Chris Hedges: O problema Donald Trump
Donald
Trump — enfrentando quatro investigações governamentais, três criminais e uma
civil, visando a ele e os seus negócios — não está sendo visado devido aos seus
crimes. Quase todos os crimes sérios dos quais ele é acusado de executar foram
cometidos pelos seus rivais políticos. Ele está sendo visado porque é
considerado perigoso pela sua disposição, ao menos retoricamente, de rejeitar o
Consenso de Washington concernente às políticas neoliberais de livre-mercado e
livre-comércio, bem como a ideia de que os EUA deveriam dirigir um império
global. Ele não só menosprezou a ideologia dominante, mas instou os seus apoiadores
a atacar o aparato que mantém o duopólio ao declarar a eleição de 2020 como
ilegítima.
O
problema Donald Trump é o mesmo que o problema Richard Nixon. Quando Nixon foi
forçado a renunciar sob a ameaça de um impeachment, não foi pelo seu
envolvimento em crimes de guerra e crimes contra a humanidade, nem pelo seu uso
ilegal da CIA e outras agências federais para espionar, intimidar, acossar e
destruir radicais, dissidentes e ativistas. Nixon foi derrubado porque ele
visou outros membros do establishment político e econômico dominante. Uma vez
que Nixon, assim como Trump, atacou os centros do poder, as mídias foram
deslanchadas para expor abusos e ilegalidades que elas haviam minimizado ou
ignorado previamente.
Os
membros da campanha de reeleição de Nixon grampearam ilegalmente a sede do
Comitê Nacional Democrata no edifício de escritórios de Watergate. Eles foram
pegos depois que reentraram nos escritórios para consertar os dispositivos de
escuta. Nixon foi implicado tanto na ilegalidade pré-eleitoral, incluindo a
espionagem de oponentes políticos, quanto de tentar usar agências federais para
encobrir o crime. O seu governo mantinha uma “lista de inimigos” que incluía
acadêmicos, atores, líderes sindicais, jornalistas, homens de negócios e
políticos bem conhecidos.
Um
memorando interna da Casa Branca de 1971 intitulado “Dealing with our Political
Enemies” — composto pelo Conselheiro da Casa Branca John Dean, cujo trabalho
era aconselhar o presidente sobre a lei — descrevia um projeto montado para
“usar a maquinaria federal disponível para foder os nossos inimigos políticos”.
O
comportamento de Nixon, bem como dos seus ajudantes mais próximos, era
claramente ilegal e merecia prossecução. Houve 36 vereditos de culpa, ou
confissões de culpa associadas com o escândalo de Watergate dois anos após o
arrombamento. Mas não foram os crimes que Nixon cometeu contra dissidentes que
garantiram a sua execução política, mas foram os crimes que ele executou contra
o Partido Democrata e os seus aliados, incluindo a imprensa do establishment.
“O
centro político foi sujeito a um ataque com técnicas que são usualmente
reservadas àqueles que fogem das normas aceitáveis de crenças políticas”,
escreveu Noam Chomsky no The New York Review of Books em 1973,
um ano após a renúncia de Nixon.
Como Edward Herman
e Chomsky assinalam no seu livro “Manufacturing Consent: The Political Economy
of the Mass Media”:
“A
resposta é clara e concisa: grupos poderosos são capazes de se defenderem, não
supreendentemente; e seas à gundo os padrões das mídias, é um escândalo quando
as suas posições e direitos são ameaçados. Em contraste com isso, sempre que as
ilegalidades e violações da substância democrática são confinadas à grupos
marginais ou vítimas dissidentes do ataque militar dos EUA, ou resultam num
custo difuso imposto à população em geral, a oposição das mídias é muda ou
totalmente ausente. Foi assim que Nixon conseguiu chegar tão longe, embalado
num sentido falso de segurança precisamente porque o cão de guarda só latia
quando ele começasse a ameaçar os privilegiados”.
O
que levou ao desvendamento do governo Nixon, e o que está no cerne dos ataques
a Trump, é o fato que, assim como Nixon, os alvos de Trump incluíam “os ricos e
respeitáveis, os porta-vozes da ideologia oficial, homens dos quais se espera
que compartilhem o poder, para planejar políticas sociais e moldar a opinião
pública”, como Chomsky assinalou sobre Nixon naquela época. “Pessoas como essas
não são elegíveis para sofrerem perseguições nas mãos do estado.”
Isto
não é para minimizar os crimes de Trump. Trump — quase todas as pesquisas de
opinião pública comparando-o com o presidente Biden para as eleições
presidenciais de 2024 — parece haver cometido diversas contravenções e sérios
crimes.
Em
novembro de 2022, o Departamento de Justiça dos EUA nomeou um procurador
especial para investigar a retenção de documentos classificados feita por Trump
na sua casa de Mar-a-Lago, na Florida, e quaisquer potenciais responsabilidades
criminais resultando daquele ato, bem como qualquer interferência ilegal na
transferência de poder depois das eleições presidenciais de 2020.
