Como
desnutrição, toxinas na água e agrotóxicos criaram 'bolsões de microcefalia' no
Brasil
A
biomédica Patrícia Garcez se encaixa na rara categoria de pessoas que estavam
no lugar certo, na hora certa.
Durante
sua formação acadêmica, realizada em grande parte na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), ela decidiu entender a fundo uma malformação que até
então era muito rara e pouco conhecida: a microcefalia, marcada pelo
desenvolvimento inadequado do cérebro durante a gestação.
"Lembro
de conversar com uma amiga que trabalha com marketing e, ao explicar o que eu
pesquisava, ela me perguntou: 'Por que você estuda isso, se é algo tão raro?
Não seria melhor focar em algo que seja mais comum e que afeta mais
pessoas?'", lembra Garcez.
"Mas
isso nunca foi uma questão para mim. Na minha mente de formação biológica, o
fato de a condição ser rara não significa que eu vou negligenciá-la ou
ignorá-la", complementa a pesquisadora.
Logicamente,
essa conversa com a amiga aconteceu antes de 2015. Naquele ano, o zika, um
vírus pouco conhecido, desembarcou no Brasil e foi inicialmente caracterizado
como um "primo-irmão" da dengue, transmitido pelo mesmo Aedes aegypti
e responsável por sintomas mais leves.
Mas
a realidade mostrou-se muito mais complexa. Em maternidades espalhadas pelo
país, os médicos começaram a notar um aumento anormal de casos de microcefalia
— justamente a condição estudada por Garcez.
As
suspeitas de que o zika poderia estar por trás do fenômeno logo se confirmaram,
graças a uma série de pesquisas publicadas por cientistas brasileiros
(incluindo ela própria) ao longo de 2015 e 2016.
"Quando
começou o boom de microcefalia, eu não conseguia dormir… Lia tudo o que saía na
imprensa e pensava em como poderia contribuir, já que sou especialista no
assunto e não há muitos pesquisadores nessa área", destaca ela.
Foi
assim que começaram a surgir ideias, projetos, colaborações e estudos. À época,
Garcez estava vinculada à UFRJ, instituição pela qual publicou todos os artigos
que serão citados ao longo da reportagem. Mais recentemente, ela assumiu um
cargo de professora no King's College, uma instituição acadêmica sediada em
Londres, no Reino Unido.
Uma
das inquietações de Garcez na relação entre zika e microcefalia envolvia a
desproporção de casos em determinadas regiões.
"Até
pouco antes da pandemia de covid-19, o Brasil concentrava cerca de 95% dos
casos da síndrome congênita do zika (SCZ)", calcula ela.
A
SCZ é o termo usado pelos especialistas para descrever todas as alterações no
feto em desenvolvimento que são provocadas pela infecção por este vírus — que
incluem a microcefalia, além de alterações visuais, auditivas, motoras…
A
biomédica destaca que uma pesquisa realizada na Flórida, nos Estados Unidos,
estimou que 1% das grávidas infectadas pelo zika transmitiram o vírus para o
feto, durante a gestação.
"No
Brasil, essa taxa variou entre 3%, 13%, até 40%, a depender de como cada estudo
foi feito", compara ela.
E,
mesmo dentro do país, há diferenças importantes de acordo com a localidade dos
casos.
Um
estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) Bahia e outras instituições
destaca que, entre setembro de 2015 e abril de 2016, o Brasil teve 41.473 casos
prováveis de zika entre gestantes.
A
maioria dessas infecções aconteceu no Sudeste (44,6% do total), seguido por
Nordeste (26,8%), Sul (26,8%), Centro-Oeste (12,7%) e Norte (11%).
No
entanto, dos 1.950 casos de microcefalia relacionados à infecção identificados
nesse período em todo o Brasil, 70,4% dos quadros de SCZ aconteceram no
Nordeste.
"O
que explica uma assimetria tão grande? Por que algumas pessoas são mais
atingidas que outras?", pergunta Garcez.
O
grupo de pesquisadores do qual ela faz parte começou a encontrar algumas
respostas para essas questões — e, embora ainda restem muitas dúvidas pelo
caminho, eles já descobriram que a desnutrição, algumas toxinas presentes na
água e certos agrotóxicos ajudam a entender o que aconteceu no Brasil durante o
surto de zika.
