13º salário foi
criado em meio a intensa disputa ideológica entre esquerda e direita no Brasil
A
adoção pelo Brasil de uma gratificação de Natal obrigatória para os
trabalhadores ocorreu no bojo das grandes turbulências e transformações da
década de 60. Em abril de 1961, os soviéticos haviam pela primeira vez enviado
um ser humano para muito além da estratosfera, primeiro grande passo em direção
à Lua, cujo solo seria tocado só oito anos mais tarde pela nave norte-americana
Apolo 11. No Brasil, que recebera o cosmonauta Yuri Gagarin 90 dias depois de
seu feito, discutia-se acaloradamente a criação do “13º mês de salário” como
parte dos embates ideológicos entre esquerda e direita típicos da Guerra Fria:
de um lado os Estados Unidos e o capitalismo; do outro, a União Soviética e o
comunismo.
A
criação do 13º, proposta em 1959 pelo deputado Aarão Steinbruch (PTB-RJ), seria
aprovada pelo Senado em 27 de junho de 1962 e sancionada pelo presidente João
Goulart em 13 de julho. Resultaria na Lei 4.090, de 1962, que garantia a todo
empregado o direito a uma gratificação de fim de ano equivalente a 1/12 do
salário de dezembro para cada mês trabalhado. Na época, entendia-se como
empregados os trabalhadores assalariados na iniciativa privada.
No
contexto de uma inflação renitente, que chegaria em dezembro a 51,6% (IGP-DI),
foi uma das notícias alvissareiras do ano para a população. Em maio, o orgulho
dos brasileiros já havia sido massageado pela Palma de Ouro do filme O pagador
de promessas, em Cannes. Nada, porém, que se comparasse ao delírio das
comemorações pelo bicampeonato mundial de futebol, conquistado no Chile em 17
de junho.
Ainda
assim, nem todo o otimismo gerado pela Copa do Mundo foi suficiente para
desfazer o mau humor no terreno da política e da economia. Contra a vontade dos
militares, Jango assumira a Presidência da República em setembro de 1961 com a
surpreendente renúncia de Jânio Quadros, eleito pela coligação de direita
PTN-PDC-UDN-PR-PL. Sob regime parlamentarista forçado, o Brasil continuou a
enfrentar grande inquietação e risco de golpe de Estado, do qual não escaparia
em 1964.
Matizando
com sua excentricidade a política externa independente arquitetada pelos
chanceleres San Thiago Dantas e Afonso Arinos, Jânio tomaria medidas
dissonantes, dada a coalizão que o sustentava. Uma delas foi condecorar o
guerrilheiro e integrante do Governo cubano Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro
do Sul a seis dias de assinar sua carta de despedida do Governo, em 25 de
agosto. Um mês antes, ele havia concedido a Ordem da Força Aérea Brasileira ao
nada polêmico Gagarin, então uma celebridade em giro pelo mundo e procedente de
Cuba. As relações com a URSS seriam normalizadas em dezembro, mas Jânio a essa
altura já havia se convertido numa das mais indecifráveis esfinges da política
brasileira.
As
contradições desse momento ligam, simbolicamente, o cosmonauta soviético às
lutas pelo 13º salário, já que Gagarin visitou no Rio de Janeiro o Sindicato
dos Metalúrgicos, uma das categorias mais mobilizadas em torno do abono e
outras reivindicações. Aprovado em segundo turno no dia 24 de abril de 1962 na
Câmara, o PL 440-C/1959 motivara a convocação de uma greve geral em São Paulo,
iniciada em 14 de dezembro do ano anterior, quando aquela Casa adiou por 48
horas a votação em definitivo do projeto.
