Inelegibilidade de
Bolsonaro fortalece combate à desinformação no Brasil
A
inelegibilidade de Jair Bolsonaro (PL), há uma semana, por proferir alegações
falsas sobre a suposta vulnerabilidade das urnas eletrônicas, é um marco no
combate à desinformação no Brasil e tem um potencial "efeito
pedagógico" na sociedade brasileira, avaliam especialistas.
O
tema esteve no centro da condenação do ex-presidente pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Ao declarar seu voto, o presidente da Corte eleitoral,
ministro Alexandre de Moraes, frisou que a resposta do TSE confirmará “nosso
grau, enquanto poder judiciário, de repulsa ao degradante populismo renascido a
partir (...) dos discursos que propagam infame desinformação” por “verdadeiros
milicianos digitais”.
O
ex-presidente foi condenado a oito anos de inelegibilidade por dar informações
falsas sobre o sistema eleitoral durante uma reunião com embaixadores em julho
de 2022, a três meses do pleito no qual disputava a reeleição. Bolsonaro ainda
pode recorrer da decisão.
O
julgamento do TSE, porém, já teve um “efeito pedagógico” para a sociedade e
para a classe política brasileira, disse à AFP Ivan Paganotti, doutor em
Ciências da Comunicação e professor da Universidade Metodista de São Paulo.
O
docente recorda que esta não foi a primeira decisão desse tipo no país. Em
2021, o TSE já havia tornado inelegível e cassado o mandato do deputado estadual
pelo Paraná Fernando Francischini (PSL), por propagar desinformação sobre as
urnas eletrônicas nas eleições de 2018.
-
Não há "intocáveis" -
Mas,
se episódios como o julgamento do Mensalão ou a operação 'Lava Jato' criaram na
sociedade brasileira a percepção de que mesmo políticos do alto escalão
poderiam responder por crimes de corrupção, "agora a gente tem a percepção
de que acusações sobre fraude eleitoral ou tentativas de ameaça à democracia,
mesmo em representantes políticos de altíssima visibilidade, também podem levar
a uma consequência", afirmou Paganotti.
Desta
forma, prosseguiu o professor, a condenação de um ex-presidente não apenas
reforça a jurisprudência anterior, mas acaba com a sensação de que existem
“intocáveis” na política brasileira quando se trata de desinformação.
Esta
decisão se torna ainda mais significativa em um país como o Brasil, onde a
circulação de notícias falsas atinge maciçamente uma população altamente
conectada às redes sociais. Trata-se de um ambiente no qual a produção e
disseminação de desinformação é fortemente dependente de representantes
políticos.
De
acordo com o pesquisador, uma informação falsa surge primeiro em um grupo
social específico. Em determinado momento, porém, integrantes da classe
política disseminam esses conteúdos, que passam a ter mais visibilidade.
-
"Vitória da democracia" -
Neste
sentido, para Eduardo Barbabela, pesquisador do Laboratório de Estudos de Mídia
e Esfera Pública (Lemep) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
"a inelegibilidade de Bolsonaro é uma vitória da democracia
brasileira".
"A
condenação é um passo importante no combate à desinformação, pois condena
alguém que utilizou a desinformação como uma estratégia narrativa durante todo
o seu governo", disse ele à AFP.
Antes
da reunião com embaixadores pela qual foi condenado, o então presidente já
havia feito alegações falsas sobre a covid-19 e promovido remédios ineficazes
para combater a doença. Em 2020, citando possíveis efeitos colaterais da vacina
contra o coronavírus, chegou a associar tomar a vacina a "virar um
jacaré".
Na
ONU, Bolsonaro também mentiu sobre temas ambientais em 2020 e sobre dados de
feminicídio em 2022.
Estas
e outras declarações polêmicas renderam a Bolsonaro o apelido de “Trump dos
trópicos”, em referência ao ex-presidente norte-americano Donald Trump. O
antigo líder dos Estados Unidos também enfrentou problemas judiciais após o
ataque ao Capitólio, em janeiro de 2021, mas não chegou a perder seus direitos
políticos até o momento.
Nesse
sentido, Barbabela chamou atenção para o ineditismo da condenação de Bolsonaro.
