quinta-feira, 25 de abril de 2024

Do cacau ao chocolate, na Bahia e no Amapá: histórias de quem cuida da floresta e adoça a "vida"

No extremo norte do Brasil, pra lá de Oiapoque, no Amapá, o agricultor Sebastião Pinheiro Moraes colhe o cacau. Ele tem 75 anos e trabalha na comunidade ribeirinha de Vila Velha do Cassiporé, junto do Rio Cassiporé, "um lugar com oxigênio puro", conta. A colheita de seus cacaueiros nativos de floresta de várzea é feita entre março e junho, e não raro é preciso chegar de barco às árvores e mergulhar para escolher os frutos debaixo d'água. "Este ano o verão foi muito forte, então as flores do cacau custaram a brotar e os frutos demoraram um pouco mais a sair", diz, e fala orgulhoso sobre o chocolate feito com sua matéria-prima: "Fica uma delícia!".

Grande parte de sua colheita é comercializada com a Chocolates Cassiporé. Dorismar da Paixão, proprietário da marca, tem em comum com Sebastião o amor pelas terras de Vila Velha do Cassiporé, as memórias da vida e o sustento da família. Desde criança convivia com a rotina de ir para a roça. Ele lembra: "Adentrando na margem do rio estão as árvores nativas, como andiroba, pracaxi, taperebá, cacau e açaí. A terra fica o tempo todo úmida. Na época das colheitas dos produtos da floresta, minha família produzia artesanalmente o chocolate. Para isso, a gente secava e pilava o cacau, deixava endurecer, ralava e comia o chocolate de manhã, acompanhado com tapioca ou banana frita. A nossa primeira alimentação do dia era mesmo o chocolate".

Antes da adolescência, Dorismar mudou-se para Oiapoque, depois para Macapá, mas nas férias retornava à Vila Velha. "Não me desliguei um tempo sequer da minha comunidade. Já adulto, pensei que o chocolate feito do cacau nativo poderia ser vendido e gerar renda". Dorismar então levou aos produtores rurais as técnicas agrícolas sobre fermentação, secagem e como usar a polpa, e mais recentemente o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) confirmou que a colheita extrativista do cacau teria viabilidade econômica.

"Desde 2018, quando criamos a marca de chocolates Cassiporé, compramos os frutos dos produtores de Vila Velha. A matéria-prima é muito boa, não tem uso de produtos químicos para adubação, há constante cobertura de solo com folhas de diferentes espécies e terreno banhado pela água do rio. A fermentação e a secagem das amêndoas são feitas ainda na comunidade. E na receita do nosso chocolate só vai cacau e açúcar demerara", diz.

De Vila Velha até o município de Oiapoque, onde está a fábrica da Cassiporé, são 3 horas de carro - muito mais simples do que o deslocamento de anos atrás, de 8 horas de barco com trechos encachoeirados e ainda 100 quilômetros de estrada. Dorismar conta orgulhoso da loja de seus chocolates em Oiapoque, das vendas online e dos planos de abrir uma filial em Macapá, a única capital do país na linha do Equador, a quase 600 quilômetros ao sul de Oiapoque.

Essa forma de produção do chocolate segue o método "tree to bar", do inglês "da árvore à barra", em que se acompanha todas as etapas de produção do chocolate desde o pé de cacau, com valorização do trabalho do produtor rural. "Precisamos ter uma produção sustentável do cacau, com responsabilidade social e ambiental, gerando renda e não derrubando árvores", conta Dorismar.

·        Do norte ao nordeste, compartilhando história e ganhos na renda

O cacau também faz parte da história do sul da Bahia - e também é pano de fundo da novela da Globo, Renascer, e do personagem principal, José Inocêncio. O cacau já foi recurso intensamente explorado na região de Ilhéus até os anos de 1990, quando a praga da vassoura-de-bruxa exterminou as plantações e levou os produtores à falência. Nos últimos vinte anos, uma nova onda, dessa vez de marcas de chocolate "especiais" - que considera a valorização do agricultor e das matérias primas de qualidade, além do acompanhamento ao processo de produção - está incentivando os pequenos e médios agricultores a retomarem os cultivos e a usar conhecimentos científicos para investir na terra.

Eleonora Gedeon, a Lola, acompanhou o auge e o declínio do cacau na Bahia, e agora ajuda a reconstruir uma nova fase da produção. Seus pais adquiriram há mais de 80 anos uma fazenda no município de Floresta Azul que chegou a produzir 23 mil arrobas de cacau. Com a crise gerada pela vassoura de bruxa, caiu para 600 arrobas. Nos anos de 1990, ela e o marido assumiram a gestão com foco no cacau de qualidade.