O
13º, entretanto, não era novidade na pauta dos sindicatos, que por ele já
batalhavam havia muitos anos, seja em movimentos setoriais, seja naqueles de
caráter mais amplo. “Os primeiros registros de que temos notícia falam de
greves e demandas pelo abono natalino em 1921 na Companhia Paulista de Aniagem
e na indústria Mariângela”, destaca Murilo Leal Pereira Neto em A Reinvenção do
Trabalhismo no “Vulcão do Inferno”, tese por meio da qual obteve o título de
doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP). Na mesma linha, o
trabalho menciona episódios posteriores, começando por uma greve geral pelo
pagamento do benefício em Santo André, em 1944, depois da concessão do
benefício aos operários da Pirelli no ano anterior, e greves nos anos de 1945,
1946, 1951 e 1952 envolvendo diversas categorias, como ferroviários da
Sorocabana, trabalhadores da Light, tecelões, gráficos, químicos, bancários,
marceneiros, vidreiros, padeiros, sapateiros e comerciários.
O
projeto de Steinbruch também não era novidade. Tratava-se do terceiro
protocolado na Câmara.
Duramente
reprimida, a greve dos paulistas resultou em prisões, mas marcou a forte
posição dos trabalhadores. Eles queriam ir além da concessão da gratificação
natalina por mera liberalidade das empresas e, muitas vezes, com valores abaixo
do salário mensal.
“O
13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão da fábrica,
legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregados em algumas firmas,
transformada em lei às custas de greves, demissões, abaixo-assinados, prisões e
cuja memória é depois ofuscada pelo brilho da lei que, supõe-se, como toda lei,
deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador”, escreve
Pereira Neto.
O
historiador cita em sua tese o depoimento do metalúrgico aposentado João Miguel
Alonso sobre esses conflitos:
“O
13º salário, a maior parte do nosso povo ignora, saiu do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo. Pode confiar com toda a consciência no que eu estou
falando. Toda vez que nós abrimos qualquer negociação de fim de ano com os
patrões, nós encaixávamos o 13º, porque sabe o que acontecia naquela época? Os
patrões ganhavam aquele dinheiro no fim do ano, tudo, chegava e dava um
panetone e dava uma garrafa de vinho ruim pro cara. Então nós mostramos a
realidade. O trabalhador também precisava passar o Natal melhor. (...) Oh, meu
Deus do céu, vocês têm que entender, vocês não vão dar a empresa pra eles.
Vocês vão dar apenas o essencial para esse coitado viver, passar um Natal
melhor com a família.”
Na
data marcada para começar a paralisação de dezembro de 1961, o deputado
Derville Alegretti, do Partido Republicano (PR) de São Paulo, leu em Plenário
carta do seu colega Cunha Bueno, do Partido Social Democrático (PSD), também de
São Paulo, que expressava preocupação com “os destinos do regime democrático”
face à greve e a um sem-número de outras manifestações que tomavam conta do
país. “Sente-se um mal-estar em qualquer parte onde nos encontramos”, escreveu
Bueno. O parlamentar relatou que, durante visita naqueles dias a São Paulo,
Jango reafirmara sua crença de que a estabilidade econômica dependia das
chamadas reformas de base, como a redistribuição de terras. Lamentava, porém, a
incompreensão do tema por parte “dos nossos homens de governo”. Ao falar em
público, observava Bueno, o presidente recebera um misto de apoio e pressão por
parte dos grevistas, que agitavam cartazes sem parar. Sua fala também teve de
competir com gritos de “fala, Jango” “viva Jango”, “viva Cuba” e “abaixo o
imperialismo americano”.
De
acordo com Rubens Goyatá Campante, doutor em sociologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola
Judicial do TRT-3ª Região, uma outra greve, deflagrada 18 dias após o Brasil
conquistar a Copa —ou seja, já em 1962— jogou a favor do 13º. Na opinião de
Campante, expressa no artigo “O 13º veio de uma greve geral”, esse episódio
“desmente análises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma ‘apatia
sócio-política’ da população”. O movimento afetou principalmente empresas
estatais ou sob controle do Governo, mas o setor privado não passou incólume.
Nos transportes, ferrovias, bancos e portos, a paralisação foi expressiva,
assim como nas refinarias e distribuidoras da Petrobras. Cruzaram os braços
trabalhadores de São Paulo, Fortaleza, Belém, Recife, Salvador, Campina Grande
(PB), Vitória, Santos e Cubatão (SP), Belo Horizonte, Paranaguá (PR), Itajaí e
Criciúma (SC), entre outras.
