bilhões adicionais com a mudança, embora os números sejam incertos.

Inicialmente, o governo Lula tentou estabelecer a volta do voto de qualidade por medida provisória. Mas, sem acordo com o Congresso, a MP caducou, o que obrigou o Planalto a enviar um projeto de lei.

Após a aprovação nesta sexta-feira (7/7), o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, atribuiu a mudança no Carf ao que chamou de “trabalho incansável” de Haddad.

Nos últimos dias, o ministro chegou a ventilar que votar o PL do Carf antes do recesso poderia ser tão ou mais importante do que apreciar a reforma tributária, também aprovada na Câmara nesta semana.

Desde o começo do ano, retomar a palavra final nos julgamentos no Carf é uma pequena obsessão de Haddad. O ministro falou repetidas vezes sobre o tema e o inseriu logo em sua primeira apresentação de medidas para reduzir o rombo fiscal, ainda em janeiro.

“Não há nenhum país no mundo que tenha esse sistema de solução de litígio”, disse o ministro ao defender a volta do voto de qualidade. “Nenhum país da OCDE ou do G20 tem esse sistema.”

•        Recursos

O Carf é um órgão colegiado responsável por julgar recursos administrativos de questões fiscais e tributárias – no geral, disputas entre governo e contribuintes, com a maioria das grandes causas relacionadas a débitos tributários de empresas. O órgão é formado por representantes da Fazenda e dos contribuintes, sobretudo associações empresariais.

Com o voto de qualidade, a palavra final em caso de empate fica a cargo do presidente do Carf (sempre um representante da Fazenda). O mecanismo foi derrubado em 2020, por medida provisória no governo Jair Bolsonaro. Desde então, o contribuinte passou a ser favorecido no caso de empate.

“A verdade é que não são números tão significativos perante o que o fisco ganha, porque poucos processos chegam ao cenário de voto de desempate. Mas houve uma revolta muito grande por parte do fisco [com o fim do voto de qualidade em 2020]”, diz William Almeida, diretor da Alldax Contabilidade e Consultoria.

Em 2022, pouco menos de 2% dos casos empataram no Carf. Ainda assim, o olho do governo no tema vem da soma de recursos que tramita no colegiado: o Instituto Justiça Fiscal (IJF) considera um estoque atual de mais de R$ 1 trilhão em disputa no Carf. A Fazenda afirmou no começo do ano que só 130 empresas respondiam por metade do montante, quase R$ 600 bilhões.

Com o que ficou represado de anos anteriores, o IJF estima que mais de R$ 250 bilhões em autuações da Receita sofreriam cancelamento sem o voto de qualidade.

Muitos casos levam anos até serem julgados, e é impossível, por ora, precisar quanto dinheiro entraria no caixa da União e quando.

O próprio governo fala em números diversos a cada declaração. Nas contas da Fazenda em declarações públicas, a volta do voto de qualidade do Carf pode gerar, só em 2023, até R$ 50 bilhões por processos represados. No começo do ano, Haddad chegou a apontar estimativa menor, de R$ 35 bilhões, em seu primeiro plano fiscal.

Rodrigo Leite, professor de Finanças e Controle Gerencial do Coppead, escola de negócios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o valor pode ser menor do que os R$ 50 bilhões sugeridos pelo governo. Isso ocorreria devido ao volume menor de processos nos últimos anos. “O governo fala dos montantes de 2019, antes da pandemia. Com o que foi julgado em 2022, acredito que o ganho pode ser menor, de R$ 10 bilhões, R$ 15 bilhões”, diz.

Para os próximos anos, o governo também fala em potenciais ganhos de R$ 15 bilhões de forma permanente. Na defesa do tema, a equipe econômica espera ainda um potencial estímulo ao combate à sonegação com as mudanças no Carf, mesmo nos casos em que um processo não for decidido por voto de qualidade.

•        Mudanças no texto

Na outra ponta, para angariar consenso, o relator Beto Pereira (PSDB-MS) apresentou novo substitutivo no último dia 3 de junho com menos custos para perdedores de processos no Carf, uma das principais reclamações das empresas anteriormente. O tema era demandado também pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que chegou a entrar na Justiça contra a volta do voto de qualidade.

“Em algumas penalidades, estão tirando multa. Incentiva o contribuinte a querer quitar logo a questão, a depender do caso”, diz Almeida, da Alldax.

Outra das principais mudanças foi a possibilidade de causas menores recorrerem ao Carf. O governo propunha o mínimo de mil salários mínimos (R$ 1,32 milhão) para uma causa chegar ao Carf, mas o relator manteve o limite em 60 salários mínimos (R$ 79,2 mil).