"Não tínhamos como investir grandes recursos para retomar com o volume de antes. Resolvemos escolher as melhores árvores plantadas e as melhores áreas, principalmente nas montanhas, e optar pela qualidade do cacau nativo. A vassoura de bruxa ainda existe, mas para lidar com ela precisamos fazer um manejo cuidadoso, como podas no momento certo para procurar inibir o crescimento dos fungos. Temos muitos desafios, mas sinto que estamos no caminho certo". A técnica usada na fazenda é a cabruca, que mescla espécies variadas no cultivo, entre elas o cacau. "É uma lavoura conservacionista, que mantém a floresta em pé", conta.

Parte da produção de Lola feita nos 130 hectares de cacau são destinados para venda como commodity ou para produtores de chocolate. Um dos compradores é a Dengo, marca criada em 2017 que compra as sementes de 206 pequenos e médios produtores em mais de 30 municípios baianos próximos a Ilhéus. Na Dengo, a forma de produção do chocolate é a "bean to bar", da semente à barra. Andreza Silva, head da rede de fornecedores da empresa, conta que pagam pelo cacau de qualidade cerca de 105% a mais em relação ao preço de mercado, conforme os critérios de sustentabilidade atingidos pelos agricultores. A estocagem do cacau é feita em Ilhéus, a fábrica está em São Paulo, e de lá saem os produtos para 38 lojas, duas delas no exterior.

Lola diz orgulhosa que em sua fazenda tem uma escola para filhos de agricultores, campo de futebol, casas confortáveis para os funcionários e terreno disponível para plantarem. "Noto que hoje em dia existe uma preocupação em oferecer qualidade de vida e direitos a quem trabalha na terra. Os agricultores se dedicam muito, trabalham embaixo de chuva, então eles precisam de condições dignas para exercer suas atividades", conta. Em décadas de vivência no sul da Bahia, ela nota mudanças no uso das terras vizinhas à fazenda e no clima: "A mata não pode ser derrubada, porque todos precisamos dela para fazer chover e manter os bichos vivos. Já se vê os efeitos do desequilíbrio causado pelo desmatamento: fez tanto calor este ano que pela primeira vez precisei usar ar-condicionado".

·        Negócio e paixão de pai para filho

Lucas Arléo também é gestor da fazenda que a família tem em Ilhéus há mais de 50 anos. Das 450 arrobas de cacau produzidas nas duas colheitas do ano (a principal delas entre maio e agosto), parte da produção é vendida para a Dengo, parte é comercializada como commodity para grandes indústrias e o restante é destinado para a marca da família, a Ju Arléo Chocolates. Quando criança, Lucas passava as férias na fazenda. "Eu vivia a rotina do cacau, então esse lugar é minha paixão. Mas naquela época o destino da produção era todo para as indústrias de chocolates e não havia grande preocupação com a qualidade do cacau".

Em 2000, quando o avô deixou de administrar o negócio e as terras ainda sofriam os efeitos da praga da vassoura-de-bruxa, Lucas assumiu a gestão. "Eu me formei em medicina veterinária achando que trabalharia com os bichos, mas hoje tenho total envolvimento com o cacau, seja na gestão, seja como agricultor", diz. Em 2016 percebeu um mercado que remunerava melhor pelo fruto de qualidade e passou a aprimorar a produção.

"Havia potencial de agregar valor e ter maior retorno para reinvestir na fazenda e dar continuidade ao legado da família. Damos atenção para a qualidade, então me envolvo na poda das árvores, na quebra do cacau, em transporte, fermentação e secagem", conta. As mudanças no clima têm sido desafiadoras, alternando excesso de seca e de chuvas, e ambos prejudicam a cultura do cacau.

"Tivemos uma seca terrível em 2015 e ainda não recuperamos a produtividade, que era de cerca de 800 arrobas. Então nos adaptamos e plantamos hoje em uma área pequena, de 5 hectares, com árvores mais resistentes, novas e produtivas. Usamos a técnica da cabruca, que ajuda a manter a Mata Atlântica em pé, mantendo o solo sadio e o sombreamento".

Os quatro produtores de cacau e chocolate - Sebastião e Dorismar no Amapá, Lucas e Lola na Bahia - preparam-se para as colheitas do ano. Mesmo distantes entre si e com diferentes escalas e formas de produção, incluem em suas falas a alegria em cultivar a terra, a esperança de safras caprichadas e de bons preços para continuar a jornada com o cacau.

 

Fonte Um só Planeta

 

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