Mesmo
pressionada, a Câmara adiou bastante o segundo turno da votação. Quando aprovou
o PL, no entanto, o fez sem alterar o texto original de Steinbruch, embora
alguns deputados tenham empurrado para o Senado a tarefa de emendar o projeto.
“A
proposição foi adiada por 48 horas ainda em dezembro último. Muitas oito horas
decorreram sem que a matéria fosse novamente colocada em pauta. Quando se
discutiu o assunto naquela ocasião, dizia-se que não era possível sua votação
porque se iria surpreender a classe patronal com o pagamento de um mês no
próprio mês de dezembro. Estamos em fevereiro, quase ao término da convocação
extraordinária, e é preciso que esta Câmara atente em que durante esse período,
quase nada votamos”, diria o próprio Steinbruch na sessão de 23 de fevereiro.
Os
senadores não foram menos pressionados, conforme deixam claro os registros das
sessões da Casa mantidos pelo Arquivo do Senado, um rico acervo a mostrar que o
tempo passa, mas embates semelhantes voltam ao plano da vida nacional, a
despeito da troca de sinais. Em 1962, como hoje, insistia-se na necessidade de
reformas. Aquelas eram voltadas a ampliar os direitos sociais. As de agora,
igualmente tidas como condição sine qua non para a estabilidade econômica e o
crescimento, incluem disciplina fiscal, reestruturação tributária e
administrativa, além da redução de direitos trabalhistas.
“A esta altura dos acontecimentos, no momento
em que o Conselho de Ministros remete vários projetos à Câmara dos Deputados,
no alto e elevado propósito de conter a inflação devastadora que aí está, todos
nos vemos obrigados a medidas paralelas, no sentido de aliviar um pouco os que
vivem de salários, quer funcionários, quer operários, mas essas medidas
fatalmente agravarão ainda mais a situação a que chegamos”, advertiu o senador
Novaes Filho, do Partido Libertador (PL) de Pernambuco, em um prolongado debate
que envolveu a emissão de moeda, o controle dos gastos e até o sistema
parlamentarista, no dia 2 de maio de 1962.
Novaes
Filho emendou: “Já nos encontramos num ambiente de indisfarçável perigo para a
própria ordem pública. Já é difícil a quem encarna, neste país, o princípio da
autoridade, exigir prudência, exigir hierarquia, exigir disciplina de um povo
sacudido pela fome, de um povo em desespero porque o que ganha hoje não satisfaz
mais as necessidades de amanhã. Lamento que no Congresso Nacional não se tenha
adotado até hoje uma única medida de prudência, de patriotismo, uma única
medida enérgica contra esse estado tremendamente prejudicial ao país, em todos
o seus setores de atividade”.
Paulo
Fender (PR-PA), principal defensor do 13º no Senado, pergunta então a Novaes se
o Governo poderia coibir as emissões [de moeda] diante de demandas urgentes e
se o Congresso não teria cedido “para atender as necessidades do povo”. No entender
dele, a saída era estrutural. “Parece-me que os projetos que mais interessam à
Nação são os chamados de reforma de base, que não acodem a emergências. São,
por conseguinte, proposições cujo alcance têm prazo mais longo, que combatem a
inflação no seu cerne, na sua base, na sua infraestrutura”, argumentou. Um
desses projetos era o que limitava a remessa de lucros de multinacionais para
obrigá-las a reinvestir aqui o que ganhavam. “Penso que o Parlamento Nacional
tem feito muito, porém a realidade brasileira não permite que se adotem medidas
drásticas”.
Poucos
dias antes, ao anunciar a chegada do projeto ao Senado, Fender observava: “O
assunto já preocupa as classes conservadoras”.
Tais
preocupações mereceram uma cautelosa exegese por parte do senador Ruy Carneiro
(PSD-PB):
“Sou
favorável ao projeto e devo dizer que dirijo uma organização privada —o Banco
Hipotecário Lar Brasileiro— há 14 anos, e esse banco vem dando aos seus
funcionários a chamada natalina, correspondente a um mês de vencimentos. Por conseguinte,
para esse estabelecimento, o projeto não traz novidade, pois o 13º mês já está
incorporado aos proventos dos seus servidores e às suas despesas habituais. O
que deve haver, por parte das classes conservadoras, é o receio de que certas
organizações sem lucro não possam efetuar obrigatoriamente esse pagamento.”