“Na proposta do governo, uma dívida de R$ 80 mil iria diretamente para a Justiça comum. Agora, pode recorrer ao Carf, o que atrasa o julgamento, porque se cria mais uma instância”, afirma Leite, do Coppead/UFRJ.

“Então, essa aprovação, embora positiva para o governo, veio com algumas mudanças em relação ao que era desejado originalmente”, diz o professor.

Ainda assim, parte do impacto da volta do voto de qualidade para o governo foi constatado já nos primeiros meses do ano, período em que o mecanismo valeu por medida provisória. Com a volta do peso duplo do fisco, quase 95% dos processos com empate terminaram com decisão a favor da União, segundo levantamento do site especializado Jota.

Hoje, o déficit nas contas públicas para 2023 é projetado em R$ 136 bilhões (1,3% do PIB), e Haddad tem dito que quer o déficit em R$ 100 bilhões ou menos, podendo ficar abaixo de 1% do PIB. Além disso, a meta no novo marco fiscal é chegar perto de zerar o déficit, o que é visto como difícil por analistas de mercado. Para chegar minimamente perto desse objetivo, e com a pouca disposição atual para cortar gastos, o governo correrá atrás de todos os bilhões que puder – e o Carf será medida central nesse processo, neste e nos próximos anos.

 

       Em vitória de Haddad, Carf retoma ‘voto de qualidade’

 

A Câmara deu nova vitória ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao aprovar nesta sexta, 7, de forma simbólica, o projeto de lei que retoma o chamado “voto de qualidade” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O texto segue agora para avaliação no Senado.

Um dos trunfos da equipe econômica para aumentar a arrecadação e cumprir as metas de resultado primário do arcabouço fiscal, a matéria virou barganha política nos últimos dias. Deputados queriam um aceno concreto do Palácio do Planalto com a entrega de ministérios ao Centrão depois da aprovação da reforma tributária.

A definição do Carf formava com a reforma tributária e o projeto do novo arcabouço fiscal um pacote que o governo tentava aprovar ainda nesta semana, antes do recesso parlamentar. Dos três, ficou sem decisão o texto das regras fiscais. Em entrevista à Globonews, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que ele será votado com “alterações mínimas”, mas só em agosto.

Antes da votação de ontem, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, chegou a dizer que o governo estava aberto a discutir a entrada de outras forças políticas na Esplanada. Ele foi à Câmara negociar o Carf com Lira e líderes partidários. Padilha confirmou que houve ainda uma conversa por telefone entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Lira. Haddad também se reuniu ontem com Lira e lideranças da Casa.

O Carf é o tribunal que julga conflitos tributários entre a Receita Federal e os contribuintes. Até 2020, existia o chamado “voto de qualidade”, um desempate a favor do Fisco nos julgamentos. Naquele ano, o Congresso derrubou o dispositivo, que foi retomado em janeiro deste ano pelo governo Lula por meio de uma medida provisória. A MP venceu sem ser votada pelos deputados, mas Haddad elaborou um projeto de lei com urgência constitucional com o mesmo conteúdo.

O relator da proposta, Beto Pereira (PSDB-MS), retomou o “voto de qualidade”, mas excluiu as multas cobradas dos contribuintes em caso de derrota, como estabelecido por acordo firmado entre o governo e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O deputado, contudo, manteve a regra atual sobre o chamado “limite mínimo de alçada” para acesso ao Carf. Hoje, podem recorrer ao tribunal contribuintes cujo valor da ação em disputa seja a partir de 60 salários mínimos. O governo tentou alterar esse piso para mil salários mínimos na MP, com objetivo de reduzir o número de casos julgados pelo tribunal, mas o relator discordou da alteração.

•        Deputados barram ‘Refis’ para declaração de débito

No parecer votado ontem, o relator do projeto do Carf, Beto Pereira (PSDB-MS), retirou a possibilidade de a Receita Federal firmar transações com os contribuintes na cobrança de créditos tributários não inscritos em dívida ativa da União. A inclusão da medida na versão anterior do relatório havia gerado uma insatisfação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), única autorizada hoje a realizar esse tipo de procedimento. Segundo Pereira, ficou decidido que o governo vai enviar um projeto de lei à Câmara para regulamentar essas transações.

A Câmara acatou ainda um destaque apresentado ao texto que retirou a possibilidade de implementar uma espécie de “Refis” para contribuintes que confessarem de forma espontânea débitos tributários.