“Não me recordo de nenhum outro país que tenha enfrentado um problema de
desinformação em massa e tenha adotado uma medida semelhante à condenação de um
político de alto escalão por propagar desinformação em massa”, pontuou.
O
cientista político fez a ressalva, porém, de que Bolsonaro não deveria ser o
único julgado por propagar desinformação. “Enquanto ele for o único conhecido
por ter sido condenado, seu discurso de mártir e vítima do sistema continua
sendo reforçado”, advertiu.
Ø
"Temos hoje um
sistema político pior do que em 2013", afirma cientista político
Em
entrevista à DW, cientista político Fernando Abrucio aponta que protestos
difusos fracassaram em melhorar o sistema que contestavam. Em uma década,
Centrão se fortaleceu e freia ritmo de mudanças do país.O principal efeito dos
protestos de junho, que tomaram proporções nacionais e cujos contornos se
diluíram em várias demandas em 2013, foi o fortalecimento do discurso
antissistema político-partidário e o descrédito dos eleitores na política na
última década.
A
avaliação é do cientista político Fernando Abrucio, que diz que, por essa
ótica, “não há nada a comemorar de 2013”.
O
professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (Eaesp) da
Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, é consultor de governos e de
organizações não-governamentais no Brasil e de organismos internacionais, como
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) da ONU e o Banco Mundial. Realizou projetos em
países da América Latina e pesquisa questões como reforma do estado, gestão
pública, federalismo e relações intergovernamentais.
Para
o também autor de estudos na área de Educação, o grande vencedor do processo de
polarização na política brasileira é o que ele chama de “fortalecimento da
oligarquia do Centrão”. Abrucio explica que a dinâmica desse grupo de partidos
que não se identifica necessariamente nem com quem está no poder, nem com a
oposição, não impede a realização de mudanças pelo governo, mas reduz a
velocidade e aumenta o custo de mudanças econômicas e sociais esperadas, “num
valor muito alto para a República brasileira”.
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Confira a entrevista:
·
Na
sua visão, o que foi o junho de 2013 para o Brasil?
O
junho de 2013 foi a combinação de várias coisas, cujos resultados foram
inesperados. Em certa medida, começou como um movimento estudantil, basicamente
de classe média, que estudava em universidades públicas, defendendo tarifas de
ônibus mais baratas, o que já era um movimento de uma década, na verdade, em
várias cidades do país.
Interessante
notar que, ao longo do tempo, grupos mais de extrema esquerda foram tomando
conta desse debate do transporte coletivo e que tentaram usar uma tática,
digamos, mais próxima do anarquismo, de fazer mobilizações sem nenhum comando.
Só que no meio do caminho aconteceram duas coisas importantes.
Quais
foram?
Uma
foi a repressão feita pela polícia. E, segundo, movimentos que não tinham
nascido em 2013 – já vinham há quase uma década –, mais à direita, aproveitaram
aquele momento, em que havia uma indignação geral. Começou a haver muita
crítica, que veio inicialmente mais da esquerda do próprio PT. Esses movimentos
também foram para a rua juntos. Houve uma combinação de movimentos
completamente contrários, expressando uma indignação difusa contra o poder
público. O que juntava esses grupos era um sentimento de antissistema.
·
Como
isso reverberou nos anos seguintes?
Cresceu
no Brasil a partir de 2013 até 2018 um sentimento contra a política, contra o
sistema político. E esse movimento, no qual estava muita gente diferente entre
si, favoreceu, sem dúvida alguma, a ascensão do Bolsonaro, embora sua ascensão
tenha se devido a outros fatores também.
É
interessante, porque aqueles que criticavam a globalização desde [as
manifestações anticapitalistas contra a Conferência Ministerial da Organização
Mundial do Comércio em] Seattle – que era um movimento mais à esquerda –, e
esses movimentos mais populistas de direita, mais recentes, tipo [o partido
ultraconservador espanhol] Vox [fundado em 2013], eles todos são antissistema.
Tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda.
·
O
que lembra do movimento das ruas no Brasil em junho de 2013?
É
muito interessante como as ruas foram tomadas por manifestações com sentidos
difusos, por gente mais de classe média que viu naquilo uma possibilidade de
expressar algum descontentamento. Mas os grupos que estavam mais organizados
eram de extrema direita ou de extrema esquerda. E a lógica contra o sistema
político nasce ali, mas se fortalece claramente com a Lava Jato, com o
impeachment da Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.