• Falta proteína no prato
Uma
das primeiras hipóteses que a biomédica resolveu investigar envolvia a nutrição
materna. Será que a qualidade da dieta da gestante poderia ter alguma
influência no desenvolvimento de uma microcefalia no bebê?
"Fizemos
parcerias com epidemiologistas, que foram às regiões com mais casos de
microcefalia e identificaram quadros de desnutrição severa, acima da média,
entre muitas dessas mulheres", explica Garcez.
Com
base nesse dado, o grupo resolveu avaliar se a falta de proteínas na
alimentação da gestante poderia de alguma maneira contribuir para que o zika
conseguisse invadir a placenta e causar estragos no cérebro em desenvolvimento
do feto.
Os
cientistas focaram no grupo das proteínas, que inclui carnes, ovos, lácteos,
entre outros, porque esses alimentos são geralmente os mais caros da cesta
básica — e, por essa razão, são menos consumidos por famílias que enfrentam
dificuldades econômicas.
As
autoridades de saúde estabelecem que uma gestante deve comer entre 60 e 100
gramas de proteína por dia.
"E
essa é uma meta que pode ser atingida facilmente se a pessoa tem uma dieta
normal, sem restrições financeiras", observa Garcez.
Para
testar essa hipótese, os especialistas restringiram a dieta de camundongos
gestantes no laboratório, que passaram a ter acesso a menos proteínas do que o
indicado e também foram infectados com o zika.
Os
resultados mostram que essa combinação (restrição de proteínas + infecção por
zika) levou a alterações severas na estrutura da placenta e no crescimento do
embrião. Os ratinhos que nasceram apresentavam uma menor formação de neurônios
e um cérebro de tamanho reduzido — ou seja, um quadro similar à SCZ.
O
mesmo não aconteceu com os camundongos gestantes que só comeram menos proteínas
ou aqueles que foram apenas infectados com o zika. Isso sugere que a junção dos
dois fatores ajuda a entender parte desse cenário.
"Suspeitamos
que a desnutrição materna pode causar uma supressão do sistema imune, de modo
que o vírus consegue atravessar a placenta e causar danos", sugere a
biomédica.
Quando
o zika ultrapassa a barreira placentária — especialmente nos primeiros meses de
gestação, quando a formação do cérebro está nas etapas iniciais — o estrago é
quase certo.
"O
zika tem uma capacidade notável de infectar as células-tronco neurais, que são
as 'mães' de todos os neurônios e formam o Sistema Nervoso Central",
ensina a biomédica.
• Seca e cianobactérias
Durante
as pesquisas, Garcez conversou com o biólogo Renato Molica, especialista em
cianobactérias, um tipo de micro-organismo que vive na água e obtém energia por
meio da fotossíntese.
"Ele
me contou que havia uma espécie de cianobactéria presente em reservatórios de
água, especialmente em regiões de muita seca, que produz uma substância
neurotóxica, com capacidade de afetar o cérebro", lembra ela.
A
cianobactéria em questão é a Raphidiopsis raciborskii, que fabrica uma
substância chamada saxitoxina.
Vale
lembrar que, a partir de 2012, poucos anos antes da chegada do zika ao Brasil,
a região Nordeste enfrentou uma das piores secas de sua história. Os mais
afetados precisaram recorrer às águas de reservatórios, que muitas vezes
acumulam esses micro-organismos.
Será
que uma coisa tinha a ver com a outra? O consumo da saxitoxina poderia de
alguma maneira "turbinar" os efeitos do zika no cérebro do bebê em
formação?
Os
experimentos do grupo de Garcez mostraram que sim: o contato com a substância
neurotóxica dobrou a quantidade de células neurais mortas pelo zika em testes
com organoides, ou "minicérebros" cultivados em laboratório.
"Também
colocamos essa cianobactéria na água consumida por camundongos gestantes, cujos
fetos ficaram mais suscetíveis à SCZ", descreve Garcez.