Separadamente,
um procurador distrital na Georgia está trabalhando com um grande júri de
propósito especial concernente às tentativas de Trump de anular os resultados
da eleição de 2020. Uma parte-chave das evidências é o notório telefonema entre
Trump e o Secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, no qual o
presidente seguiu insistindo que precisava que fossem encontrados mais votos.
As acusações neste caso poderiam incluir a conspiração para cometer uma fraude
eleitoral, extorsão e pressionar e/ou ameaçar autoridades oficiais.
O
promotor público do distrito de Manhattan está investigando os US$ 130.000 que
Trump usou para pagar a estrela pornográfica Stormy Daniels, com quem Trump
alegadamente teve uma relação sexual. Este pagamento foi registrado
erroneamente nos arquivos da Organização Trump como um pagamento por serviços
legais, em violação das leis financeiras de campanhas eleitorais.
Finalmente,
a Procuradora-Geral de Nova York, Letitia James, está abrindo uma ação
judicial, alegando que a Organização Trump mentiu sobre os seus ativos, afim de
garantir empréstimos bancários. Caso a ação judicial da Procuradora-Geral tenha
sucesso, Trump e outros membros da sua família poderão ser impedidos de fazer
negócios em Nova York por cinco anos, incluindo compras de propriedades.
As
alegadas ofensas de Trump devem ser investigadas — apesar dos casos envolvendo
Daniels e a retenção de documentos classificados parecerem ser relativamente
menores e parecidos com aqueles cometidos pelos oponentes políticos de Trump.
No
ano passado, a campanha de Hillary Clinton em 2016 e o Comitê Nacional do
Partido Democrata concordaram em pagar uma multa de US$ 8.000 e US$ 105.000,
respectivamente, por rotular erroneamente uma despesa de US$ 175.000 como uma
pesquisa sobre a oposição — nomeadamente o há muito desacreditado “Dossier
Steele” — como “despesas legais”. A retenção imprópria de documentos
classificados tipicamente resultou em um tapa na mão quando outros políticos
poderosos foram investigados. Clinton, por exemplo, usou servidores privados de
e-mail, ao invés de uma conta governamental de e-mail quando ela era Secretária
de Estado. O FBI concluiu que ela enviou e recebeu materiais classificados como
de alto segredo no seu servidor privado. Em última análise, o diretor do FBI
James Comey se recusou a processá-la. O ex-vice-presidente de Trump, Mike
Pence, e Biden também tinham documentos classificados nas suas casas, apesar de
que nos dizem que isso poderia ter sido “inadvertido”. A descoberta destes
documentos classificados, ao invés de provocar ultraje na maior parte das
mídias, iniciou uma conversação sobre “classificação demasiada”. O antigo
diretor da CIA David Petraeus recebeu dois anos de liberdade condicional e uma
multa de US$ 100.000 após admitir que ele proveu “livros negros” altamente
classificados que continham anotações manuscritas classificadas sobre reuniões
oficiais, estratégia de guerra, capacidades de inteligência e nomes de agentes
clandestinos à sua amante Paula Broadwell, que também estava escrevendo uma
biografia bajuladora de Petraeus.
Como
foi o caso com Nixon, as acusações mais sérias que Trump poderá enfrentar
envolvem o seu ataque aos alicerces do duopólio de dois partidos, especialmente
aquelas que minam a transferência pacífica do poder de um ramo do duopólio para
o outro. Na Georgia, Trump poderá enfrentar acusações criminais muito sérias,
com potencialmente longas sentenças caso ele seja condenado; idem, caso o procurador
especial indicie Trump por interferência ilegal na eleição de 2020. Não
saberemos até que quaisquer indiciamentos sejam tornados públicos.
No
entanto, as ações mais flagrantes de Trump enquanto estava no cargo receberam
coberturas mínimas das mídias, ou foram minimizadas, ou elogiadas como atos
executados em defesa da democracia e da ordem internacional liderada pelos EUA.
Por
que Trump não foi investigado criminalmente pelo ato de guerra que ele cometeu
contra o Irã quando ele assassinou o Major-General iraniano Qassem Soleimani e
outras nove pessoas com um ataque de drone no aeroporto de Baghdad? O
Primeiro-Ministro iraquiano Adel Abdul-Mahdi condenou o ataque e disse ao seu
parlamento que Trump mentiu afim de expor Soleimani no Iraque como parte das
conversações de paz entre o Iraque, o Irã e a Arábia Saudita. O parlamento
iraquiano aprovou uma resolução exigindo que todas as tropas estrangeiras
deixem o país — o que o governo dos EUA rejeitou.