O destaque foi apresentado pelo segundo maior bloco partidário da Casa, composto por MDB, Republicanos, PSD e Podemos. A proposta inicial estabelecia que contribuintes que confessassem de forma espontânea a existência de débitos tributários teriam condições de parcelamento da dívida. Era uma espécie de “autorregularização tributária”, sugerida por emenda apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP).

 

       Volta do voto de qualidade ao Carf pune contribuintes, mas podia ser muito pior. Por Rafa Santos

 

A aprovação pela Câmara dos Deputados do retorno do voto de qualidade aos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ocorrida nesta sexta-feira (7/7), é uma derrota para o contribuinte brasileiro, mas a situação poderia ser muito pior. Ao menos é isso o que afirmam os advogados tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Na opinião de Rafael Fabiano, sócio do escritório RFtax Advogados e Consultores, embora o atual cenário — sem o voto de qualidade — seja mais benéfico aos contribuintes, a aprovação do PL 2384/23 não pode ser considerada uma derrota completa.

"O texto final acabou, ao menos, 'destravando' o caminho para que o contribuinte possa buscar o Poder Judiciário para discutir o caso, principalmente por permitir que o valor e o tipo de garantia possam ser alvo de negociação, retirando, desse modo, a imposição de que a mesma tenha de se dar apenas por meio de depósito em dinheiro do valor integral da dívida, seguro-garantia ou fiança bancária", comentou ele.

Jordão Luís Novaes Oliveira, da banca Zilveti Advogados, por sua vez, acredita que o texto ainda pode mudar no Senado. Mesmo assim, ele diz que, do modo como foi aprovado pela Câmara, o novo voto de qualidade é menos punitivo do que o anterior.

"O acordo feito entre a Ordem dos Advogados do Brasil e a Câmara dos Deputados fixou a dispensa dos juros e da multa quando o contribuinte perder em razão do voto de qualidade. Então esse é um ponto positivo. Além disso, o PL trouxe outras alterações positivas, como a possibilidade de sustentação oral na primeira instância. Esse sempre foi um requerimento dos advogados, e isso é um avanço. De uma forma macro, o PL trouxe avanços porque chegou-se a um meio-termo", defendeu Oliveira.

•        Indecisão e paridade de armas

A aprovação do voto de qualidade pela Câmara pode não ter sido uma ótima notícia para os contribuintes, mas ao menos acaba com o cenário de indecisão provocado pelo fim da vigência da Medida Provisória 1.160, que acabou caducando no Congresso sem ter sido convertida em lei.

A MP foi a primeira tentativa do governo de retomar o voto de qualidade, o que começa a se materializar de modo definitivo com a aprovação do PL 2384/23.

"Todo o cenário que envolveu a demora na análise da medida provisória paralisou mais uma vez o Carf e interferiu na vida regular do órgão — já que as matérias em que o governo tinha pretensão de ganhar, e em que achava que podia dar empate, estavam sendo retiradas de pauta. É uma situação que complica o andamento do Carf, que está com as atividades prejudicadas desde a pandemia", explicou Kildare Araújo Meira, sócio do Covac Sociedade de Advogados.

Já Augusto Fauvel tem opinião distinta: "A aprovação em lei do voto de qualidade desequilibra a relação entre Fisco e contribuinte, tornando desproporcional o processo administrativo fiscal, beneficiando o Fisco e quebrando drasticamente a paridade de armas."

•        Novo voto de qualidade

A primeira versão do parecer do PL 2384/23 foi apresentada pelo relator do projeto, deputado Beto Pereira (PSDB-MS), no último dia 3. O texto não agradou a parte da base governista, nem à bancada ruralista.

Após negociações entre os deputados, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério da Fazenda, chegou-se ao novo parecer, apresentado para votação nesta sexta.

O novo texto é menos punitivo para as empresas que forem derrotadas com o voto de qualidade, já que permite que seja apresentada uma proposta de acordo em até 90 dias. Além disso, é possível que os débitos fiscais sejam parcelados em até 12 vezes.

Outra novidade é que o contribuinte que fechar acordo no prazo deixará de pagar multa e juros sobre os débitos fiscais. E o relator da matéria vetou a proposta do governo de aumentar o limite mínimo para o contribuinte acionar o Carf. Atualmente, casos que envolvem débitos maiores do que R$ 79,2 mil são julgados pelo tribunal administrativo. O governo queria aumentar esse valor para R$ 1,3 milhão.

 

Fonte: Metrópoles//IstoÉ/Conjur 

 

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