A bizarra epidemia
que levou franceses a dançar até à morte no século 16
Como toda boa história sobre pragas, esta começa com
os presságios.
Uma
estrela cruza o céu. Os campos ficam inundados. Frio extremo é seguido por uma
forte onda de calor, que inevitavelmente é seguida por uma crise de fome.
Até
que, em um dia escaldante do verão europeu, em julho de 1518, uma mulher — Frau
Troffea — chega a uma praça em Estrasburgo, na França, e começa a dançar.
No
início, as pessoas à sua volta apenas a observam, com a curiosidade despertada
pela exibição pública incomum. Elas assistem à mulher, que parece não conseguir
parar de dançar.
Não
há música. Seu coração mantém os batimentos, trabalhando arduamente para manter
o corpo em movimento.
Ela
dança assim por cerca de uma semana, ocasionalmente cai de exaustão, mas logo
se levanta e segue, ignorando dores, fome e vergonha. Quando ela é levada da
praça, já é tarde demais. Outras pessoas haviam passado a acompanhá-la. E, em
agosto, seriam centenas de pessoas dançando sem parar.
Como
Troffea, elas dançam por compulsão, com os pés sangrando e espasmos dos
membros.
Um
poema de uma crônica da época descreve: "Homens e mulheres dançando e
pulando... //No mercado público, nos becos e nas ruas, //Dia e noite."
Até
que a "doença" finalmente desaparece. Outras crônicas descrevem
medidas tomadas pelas autoridades para combatê-la. Um autor descreve que os
dançarinos eram levados em carroças até um santuário dedicado a São Vito, perto
da cidade, onde eles "recebiam pequenas cruzes e sapatos vermelhos".
Outro
autor menciona medidas mais diretas para tentar levar os dançantes à exaustão,
juntando-os a "pessoas... especialmente selecionadas para dançar com eles
em troca de pagamento, com música de tambores e flautas".
Mas
não ajudou. "Nada disso teve efeito e muitos dançaram até a morte",
diz o autor.
·
Por quê?
Ao
longo dos mais de 500 anos passados após esse bizarro evento - a chamada
"epidemia de dança de Estrasburgo" -, foram apresentadas várias
teorias para explicar o que teria acontecido. É um evento que nos fascina até
hoje, que pede para ser recontado e segue inspirando artistas a dar sua própria
interpretação desse estranho acontecimento.
Em
maio de 2022, foram lançadas no Reino Unido duas obras importantes sobre a
praga da dança: o álbum Dance Fever ("Febre de
dança", em tradução livre), da banda Florence + The Machine, e o
livro The Dance Tree ("A árvore da dança", em
tradução livre), de Kiran Millwood Hargrave.
São
duas obras em que a coreomania (como o fenômeno foi chamado posteriormente) é
usada como forma de refletir sobre inibição e extroversão.
Estrasburgo
é o exemplo mais famoso, mas não foi o único lugar da Europa atingido pela
"epidemia de dança" na era medieval e no início da era moderna.
Muitos casos de pessoas dançando descontroladamente foram registrados na
Alemanha, na França e em outras partes do então chamado Sacro Império Romano.
Naquela
época, esses eventos eram interpretados como punição divina ou possessão
demoníaca e combatidos com soluções religiosas, como procissões, missas ou
intervenção direta de padres. Duas décadas antes do verão de 1518, um clérigo
em Estrasburgo chamado Sebastian Brant escreveu, em sua alegoria satírica O
Navio dos Tolos, que "a dança e o pecado são uma coisa só",
culpando Satã por toda essa "dança alegre e inebriada".
Vários
anos depois do incidente de Estrasburgo, o médico suíço Paracelso elaborou uma
série de tratados sobre a coreomania, incluindo As Doenças que Privam o
Homem da Razão, como a Dança de São Vito, a Epilepsia, a Melancolia e a
Insanidade, e seu Tratamento Correto (em tradução livre).
Hoje
em dia, Paracelso é mais conhecido pelo seu trabalho pioneiro com a química na
medicina, mas ele argumentava que o fenômeno da coreomania provavelmente era
mais terreno que divino. Ele sugeriu que nesses episódios, os movimentos
frenéticos e incontroláveis eram causados em determinadas pessoas por sangue
aquecido em "veias das risadas", provocando uma "sensação de
cócegas" que subia dos membros à cabeça, até que o "sangue
frenético" se acalmasse.
Mas
isso não abolia o pecado. Paracelso escreveu que as pessoas mais afligidas pela
doença incluíam "prostitutas e malandros que encontram prazer ao tocar
violão e alaúde... satisfazendo toda a sua voluptuosidade, prazer do corpo,
imaginação e fantasia".