Por
que não processar ou fazer o impeachment de Trump for pressionar o seu
secretário de estado a mentir e dizer que o Irã não estava cumprindo o Plano de
Ação Compreensivo Conjunto, conhecido como o acordo nuclear com o Irã? Em
última análise, Trump o demitiu e retomou as sanções unilaterais, devastadoras e
ilegais contra o Irã, violando a lei internacional e, muito possivelmente, as
leis dos EUA.Por que Trump não sofreu impeachment pelo seu papel nas tentativas
em andamento para arquitetar um golpe e derrubar o presidente democraticamente
eleito da Venezuela? Trump declarou um previamente desconhecido político de
direita — e aspirante a líder de um golpe — Juan Guaido para ser o verdadeiro
presidente venezuelano e, depois, lhe passou ilegalmente o controle das contas
bancárias do país latino-americano nos EUA.
As
sanções ilegais dos EUA que facilitaram esta tentativa de golpe bloquearam os
alimentos, remédios e outros bens de entrarem no país e evitaram que o governo
explorasse e exportasse o seu próprio petróleo, devastando assim a economia.
Mais de 40.000 pessoas morreram entre 2017 e 2019 devido às sanções, segundo o
Centro para as Pesquisas Econômicas e Políticas (Center for Economic and Policy
Research). Este número certamente é maior agora.
Assim
como Trump, Nixon não sofreu um impeachment pelos seus crimes mais flagrantes.
Ele jamais foi indiciado por mandar a CIA destruir a economia chilena e por
apoiar um golpe militar de direita que derrubou o governo de esquerda
democraticamente eleito de Salvador Allende. Nixon não foi levado à justiça
pelas suas campanhas ilegais e secretas de bombardeios em massa no Cambodia e
no Laos, que mataram centenas de milhares de civis, e pelo papel do seu governo
nas matanças do povo vietnamita, resultando em pelo menos 3,8 milhões de
mortos, segundo um relatório conjunto da Universidade de Harvard e da
Universidade de Washington, e até números maiores de vítimas, segundo o
jornalista investigativo Nick Turse. Nixon não foi responsabilizado por aquilo
que o então-presidente Lyndon Johson denominou privadamente como “traição”,
quando ele descobriu que o ainda-a-aser-eleito candidato republicano e o seu
futuro Conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, deliberada e
ilegalmente sabotaram as suas negociações de paz no Vietname, em última análise
prolongando a guerra por outros quatro anos.
Os
artigos de impeachment contra Nixon foram aprovados pelo Comitê Judiciário da
Câmara dos Representantes dos EUA. Os artigos I e III focalizaram nas alegações
relativas à Watergate e o fracasso de Nixon em lidar apropriadamente com as
investigações congressionais. O artigo II relacionava-se com as alegações de
violações das liberdades civis e o abuso de poder do governo. Mas estes se
tornaram discutíveis a partir da renúncia de Nixon e, ao final, o desgraçado
ex-presidente não enfrentou as acusações relativas ao Watergate. Um mês depois
de Nixon deixar a presidência, o presidente Gerald Ford o perdoou por “todos os
delitos contra os EUA” que ele havia “cometido ou pode haver cometido, ou ter
tomado parte em cometer durante o período entre 20 de janeiro de 1969 até 9 de
agosto de 1974”.
Este
perdão alicerçou a presidência imperial. Ele entrincheirou a noção moderna da
“imunidade de elite”, como o advogado constitucionalista e jornalista Glenn
Greenwald assinala. Nem os republicanos, nem os democratas querem estabelecer
um precedente que possa aleijar o poder não-controlado e não-responsabilizável
de um futuro presidente.
Os
crimes mais sérios são aqueles que são normalizados pela elite do poder,
independentemente de quem os iniciou. George W. Bush pode ter começado as
guerras no Oriente Médio, mas Barack Obama as manteve e as expandiu. A
realização maior de Obama poderia ter sido o acordo nuclear com o Irã, porém
Biden, seu antigo vice-presidente, não reverteu a destruição
deste, nem cancelou a decisão de Trump de mudar a embaixada dos EUA em Israel
de Tel Aviv para Jerusalém, em violação da lei internacional.
Assim
como os seus oponentes nos partidos Republicano e Democrata, Trump serve aos
interesses da classe bilionária. Também ele é hostil aos direitos dos
trabalhadores. Também ele é um inimigo da imprensa. Também ele apoia o desvio
de centenas de bilhões de dólares federais para a indústria da guerra para
manter o seu império. Também ele não respeita o estado de direito. Também ele é
pessoal e politicamente corrupto. Mas ele também é impulsivo, fanático, inepto
e ignorante. As suas teorias da conspiração sem base, a sua vulgaridade e
travessuras absurdas, são um embaraço para a elite do poder estabelecida nos
dois partidos dominantes. Diferentemente de Biden, ele é difícil de controlar.
Ele deve ir embora, não porque ele é um criminoso, mas porque ele não é
confiado pelo dominante sindicato do crime que gerencia a firma.
Fonte:
Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário