De quais médicos o
Brasil precisa
No
início deste ano, a Associação Médica Brasileira (AMB) publicou a chamada
Demografia Médica, pesquisa de qualidade sobre a classe médica brasileira, em
termos de contingente, distribuição regional, quantificação de especialistas,
formandos, dentre outras informações de valor fundamental. Também recentemente,
a presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade,
Zeliete Zambon, afirmou haver um déficit de cerca de 50 mil médicos de Família
e Comunidade, especialidade crucial para a atenção primária.
Nesta
entrevista ao Outra Saúde, Zambon se utiliza de tais números para apontar
caminhos para uma política pública redutora dos gargalos da saúde brasileira.
Em sua visão, a Medicina de Família e Comunidade ocupa lugar central para o
sucesso do SUS e o governo precisa priorizar o aumento de profissionais de tal
área.
“Calculamos
mais ou menos 20 mil médicos que atuam na atenção primária há mais de quatro
anos e, assim, são elegíveis para prestar prova de título de especialista em
Medicina de Família e Comunidade”, afirma ela. “Nesse sentido, pretendemos
preparar um curso de capacitação e formação básica da Medicina de Família e
Comunidade para tais profissionais que já têm de experiência o dobro de tempo
da duração de uma residência médica, condição que a Associação Médica
Brasileira aceita para conceder o título.”
Ciente
dos retrocessos que o país observou na área da saúde, do aumento da demanda da
população por tais serviços e do retumbante fracasso do programa Médicos pelo
Brasil – cartada de Bolsonaro para suplantar o Mais Médicos, tão fortemente
associado aos profissionais cubanos – Zambon esclarece que o governo federal
pode dividir esforços em intervenções de curto e longo prazo para garantir o
direito à saúde e prestigiar os profissionais brasileiros.
“Nós precisamos das políticas públicas que
induzam a formação de médicos de Família e Comunidade. Espero que a gente
consiga acertar esse descompasso ao longo do tempo, é o que temos tentado fazer
junto com o ministério da Saúde e o ministério da Educação, em especial
pensando o programa Mais Médicos: esperamos um desenho não só de provimento
emergencial, mas uma formação de médio e longo prazo de especialistas em
Medicina de Família e Comunidade”.
Isso
porque, como mostra a demografia, a taxa de médicos por habitante saltou de 1,7
para 2,5 por mil habitantes nos últimos dez anos. Até 2035, o país terá 1
milhão de doutores em seu território. Ou seja, um cenário mais favorável do que
o vivido na época do primeiro Mais Médicos.
No
entanto, como destacado pela médica de família dirigente de classe, tudo passa
pela política pública. Em sua visão, o novo governo e o ministério de Nísia
Trindade Lima dão sinais de que entendem a totalidade do quadro, o que
precisará se refletir na concepção da nova edição do Mais Médicos. “O desenho
do novo Mais Médicos precisa ver a curto, médio e longo prazo. Temos de dar uma
sustentabilidade à saúde pública brasileira pautada na atenção primária”,
explicou.
Isso,
evidentemente, exige mais recursos para a saúde. Como demonstra a demografia
médica, as desigualdades socioeconômicas nacionais – tanto locais como
regionais – se refletem no acesso ao SUS e nas opções de carreira dos
profissionais da medicina. É claro que não se trata de bloquear a atuação de
profissionais estrangeiros, muitos deles já residentes no Brasil, mas de
garantir condições para os próprios formados no país.
“Precisa-se
pagar melhor para induzir a pessoa a fazer a escolha por local com número menor
de médicos, ter um suporte acadêmico para esse profissional e também suporte
para a família conseguir se instalar. Sem priorizar esses três pontos não dá
para conseguir. E assim cairemos na questão dos estrangeiros, que vão ocupar
vagas onde não estiverem os médicos brasileiros”, afirmou.
Leia
a entrevista completa com Zeliete Zambon.