A
resposta de Fender, que nas escaramuças com os conservadores recebia apoio de
Lima Teixeira (PTB-BA) e Barros Carvalho (PTB-PE), mostra o quanto de
antagonismo pairava no ar:
“Neste
país, quase toda falência que se registra é fraudulenta. Nunca vi casas
comerciais falirem por não lucrarem os seus proprietários. Estes têm o trato
especializado de alterar preços a seu talante. Reúnem-se nas suas associações
para que suas casas de negócio mantenham sempre as portas abertas, mercê de
constantes aumentos percentuais das mercadorias que dão para sustentar
empregados, serviços e despesas. E os lucros de 20% ou 30%, seja qual for a
carestia da vida, são invioláveis. Assim, não se venha a dizer que o aumento
salarial implica, consequentemente, em aumentar o custo de vida. Só poderá tal
ocorrer se os comerciantes quiserem pagar esse aumento salarial à custa do
povo.”
As
preocupações expressas por Guido Mondin, do Partido de Representação Popular
(PRP) do Rio Grande do Sul, iam além dos efeitos inflacionários induzidos pelo
aumento do meio circulante, consequência do volume global de recursos a serem
pagos. Ele alegava que o valor individual a ser recebido pelos trabalhadores
seria irrisório, frente ao “alarmante e acachapante custo de vida no Brasil”. E
temia pelo abono de Natal que já era pago pelas firmas: “Há muitas que,
espontaneamente, abonam os seus funcionários no mês de dezembro. Então, esta
lei deverá especificar que o 13° mês será pago sem prejuízo daquelas vantagens
voluntariamente oferecidas aos empregados, desta ou daquela empresa. Repare se
não há esta falha no projeto de lei?”
O
projeto, contudo, não interferia nos pagamentos espontâneos. Apenas
universalizava uma gratificação, que segundo Fender, era de certa forma o
primeiro passo para se regulamentar o dispositivo constitucional que previa a
participação de todo empregado nos lucros das empresas.
E
embora um dos princípios do trabalhismo fosse “contribuir cada um segundo suas
possibilidades, para outro segundo suas necessidades”, Fender via uma vantagem
do abono para o sistema capitalista, que se mostraria verdadeira:
“Leio,
na imprensa carioca, manifestações pessimistas de representantes das classes
conservadoras, que alertam a Nação para o perigo que esse projeto de lei pode
ocasionar com relação à inflação. Há os que calculam em centenas de bilhões de
cruzeiros o aumento das despesas de pagamento de salários que o projeto
carreará. O que não se diz, porém, é que aumentará o mercado consumidor e, por
conseguinte, a produção terá mais fácil colocação. Não se pode admitir, pura e
simplesmente, que não havendo aumento de produção correlata com o aumento de
salários, esse salário seja indevido ou injusto. É um raciocínio simplista que,
desta tribuna, contestamos.”
Em
9 de maio, Aloysio Carvalho (PL-BA) procurou dar voz diretamente aos
empresários, ao ler telegrama enviado pela associação comercial de seu Estado,
que pedia um “meticuloso e profundo exame do projeto, cuja aprovação importará
no agravamento da crise financeira nacional, estimulando o surto inflacionário
e consequente majoração do custo de vida.”
Uma
abordagem mais ampla da questão viria em longo e virulento discurso proferido
por Mem de Sá (PL-RS). O senador apoiou sua argumentação em aspectos técnicos e
apresentou estimativas para o que considerava uma provável elevação em escala
dos recursos dispendidos com salários em razão do 13º, somados aos que deveriam
ser pagos aos servidores públicos. As repercussões inflacionárias seriam amplas,
acreditava ele, não só pelo aumento dos custos das empresas e da demanda, como
também do déficit público, provocando a necessidade de reajuste do salário
mínimo e aumento de impostos, num círculo vicioso infinito.