Ele
argumentava que a "imaginação" era uma causa mais plausível do que
Deus ou o diabo. A imaginação, segundo Paracelso, "não se transporta
apenas de uma casa para outra... mas também passa mais rapidamente de uma
cidade e de um país para outro, de forma que, com a imaginação de uma única
pessoa, a peste pode chegar a toda uma cidade ou país."
Essa
interpretação se alinha mais com as teorias atuais sobre as doenças
psicogênicas de massa, induzidas por circunstâncias políticas e sociais
atípicas.
Houve,
por algum tempo, especulações de que o fungo do centeio - encontrado nos caules
da planta, capaz de causar fortes convulsões e alucinações - pudesse estar por
trás das epidemias de dança, mas elas foram em grande parte descartadas. John
Waller, autor do livro de não ficção mais popular sobre o tema - A Time
to Dance, a Time to Die: the Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518 ("Hora
para dançar, hora para dormir: a história extraordinária da praga da dança de
1518", em tradução livre) - define a coreomania como uma "epidemia
psíquica", similar a outras pelo mundo que envolvem outras reações
involuntárias do corpo, como rir ou desmaiar.
·
Coreomania moderna
Em
última análise, a história do verão surreal de 1518 é apenas isso: uma
história.
As
danças em massa em Estrasburgo são documentadas de alguma forma em pelo menos
seis crônicas diferentes da época. Elas registram que os movimentos das pessoas
persistiram por semanas e Frau Troffea é indicada como a instigadora em várias
dessas crônicas. Mas, a partir daí, os detalhes começam a divergir.
Há
datas diferentes para quando as danças começaram. E são apontados vários
métodos para lidar com o fenômeno. Como tantos outros eventos históricos, este
foi retratado a partir de fragmentos.
Independentemente
do que ocorreu de verdade, a história continua a despertar nossa imaginação.
Uma figura isolada que deflagra um movimento em massa. Uma dança que é tão
envolvente que transcender a vontade individual e as limitações físicas, às
vezes com consequências fatais.
É
o tipo de evento que cativa até nós que continuamos a escrever sobre ele,
conjurando imagens detalhadas sobre os pés machucados ou o batimento cardíaco
de Frau Troffea.
·
A 'praga da dança' nas artes
A
dança incontrolável parece ter um efeito contagiante sobrenatural. Faz lembrar
do popular conto Os Sapatinhos Vermelhos, de Hans Christian
Andersen, dos sapatos vermelhos amaldiçoados que condenam sua dona a uma dança
tão excruciante que ela pede a um carrasco para que corte seus pés.
A
história é chocante, mas as pessoas a adoram. Apesar de suas implicações morais
serem relativamente diretas (uma boa dose de punição por vaidade: a menina
passou por essa provação porque se atreveu a cobiçar aqueles belos sapatos
antes de tudo), suas referências mais sombrias a possessão e perda de controle
sobre os movimentos inspiraram inúmeras obras, incluindo o filme Os
Sapatinhos Vemelhos dos cineastas britânicos Michael Powell e Emeric
Pressburger, um álbum da cantora Kate Bush e diversos balés.
Em
2022, a praga da dança está de volta com força. O quinto álbum da banda
britânica Florence + The Machine, lançado em maio, chama-se exatamente Dance
Fever e é inspirado nos impulsos incontroláveis da coreomania.
O
press release destaca o interesse da vocalista, Florence Welch, por esse ponto
de encontro volátil entre movimentação energética e pânico moral, e aponta para
o fato desse álbum ter sido gravado durante a pandemia de covid-19, quando
todos ansiavam pelo retorno do "turbilhão de movimento e união".
Uma
praga da dança é um tema propício para qualquer pessoa que desejar explorar
incerteza e mudança. Os versos iniciais da música Choreomania -
composta antes da pandemia - são excepcionalmente proféticos:
"E
estou perdendo a cabeça no meio da rua // Com a total convicção de alguém para
quem, na verdade, nunca aconteceu algo de realmente ruim."
E
ela também é propícia para uma cantora tão preocupada com o corpo como
instrumento de expressão. Os clipes das faixas King e Heaven
is Here apresentam o mesmo grupo de dançarinas que rodopiam ao redor
de Welch, com seus movimentos desinibidos batendo os pés no chão e girando seus
vestidos.
Paralelamente,
o último romance da escritora Kiran Millwood Hargrave, The Dance Tree,
examina especificamente os supostos eventos do incidente de 1518 em Estrasburgo
através da vida de mulheres envolvidas nele.