• A Associação Médica Brasileira produziu
a chamada Demografia Médica, na qual aponta que o número de médicos com título
de especialistas cresceu 84% nos últimos 10 anos e o país chegará a 1 milhão de
médicos em 2035. De outro lado, ainda há uma carência de milhares de vagas em
residência médica para recém-formados. Qual o significado disso para a saúde do
país e quais possibilidades estão colocadas para nossa sociedade?
Tivemos
um aumento cada vez mais significativo do número de médicos, mas ainda temos
déficit grande de especialistas de forma geral. Carecemos de vagas de
residência, temos 44% de vagas disponíveis em comparação com o número de
médicos formandos. Se tem uma orientação no país de que atenção primária é
prioritária como uma política pública de direcionamento do sistema de saúde,
precisamos cada vez mais desse montante de médicos de atenção básica, como
outros países seguiram.
Hoje
nós temos cerca de 11 mil médicos de Família e Comunidade, como a própria
demografia da AMB publicou; é um número muito aquém do necessário. Temos de
fazer um enorme trabalho na formação de médicos de Família e Comunidade.
Olhando para o serviço público e considerando que há uma necessidade de cerca
de 65 mil médicos desta especialidade só na saúde pública, concluímos haver um
déficit de pelo menos 54 mil profissionais. Mas a atenção primária também
coordena o sistema da saúde suplementar, de modo que esse número é até maior.
Nós
precisamos das políticas públicas que induzam a formação de médicos de Família
e Comunidade. Espero que a gente consiga acertar esse descompasso ao longo do
tempo, é o que temos tentado fazer junto com o ministério da Saúde e o
ministério da Educação, em especial pensando o programa Mais Médicos: esperamos
um desenho não só de provimento emergencial, mas uma formação de médio e longo
prazo de especialistas em medicina de família e comunidade.
• Quais estratégias o ministério da Saúde
poderia aplicar para dar conta das demandas mais urgentes da população sem
deixar de fazer as políticas de longo prazo aqui mencionadas?
Ao
menos de acordo com as conversas que já tivemos com o novo governo, acreditamos
que haverá uma política robusta de formação de médicos de família e comunidade.
Através da residência médica, que é o padrão ouro, fiz um cálculo de que em dez
anos temos cerca de 3.570 vagas de residência médica, sendo que a duração da
formação é de dois anos. Devemos demorar pelo menos dez anos para ter 35 mil
médicos de Família e Comunidade a mais. Sendo que daqui a dez anos o déficit
seria maior.
Mas
a própria demografia médica demonstra a quantidade de generalistas que nós
temos, ou seja, médicos sem formação especializada. São médicos que saem da
graduação e vão para o mercado de trabalho. Calculamos mais ou menos 20 mil
médicos que atuam na atenção primária há mais de quatro anos e, assim, são
elegíveis para prestar prova de título de especialista em Medicina de Família e
Comunidade. Nesse sentido, pretendemos preparar um curso de capacitação e
formação básica da Medicina de Família e Comunidade para tais profissionais que
já têm de experiência o dobro de tempo da duração de uma residência médica,
condição que a Associação Médica Brasileira aceita para conceder o título. Isto
é, se uma residência tem dois anos, para prestar a prova de título sem fazer
residência é necessário comprovar quatro anos de experiência na área. Assim,
poderíamos fazer 20 mil médicos se tornarem especialistas em Medicina de
Família e Comunidade em apenas um ano.
Soma-se
a isso o fato de que todos os anos formamos 3,5 mil pessoas aptas a serem
médicas de Família e Comunidade. O problema é que as pessoas não ocupam as
vagas. É preciso uma indução para as pessoas fazerem residência nesta área, o
que depende do governo. Como? Por exemplo, desconto no Fies ou inclusão de um
terceiro ano de residência, no qual a pessoa que faz uma pós-graduação obtenha
título de mestre.
Existem
várias formas de o governo trabalhar e aguardamos os próximos passos, pois sem
a indução do governo, sem a vontade política, não conseguimos fazer essa
mudança.
• Ou seja, para além dos aumentos
orçamentários defendidos por diversos profissionais, pesquisadores e pensadores
do SUS, há outras estratégias práticas e baratas para agilizar essa evolução no
sistema.
Sim.
A primeira coisa é saber que política pública de saúde queremos no país. Se
queremos uma política forte na atenção primária, devemos trabalhar para isso.
Também tem a questão do financiamento, da informatização e digitalização da
saúde, aumento do acesso, construção de mais unidades básicas de saúde,
melhoria da ambiência dessas unidades, contratação de equipes de apoio à saúde
da família, equipes especializadas (pois não é só de médicos que se faz atenção
básica), trabalho com populações específicas, como a população indígena, de
comunidades, prisional, enfim, há uma série de ações a se fazer para melhorar a
qualidade da atenção primária.
Podemos
melhorar a formação, formar mais e melhores profissionais para atuar na atenção
primária, e isso demanda uma política de governo que veja aí a sustentação do
sistema de saúde, que ela de fato coordene todo o caminhar dos usuários dentro
do sistema. Esperamos que essa seja a linha do governo, isto é, a linha da
valorização da atenção primária.
• Mesmo diante do crescimento do número de
profissionais, o Brasil passou por um retrocesso recente na oferta de serviços
em saúde, o que fez o governo retomar o programa Mais Médicos, com aceitação de
profissionais estrangeiros. Como você vê o retorno do programa e o que ele
explica sobre nossas políticas de saúde?
Na
época do programa Mais Médicos a meta era ter pelo menos mais 18 mil médicos na
atenção primária. Houve um incremento, mas estagnou. No meio do caminho veio o
Programa Médicos para o Brasil do governo Bolsonaro, que avançou muito menos
que o Mais Médicos. Não sei como se dará o relançamento do Mais Médicos, mas eu
não acredito que seja com tantos estrangeiros em sua concepção, porque naquela
época não havia a mesma quantidade de médicos brasileiros se formando. Desde
então, tivemos mais vagas de graduação em medicina. Muitas dessas turmas já
estão formando seus médicos, portanto, acredito que a necessidade de médicos
estrangeiros seja menor do que naquela época.
Há
um certo temor da comunidade médica em relação à volta de médicos estrangeiros,
o que não me parece se justificar, pois o cenário de hoje é diferente. Naquela
época havia essa necessidade para um provimento emergencial.
Estamos
no aguardo do lançamento do novo programa. O desenho do novo Mais Médicos
precisa ver a curto, médio e longo prazo. Precisamos pensar no provimento
emergencial e também nas políticas públicas de construção de sustentabilidade
desse sistema com os médicos brasileiros. Temos de dar uma sustentabilidade à
saúde pública brasileira pautada na atenção primária.
• A mesma pesquisa da AMB relata desigualdades
regionais e locais. Regiões como Norte e Nordeste têm taxa de médicos por
habitante menor. Cidades pequenas também sofrem com a falta de profissionais
acessíveis, assim como periferias das grandes cidades em relação a suas áreas
de melhor padrão de vida. Como melhorar isso?
Temos
de lidar com equidade. Onde precisa mais, paga-se mais. E não é só uma questão
de valor, de salário do médico, mas também da qualidade do local. Será que eu
tenho uma instituição de ensino que possa dar suporte a esse médico para tomada
de decisão clínica, um centro formador que tome conta desse profissional, que
vai com a família para uma localidade nova? Aonde o filho vai estudar, a esposa
ou marido vai trabalhar? Enfim, para atrair profissionais para locais
desprovidos de serviços de saúde temos de pensar no deslocamento da vida
daquela pessoa, temos de trabalhar também com a qualidade de vida e o suporte
acadêmico para esse profissional.
Precisa-se
pagar melhor para induzir a pessoa a fazer a escolha por local com número menor
de médicos, ter um suporte acadêmico para esse profissional e também suporte
para a família conseguir se instalar. Sem priorizar esses três pontos não dá
para conseguir. E assim cairemos na questão dos estrangeiros, que vão ocupar
vagas onde não estiverem os médicos brasileiros.
Fonte:
Por Gabriel Brito, em Outras Palavras
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