“Poderá
o Estado, depois de publicada tal lei, recusar a seus servidores a liberalidade
que coercitivamente impôs às empresas e empregadores privados? Com que
autoridade moral negará a seus empregados o que forçou a ser dado aos demais? E
então, naturalmente, o déficit será ainda maior e tudo será pior ainda”,
previa.
Do
“quadro desesperador”, que expôs, o senador anunciou “conclusões imediatas”. E
a primeira era: “a ordem constitucional e as instituições” não resistiriam, a
economia nacional entraria em colapso e o país, em convulsões sociais.
“O
Brasil ameaça explodir!”, alertou Mem de Sá, bastante cético sobre o remédio
preconizado por Jango e por Fender, que fazia pouco do déficit público:
“Não
há reformas de base, nem emendas constitucionais, nem poderes Constituintes,
que resolvam nossos problemas dentro da hiperinflação em que afundamos
vertiginosamente. Neste clima e neste ambiente, o esquema subversivo em
escancarado desenvolvimento, promovido pela inconsciência da ambição e da
demagogia, ‘cubanizirá’ o Brasil ou o lançará na anarquia de agitações
sangrentas e ditaduras instáveis.”
Para
Mem de Sá, estariam o Congresso e o Governo “procedendo como irresponsáveis”,
por se distanciarem dos esforços “de sobrevivência” do combate às causas da
inflação, para cada vez mais agravá-las, “como se decididos ao suicídio”. O
senador criticou ainda o comodismo, o empreguismo, a politicagem e a tendência
de governantes para a inépcia e a corrupção.
Na
sequência, desferiu um ataque frontal a Goulart, tentando relativizar a culpa
do Parlamento e livrá-lo do papel de bode expiatório “dos descalabros” daquele
momento:
“O
Sr. João Goulart não pode, assim, descer da dignidade [do cargo] de presidente
da República para adotar a linguagem e os expedientes de líder de facção,
concorrendo, por esta forma, com a autoridade de seu posto para que o povo se
deixe mistificar pela demagogia dos agitadores profissionais e dos caçadores de
votos”.
A
intervenção de Mem de Sá tocaria por fim no explosivo tema do sistema de
governo, que também era objeto de manifestações sindicais, seja a favor da
troca do primeiro-ministro seja pela volta dos plenos poderes a Goulart, que
também queria converter o Congresso seguinte em Constituinte para votar as
reformas de base:
“É
preciso dizer ao povo que o Ato Adicional não foi cumprido, que não foi
implantado no Brasil o sistema parlamentar de Governo, que temos hoje uma
caricatura de parlamentarismo servindo de máscara à união ou confusão de
partidos dentro de um Governo em que o presidente da República cada vez mais
cresce em força e poder, à medida que o Conselho de Ministros se apequena e
encolhe e o Congresso se demite.”
Da
parte dos senadores Miguel Couto (PSD-RJ) e Lima Teixeira, a preocupação era
ampliar o escopo do projeto de Steinbruch. Couto ainda resgataria em sua fala
do dia 30 de maio o espírito cristão que dera origem à proposição:
“Teve
este projeto extraordinária repercussão em todo o país, e podemos considerá-lo
vitorioso pelos seus elevados propósitos de amparar as classes menos
favorecidas pela fortuna. É justo que durante as comemorações natalinas, quando
toda a humanidade procura desarmar os espíritos para devotar-se aos festejos
pela data do nascimento do Menino Jesus, que se contribua financeiramente,
ofertando os meios necessários a que cada lar modesto possa também participar
das merecidas alegrias no aconchego da família”, pregou, para em seguida propor
a extensão do benefício aos pensionistas e aposentados dos institutos de
previdência, “criaturas já envelhecidas ou inválidas, sem meios para um esforço
maior em busca das necessidades familiares”.
Teixeira
pediu pelos “inúmeros trabalhadores avulsos da estiva”, cujo trabalho não era
constante e que reivindicavam o pagamento do 13º com base no percentual de
atividade e de frequência quando “da chegada de navios ao porto”.