"Essa
toxina já causa um certo desarranjo nas células-tronco neurais. Mas, junto com
o zika, esse efeito fica muito pior", complementa ela.
Essa
observação acrescentou mais uma evidência que ajuda a entender a discrepância
nos números de microcefalia por região. Mas havia outras dúvidas e descobertas
pela frente.
• Ação dos agrotóxicos
Garcez
lembra que o Centro-Oeste também apresentou números mais elevados de
microcefalia durante o surto de 2015 e 2016.
Um
boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde em setembro de 2022
aponta que essa foi a segunda região mais afetada pela SCZ.
"E
lá a condição socioeconômica é mais elevada que a do Nordeste e não houve
aquela questão da seca", observa a cientista.
"Mas
sabemos que essa é uma região que usa grandes quantidades de agrotóxicos e
herbicidas, por ter muitas terras dedicadas à agricultura", complementa
ela.
Para
avaliar se essas substâncias usadas nas plantações poderiam ter alguma
influência nesses casos, o grupo de Garcez fez um mapa dos agrotóxicos mais
aplicados no país.
"Depois
dessa triagem inicial, encontramos o 2,4-D, um herbicida muito usado no
Centro-Oeste", destaca a biomédica.
Ao
fazer os testes em laboratório, os pesquisadores viram aquele mesmo efeito
sinérgico observado com a desnutrição e as toxinas das cianobactérias: os
camundongos gestantes que foram infectados com zika e tomaram água com 2,4-D
tinham maior risco de gerar descendentes com problemas no desenvolvimento
cerebral.
"E
as quantidades de 2,4-D que foram usadas no estudo estavam dentro do
considerado aceitável", destaca Garcez.
Vale
destacar que esse último estudo ainda não foi publicado em revistas acadêmicas,
algo que deve acontecer nos próximos meses. Essa etapa é fundamental para que o
experimento seja revisado por especialistas independentes.
• Quem é o verdadeiro culpado
Garcez
lembra que, apesar da importância de conhecer todos os cofatores que ampliam a
susceptibilidade à microcefalia, é preciso estabelecer as prioridades e os
focos.
"O
zika é o grande vilão dessa história", lembra ela.
A
pesquisadora também conta que algumas suspeitas não se comprovaram nas
pesquisas.
"Nós
testamos o herbicida glifosato, por exemplo, mas não observamos qualquer
sinergia com o zika", cita ela.
A
biomédica acrescenta que algumas pesquisas feitas por outros grupos sugerem que
infecções prévias por dengue podem alterar o risco de transmissão vertical do
zika (da gestante para o feto em formação), embora esse tema ainda seja
controverso.
"Outro
ponto explorado é a questão do aborto. Sabemos que mulheres de algumas regiões
do país têm maior acesso ao procedimento, mesmo que ele não esteja legalizado
no Brasil nesses casos", acrescenta Garcez.
Ou
seja: pode ser que algumas gestantes que tiveram zika e receberam o diagnóstico
de SCZ no bebê em desenvolvimento tenham optado por não seguir com a gravidez
adiante.
"E
isso pode confundir e mascarar um pouco esse mapa da SCZ", diz ela.
Por
fim, a biomédica destaca que ainda há muito a se descobrir sobre o zika e os
"bolsões de microcefalia".
"Nós
precisamos entender melhor por que algumas mulheres têm mais propensão a
transmitir o zika para o feto. Será que há alguma característica do vírus ou da
genética das pacientes que aumente o risco de SCZ?", questiona a
especialista.
"Também
precisamos conhecer quais são as consequências da síndrome congênita a longo
prazo. Como esses pacientes que tiveram o cérebro afetado pelo zika vão se
desenvolver? Como elas estarão na fase adulta? Eles conseguirão ser
independentes ou estudar?", complementa ela.
Encontrar
essas respostas é importante não apenas para passar a limpo o surto de zika que
ocorreu há quase uma década — mas também para lidar com as futuras crises
relacionadas a esse vírus.
"O
surto pode acontecer de novo, pois o zika continua a circular e o mosquito
Aedes aegypti está sempre por aí. Além disso, as novas gerações não estarão
imunes a essa infecção", conclui ela.
Fonte:
BBC News Brasil
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