·
Qual
a lição que fica desde então?
A
lição democrática que a gente tem que tomar disso é que o discurso do antissistema
sempre leva à destruição do sistema e não à sua reconstrução. Esse levou à
destruição de um sistema partidário, que tinha problemas, mas que organizou uma
democracia com razoável estabilidade econômica e grandes avanços sociais, desde
o impeachment do [ex-presidente Fernando] Collor. Com o discurso e os fatos que
vieram posteriormente e favoreceram a ascensão do Bolsonaro, nós ficamos com um
sistema político pior do que tínhamos, em 2021. Temos hoje um sistema político
pior do que tínhamos em 2013. As pessoas têm dificuldade de dizer isso, mas o
sistema político brasileiro hoje é pior do que tinha em 2013.
·
Onde
ele deteriorou?
O
2013 foi um fracasso na melhoria do sistema político brasileiro e foi muito
bem-sucedido como o primeiro embrião para a destruição do sistema partidário.
Nós tínhamos na verdade, primeiro, um bipartidarismo presidencial, entre o PT e
o PSDB, que organizava mais ou menos de forma civilizada a agenda pública. O
PSDB praticamente não existe mais. O PT virou um partido mais defensivo, até
para sobreviver à polarização. Quando a gente olha, isso enfraquece a agenda
pública. E é a cara particularmente da Câmara federal brasileira, dominada por
uma oligarquia que está viciada em orçamento secreto, por agendas públicas
completamente estapafúrdias com o mundo contemporâneo, desde agendas morais
extremistas até agendas contra o meio ambiente, contra a questão indígena.
·
O
que caracterizava esse momento do bipartidarismo?
PT
e PSDB, mesmo com suas linhas, brigas, não era o jogo da polarização. O jogo da
polarização é destruir o adversário. O jogo do PT e do PSDB era de competição.
Polarização não é competição. Polarização é destruição. Qual o significado
disso? A política brasileira se tornou mais violenta, mais odiosa depois de
2013.
Repito,
2013 não explica completamente isso. Mas por ter sido o germe da lógica do
antissistema, obviamente que produziu um caminho muito mais fácil para uma
lógica de uma política mais baseada no ódio e na violência. Então assim nós
pioramos o sistema político brasileiro inegavelmente. A reconstrução vai
demandar anos de política democrática. O último sinal disso foi 8 de janeiro de
2023. Claro que ele não é consequência direta de 2013.
·
O
que resultou desse período todo?
Num
sistema político que virou mais oligárquico, o grande vencedor de todo esse
processo da polarização – e esse é o grande paradoxo do Brasil – é o
fortalecimento da oligarquia do Centrão. Olhando por toda essa ótica, não há
nada a comemorar de 2013. Aqueles meninos que lutavam por tarifa zero não eram
os pobres da periferia de São Paulo, não há nenhum dado que mostra isso.
Basearam-se numa lógica completamente extremista-anarquista e, de modo
involuntário, favoreceu outros extremistas. A reconstrução do sistema político
vai ser dura, vai ser complexa, difícil.
·
Como
o Centrão impacta as mudanças esperadas para a economia e outras reformas?
Este
é o ponto central. Não impede mudanças, porque estão ocorrendo em alguma
medida. Mas reduz a velocidade e aumenta o custo para fazer essas mudanças, num
valor muito alto para a República brasileira. Qual é a saída que o governo está
propondo? Em parte, ele está emparedado e às vezes faz decisões irracionais,
porque não consegue sair da lógica da polarização.
Mas,
em parte, onde consegue criar uma agenda de mudança … a estratégia do governo
é: se até o final de 2024 [data de eleições municipais] o cenário econômico for
melhor do que o atual, no segundo biênio as mudanças podem ser mais velozes e o
poder desse grupo, menor. É uma possibilidade [que] não acho absurda. Mas,
mesmo que seja correta, a reformulação deste centrismo oligárquico e corrupto,
criado pela lógica do antissistema, vai demorar pelo menos mais um mandato
presidencial para ser reformado.
Fonte:
AFP/Deutsche Welle
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