O
projeto acabou aprovado sem emendas no Plenário, apesar de uma das comissões do
Senado apresentar substitutivo prevendo converter o benefício em abono de 1/12
avos relativo a novembro, podendo dele serem descontadas gratificações e
participações em lucros. O abono seria dedutível do Imposto de Renda sobre o
lucro real a pagar das empresas e valeria até que lei sobre participação nos
lucros regulamentasse nesse sentido a Constituição, o que só veio a ocorrer no
ano 2000. Pelas regras atuais, a participação é desvinculada dos salários e não
é obrigatória, depende de negociações trabalhistas.
Já
a Lei 4.090 foi regulamentada em 1965, ou seja, já no regime militar, pelo
presidente Castello Branco, e depois das alterações introduzidas pela Lei
4.749/1965, sendo a principal delas a obrigação de os empregadores adiantarem
metade do 13º entre fevereiro e novembro. O Decreto 57.155, de 1965, detalhou
os artigos das duas leis e instituiu uma regra para os trabalhadores com
remuneração variável. Em 1988, a Constituição foi promulgada já com a previsão
do direito ao 13º por todos os trabalhadores urbanos e rurais, mas esse direito
só foi estendido, formalmente, aos servidores públicos em 1998, por meio da
Emenda Constitucional 19.
Fantasmas
e mitos
A
consultora do Senado Jeane Arruda, economista com mestrado em política social
pela Universidade Autônoma de Barcelona, comunga do ponto de vista de que o 13º
salário foi muito além do debate ideológico e se firmou como um ingrediente
bastante útil ao modelo econômico brasileiro.
Segundo
ela, a Gratificação de Natal tem suas origens nos países majoritariamente
cristãos, com a concessão, pelos patrões, de cestas alimentícias a seus
empregados. Ao longo do tempo, as cestas foram substituídas por valores
monetários. No Brasil, antes de 1962, categorias como a dos trabalhadores das
empresas telefônicas de São Paulo já haviam conquistado esse benefício. E há
relatos de que nos primórdios das Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943,
estudou-se institucionalizar o 13º, mas pressões empresariais teriam excluído o
tema da CLT.
Bastante
combatido a princípio, o 13º é um direito consolidado no Brasil, de acordo com
a consultora:
—
Uma evidência disso pode ser vista, por exemplo, na última reforma trabalhista,
ocorrida em 2017, quando não houve alteração alguma relacionada ao 13º.
Certamente, o 13º salário aumenta o poder de compra do trabalhador e os
recursos na economia. O aumento das vendas no período de fim de ano são
positivamente influenciados pelos recursos do 13º. O aumento de gastos que
tipicamente o trabalhador tem com as festas de fim de ano e, também, as
despesas que se concentram no início do ano seguinte, com pagamento de
impostos, matrículas escolares, entre outros, são beneficiados com os recursos
desse salário extra. Além disso, os maiores gastos do trabalhador se refletem
em maior produção e emprego.
Jeane
Arruda explica que esse impacto na economia é significativo porque, além dos
trabalhadores ativos no mercado de trabalho, aposentados e pensionistas do INSS
também fazem jus ao benefício:
—
Para este ano, em que a inflação está estimada em 8,59%, bastante acima do teto
da meta de inflação de 5,25%, a parcela do 13º ainda a ser paga será
especialmente relevante para recompor parte da perda do poder de compra que o trabalhador
sofreu ao longo do ano.
Os
pensionistas e aposentados do INSS, contudo, já receberam as duas parcelas do
13º, pois o Governo federal quis estimular a retomada mais rápida da economia e
reverter os efeitos da epidemia de covid-19. Assim, parte do impacto geralmente
concentrado ao final do ano será menor em 2021. De acordo com o Ministério da
Economia, a medida injetou em torno de 52,7 bilhões de reais no mercado e
beneficiou 31 milhões de segurados.
—
Para este ano, o ingresso de recursos na economia estimado pelo Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos está em 233 bilhões de
reais, equivalentes a 2,7% do produto interno bruto (PIB). A título de
referência, em 2020 o Dieese estimou que foram injetados 215 bilhões de reais
ao longo de todo o ano.