Na
versão de Millwood Hargrave, a praga da dança aflige apenas as mulheres -
começando com Frau Troffea, que se movimenta "como se estivesse sendo puxada
por duas cordas diabolicamente presas aos seus membros" e se expandindo
até formar um esmagador amontoado de "corpos pulsantes" que
desestabiliza tudo ao seu redor.
Escrita
em terceira pessoa, a história é observada, em grande parte, pelos olhos da criadora
de abelhas grávida Lisbet, uma mulher calejada que busca desvendar os mistérios
da família do seu marido. Ela é uma observadora e não participa do evento. Mas,
à medida que a dança muda a natureza da cidade, ela também muda. Revelações e
desejos sobem à tona.
A
narrativa é costurada com breves retratos das mulheres que aderem à dança:
mulheres que perderam seus pais, seus filhos ou sua sanidade; mulheres que
conheceram paixões que lhes foram negadas; mulheres que permanecem sendo
espectadoras até não conseguirem resistir à promessa de liberdade oferecida
pela multidão dançante.
·
Êxtase e raiva
Talvez
fosse inevitável que a praga da dança ganhasse novamente popularidade neste
momento.
Os
últimos dois anos geraram intenso interesse pelas muitas pandemias que
enfrentamos no passado, da peste bubônica à gripe espanhola. Nós as buscamos
não apenas para comparação, mas também, ao que parece, para nos assegurar que
todas as epidemias em algum momento chegam ao seu final.
Nesse
contexto, algo vagamente classificado como uma praga, cujo contágio não gera
uma doença, mas sim movimento, sempre é atraente. Florence Welch reconhece que
uma das sensações perdidas durante o lockdown foi o sentimento de comunidade
oferecido pela dança - aquela delicada sensação de estar fisicamente próximo de
centenas de outras pessoas, todas conduzidas pela música que comanda os
músculos, transformando um mar de estranhos em companheiros de viagem unidos
por aquela experiência comum.
E
não ficou só nisso. Em julho de 2020, o cineasta britânico Jonathan Glazer
lançou um filme de 10 minutos intitulado Strasbourg 1518 ("Estrasburgo
1518", BBC Films/Artangel) mostrando dançarinos solo literalmente dançando
até cair. Já em 2022, com o teatro de volta a todo vapor, produções como The
Maladies ("As doenças", em tradução livre), no Teatro
Almeida, em Londres, Dance to the Bone ("Dance até os
ossos"), no Teatro Sherman de Cardiff, no País de Gales, e The
Dancing Public ("O público dançarino"), da coreógrafa
dinamarquesa Mette Ingvartsen, atualmente em tour pela Europa, fizeram alusões
aos eventos de Estrasburgo, usando-os como pano de fundo para meditações sobre
opressão, desconexão e movimentos de massa.
·
Um grito de liberdade
O
apelo sensorial desse fenômeno não se deve totalmente ao coronavírus. Ele se
refere a outras preocupações atuais.
"Acho
que, quanto mais nossas vidas forem pressionadas, regradas, nosso tempo for
gerenciado... quanto mais necessidade tivermos de produzir e ser eficientes,
quanto mais os nossos espaços públicos forem cercados e policiados... mais
cresce a nossa fantasia, o sonho, a ânsia de liberdade", afirma Kélina
Gotman, autora de Choreomania: Dance and Disorder ("Coreomania:
dança e distúrbio", em tradução livre).
O
livro de Gotman, preocupado em grande parte com a patologização da coreomania,
está menos interessado nas origens dos ataques de dança e mais em como esses
momentos foram descritos, interpretados e utilizados para justificar diferentes
ideologias.
A
liberdade é uma ideia central do álbum Dance Fever e do livro The
Dance Tree. "Existe algo elevado, cheio de esperança: um
abandono", escreve Millwood Hargrave sobre a multidão crescente. A praga
da dança, no seu livro, é uma situação de desordem, mas é também um refúgio
arrebatador. "Eu queria observar a sensação de ficar envolvido em algo tão
incrível, transcendente e incomum", ela conta. "Enfim, é um completo
êxtase coletivo."
Essa
ideia da dança como um espaço de êxtase encontra paralelos no álbum Dance
Fever. "Mas eu ouço a música, eu sinto a batida // E, por um momento,
quando estou dançando, estou livre", canta Florence Welch na música Free.
A
liberdade não é um estado a ser subestimado. O livro The Dance Tree
inclui temas explícitos sobre a autonomia das mulheres e o poder
decorrente de se tornar um objeto que causa medo. "A ira e o desejo das
mulheres" é como Millwood Hargrave caracteriza a preocupação central do
seu romance.