O
crescimento de um ano para o outro foi de 8,3%. Cerca de 83 milhões de
brasileiros serão beneficiados com rendimento adicional, em média, de 2.539
reais, pago aos trabalhadores do mercado formal, inclusive aos empregados
domésticos; aos beneficiários da Previdência Social e aos aposentados e
beneficiários de pensão da União e dos Estados e municípios. Em 2020, o total
de beneficiários foi estimado em 80 milhões de brasileiros, com um benefício
médio de 2.458 reais.
As
previsões catastróficas, afinal não confirmadas, à época da instituição do 13º
devem-se, na opinião da consultora, ao fato de que o país passava por forte
conturbação política.
—
As empresas, representadas sobretudo pela Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo [Fiesp], eram contra a instituição do benefício. Para o empregador, o
13º representa aumento do custo da mão de obra. Daí o interesse em que o
benefício pudesse ser firmado por liberalidade entre as partes, sem, por
exemplo, a compulsoriedade do pagamento ou sem a imposição de valores mínimos.
Além do mais, a economia passava por aceleração inflacionária e havia o temor
de que o 13º agravasse o cenário, o que não se verificou.
Ao
contrário, os contornos do 13º se amoldaram à tradição jurídica e cultural que
situa o Brasil no âmbito de países como os latino-americanos México, Argentina
e Uruguai e os social-democratas europeus Espanha, França, Itália e Portugal:
benefício instituído por lei nacional, sendo frequente o pagamento em valor
igual ao do salário habitual, segundo a consultora. Nos países de tradição
liberal como Alemanha e Áustria, a gratificação de Natal se dá por meio de
contratos coletivos de trabalho e não chega a se igualar ao valor do salário
habitual.
Portugal
paga um subsídio de Natal a todos os trabalhadores em valor correspondente ao
do salário bruto, de uma vez só, em novembro ou dezembro, ou em duodécimos ao
longo do ano. Na Espanha, há garantia do abono, mas não obrigatoriedade de
valor mínimo, mesmo que na prática os valores definidos nos acordos e
convenções coletivas de trabalho equivalham ao da remuneração mensal. Na
Argentina, o pagamento é determinado por lei, sendo realizado em duas parcelas,
uma em junho e outra em dezembro.
Jeane
Arruda diz que depois de quase três décadas de existência legal, o 13º é
envolvido em controvérsias de naturezas distintas às da sua gênese
—relacionadas atualmente à sua validade como instrumento de ganho econômico e
quanto ao grau de sua incolumidade jurídica. Nos últimos anos, circularam
formulações, segundo as quais o benefício não seria na verdade um salário
extra, mas sim o pagamento pelas semanas a mais trabalhadas no ano, em razão de
alguns meses terem quatro semanas e outros, cinco.
—
Não há evidências de que o 13º brasileiro tenha essa finalidade. O pagamento no
Brasil é mensal, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, onde
é semanal. De modo que o argumento não se adequa à realidade brasileira. Por
exemplo, se o trabalhador estiver empregado apenas por 20 dias de um mês do ano,
ele fará jus a 1/12 (um doze avos) do 13º salário, recebendo o proporcional
como se tivesse trabalhado por todo mês, mesmo tendo trabalhado menos de 30
dias. Portanto, não faz sentido o raciocínio por semanas.
Outra
dúvida é sobre se o 13º seria uma cláusula pétrea —e, dessa forma, imutável— da
Constituição:
—
O 13º está previsto no art. 7º da Constituição Federal, que trata dos direitos
sociais dos trabalhadores. O art. 60 da Constituição Federal inclui os direitos
e garantias individuais dentre as cláusulas pétreas, ou seja, direitos que não
podem ser extintos pelo legislador. Na doutrina há o entendimento que os
direitos e garantias individuais não se restringem ao artigo 5º da Constituição
Federal, estendendo-se por todo o texto constitucional. No entanto,
especificamente quanto aos direitos sociais, onde está inserido o 13º salário,
não há consenso entre os doutrinadores sobre tais direitos estarem ou não
inseridos dentre as cláusulas pétreas. Até o momento, o STF não se posicionou
especificamente sobre a questão. Para os que entendem os direitos sociais como
cláusula pétrea, o 13º estaria garantido permanentemente, cabendo apenas
ampliá-lo, mas não extingui-lo ou reduzi-lo — explica a consultora.
Fonte:
El País
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