A
dança nem sempre é bonita. Ela pode ser feia, assustadora, suada, uma exibição
de espasmos, caretas e membros retorcidos. É uma forma bastante literal de
mostrar autonomia. Ela parece dizer "ninguém pode me impedir de me
mover".
No
ambiente religioso altamente claustrofóbico de The Dance Tree, a
dança também desafia as normas comuns. Paracelso nos ajuda a relembrar que a
dança é prazerosa demais para não despertar suspeitas.
"A
dança desempenha um papel enorme em tantas culturas além da nossa,
particularmente na cultura indiana", explica Millwood Hargrave. "Em
termos de fé e movimento... eles são companheiros absolutamente perfeitos, pois
a expressão mais pura da devoção está no corpo."
Mas,
nas instituições religiosas que exigem devoção silenciosa, esses gestos
tornam-se perigosos. "É algo realmente interessante que essas mulheres
nunca tenham sido incentivadas a se movimentar...", prossegue Millwood
Hargrave.
"Em
todas as outras formas, a igreja é tão teatral no lugar e na época do livro: as
belas construções, o perfume, o incenso, a cera, as roupas, é tudo tão exótico,
tão teatral. Mas, quando você entra, você fica imóvel e em silêncio... é o
teatro sem o calor, sem a real conexão corporal entre as pessoas."
·
Praga da dança para todas as idades
Os
distúrbios em massa sempre cativaram os artistas. Existe algo fundamentalmente
fascinante nos momentos em que o tecido social se rompe e as convenções são
substituídas por acontecimentos incomuns e inexplicáveis.
No
caso da coreomania, o que emerge não é um sentido de encantamento ou
autodestruição (outro tema artístico popular), mas de protesto físico.
Hoje,
a ideia da praga da dança surge não só como uma esquisitice, mas como algo mais
libertador. Uma dança que não pode parar pode ser assustadora, mas tem também o
seu fascínio.
O
que poderia acontecer se nos permitíssemos ser seduzidos por ela? O que
poderíamos atingir com essa sensação se ela fosse reproduzida em centenas de
outras pessoas em movimento à nossa volta?
Mas
isso nem sempre aconteceu. Gotman destaca no seu livro que houve tempos em que
a praga da dança, na forma em que foi concebida, era algo a ser observado com
suspeita.
Ao
pesquisar abordagens feitas no século 19 a episódios de coreomania, ela se
deparou com uma atitude de alarme, de receio ao "ser diferente":
"havia uma articulação real de uma versão de modernidade, como sendo
contrária ao que era considerado mais feminino, mais animal, mais selvagem e
indomada", contou ela à BBC sobre registros médicos e históricos da era
vitoriana descobertos por ela. "Havia um discurso racista e de forte
discriminação de gênero que estava tomando forma."
Naquele
momento, ao contextualizar novos casos percebidos de coreomania, o período
medieval era conveniente para entendê-los. "Os medievais... eram
comparados com os africanos, em grande parte como esse tipo de [período]
pré-moderno, não europeu, retrógrado", explica Gotman.
O
próprio conceito da "mania de dançar" era um instrumento político
útil, que permitia comparar - e rejeitar - os protestos e práticas que
envolvessem qualquer elemento de movimentação física.
Gotman
menciona o exemplo do rei Radama 2°, governante fantoche que assumiu o controle
de Madagascar em 1861. Quando o povo demonstrou seu descontentamento,
"exercendo seu direito de protesto contra os reinos [que] venderam sua
terra para os europeus", e o rei acabou por ser deposto, ficou fácil para
os missionários coloniais rechaçar essas ações como mais um exemplo de
coreomania, transformando um protesto político em um mero caso de loucura.
Agora,
o sentimento dominante mudou. São exatamente a feminilidade e a diversidade da
praga da dança que a tornam interessante.
Para
os artistas ou pensadores atuais, ela é um símbolo e uma curiosidade histórica.
A ideia central é simples. Um grupo de pessoas começa a dançar e não consegue
parar.
Mas
o motivo da dança e seus propósitos permanecem uma questão em aberto, que pode
ser formulada muitas e muitas vezes, com diferentes respostas, dependendo do
que se procura. Loucura. Fome. Protesto. Liberdade. Prazer. Êxtase.
Na
nossa imaginação, os pés dos dançarinos permanecem para sempre em movimento, em
seu ritmo próprio e impenetrável.
Fonte:
BBC Culture
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