Os traços de personalidade ignorados que
podem te fazer um motorista mais perigoso
Eu dirijo, talvez,
cinco dias por ano. Mas, sempre que ocupo o assento do motorista, rapidamente
caio em velhos padrões que não sinto como pedestre – a ânsia de dirigir mais
rápido, a irritação com os atrasos.
Eu fico mais
impaciente atrás do volante, simples assim. E é ali que a minha impaciência
fica mais perigosa.
Um estudo com mais de
3.500 motoristas nos Estados Unidos concluiu que fatores relacionados ao
motorista, principalmente a distração, estão relacionados a cerca de 90% dos
acidentes.
Uma combinação de
fatores ambientais, sociais e individuais ajuda a explicar a direção agressiva,
segundo Steven Love, pesquisador de psicologia cognitiva e segurança no
trânsito da Pesquisa Colaborativa sobre Segurança no Trânsito, formada entre a
Comissão de Seguros de Acidentes Automotivos (MAIC) e a Universidade de
Sunshine Coast (UniSC), em Sippy Downs, na Austrália.
Para Love,
comportamentos agressivos, como ultrapassar os limites de velocidade e
desrespeitar sinais vermelhos, são influenciados por uma combinação entre o
ambiente de tráfego, a aparente norma cultural de dirigir em alta velocidade e
o quanto o motorista consegue administrar suas próprias frustrações.
Este último fator é
uma importante porta de entrada para a psicologia.
"Muitas questões
referentes à segurança no trânsito, incluindo comportamentos motivados pelos
efeitos do álcool, são decorrentes de problemas psicológicos intrínsecos",
explica Love. "Os indivíduos praticam comportamentos de risco, antissociais
e levados pela emoção porque têm dificuldades de controlar seus pensamentos e
emoções."
Isso se aplica
particularmente aos motoristas com traços agressivos (tendência da
personalidade à agressão). Esses motoristas têm baixa percepção de risco e são
menos dissuadidos quando escapam por pouco de sofrer acidentes ou por leves
punições legais.
Uma pesquisa realizada
na China também indicou relação entre a exclusão social e a direção agressiva.
Ou seja, os motoristas levam sua raiva consigo para a estrada.
• A armadilha da autopercepção
Não são apenas os
motoristas com traços agressivos que se acham melhores motoristas do que são na
realidade.
Os motoristas, de
forma geral, são conhecidos por avaliarem mal suas habilidades. É o caso de
motoristas com dificuldades visuais na Suécia e homens motoristas inexperientes
na Finlândia.
Em estudos realizados
nos Estados Unidos, a maior parte das pessoas pesquisadas acredita que dirige
melhor do que a média dos motoristas.
Essas autopercepções
infladas são perigosas, segundo a experiência da especialista em legislação
criminal Sally Kyd, da Universidade de Leicester, no Reino Unido.
"Se os motoristas
têm a tendência de se considerarem peritos na direção, com habilidades que
estão acima do motorista médio", explica Kyd, eles têm a propensão de
dirigir perigosamente, por não acreditarem que as leis de trânsito se apliquem
a eles.
Uma razão para esta
diferença entre o comportamento real ao volante e a autoavaliação do motorista
são os conceitos discrepantes sobre o que constitui direção segura ou
habilidosa.
"Nossos recentes
estudos indicaram que uma causa importante das interações negativas no trânsito
é o conflito entre os diversos estilos de direção", explica Love.
Os motoristas
agressivos acusam os motoristas lentos, enquanto os pacientes apontam os
imprudentes de serem a causa do problema. E todos ficam frustrados.
"Isso realmente
destaca a disparidade entre a percepção pelo motorista de estilos de direção
diferentes do seu", afirma Love.
"Por exemplo, um
motorista superconfiante que mantém comportamentos antissociais poderá
acreditar que sua velocidade é completamente segura, considerando seu nível de
habilidade."
A defensora do uso da
bicicleta Ana Carboni, de Brasília, observa esse comportamento com frequência.
"Acho que as pessoas não se percebem como parte da equação."
Uma ideia comum,
segundo ela, é esta: "'Sou um bom motorista, posso dirigir a qualquer
velocidade e tudo bem'. Mas sabemos que isso não é verdade."
Para Carboni, parte do
problema é "a dificuldade de se relacionar a algo de ruim que venha a
acontecer". O motorista agressivo pode usar mecanismos de defesa para se
proteger desse estresse.
• Como combater a direção perigosa
É preciso destacar que
a imprudência na direção é facilitada pela infraestrutura e pelas políticas que
subvalorizam a segurança no trânsito.
"O que precisa
acontecer para que as pessoas realmente andem mais devagar é, antes de tudo,
melhorar os projetos viários para reduzir a velocidade", afirma Charlie
Klauer, pesquisadora do comportamento no trânsito da Virgínia Tech (o Instituto
Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia) em Blacksburg, nos Estados
Unidos.
A expressão "a
velocidade mata" é uma verdade inegável. Cada 1% de aumento da velocidade
média aumenta o risco de acidentes fatais em 4%, segundo a Organização Mundial
da Saúde (OMS).
Por isso, alterações
simples e de baixo custo nos projetos viários, como estreitar as ruas e
instalar lombadas, forçam os motoristas a reduzir a velocidade, salvando vidas.
Por outro lado, embora
os governantes e projetistas desempenhem o papel mais importante na proteção de
vidas humanas no trânsito, o comportamento individual dos motoristas também é
importante.
Subestimar os riscos
na direção traz reflexos para a criminologia. Os motoristas que desrespeitam as
boas normas de trânsito com autopercepções infladas "se consideram
autorizados a criar riscos na direção", segundo Kyd.
Por isso, não importa
a gravidade da pena por causar um acidente fatal. Para Kyd, essa pena
provavelmente não irá deter os maus motoristas que acham que nunca irão
realmente causar acidentes. E esta expectativa pode ser reforçada toda vez que
um motorista dirigir sem ocasionar prejuízos.
O psicólogo ambiental
Ian Walker, da Universidade de Swansea, no Reino Unido, faz referência à teoria
da aprendizagem, criada para compreender o processo de aprendizado humano.
"Um dos elementos
básicos da teoria da aprendizagem é que, se uma ação não tiver consequências
imediatas, nosso aprendizado é muito ruim", explica ele.
Walker costuma dizer
que dirigir é perigoso, mas não o suficiente. Em outras palavras, pessoas que
dirigem embriagadas ou enviando mensagens de texto provavelmente não enfrentam
problemas com frequência. Isso reforça sua crença de que aquele comportamento é
aceitável.
"Ou seja, as
pessoas não recebem o feedback de que precisam", segundo o psicólogo.
"A solução, naturalmente, é que as pessoas deveriam ouvir os especialistas
que examinam este tema em termos de sociedade e não confiar apenas na sua
própria experiência, que é muito limitada."
Mas Walker reconhece
que isso pode não ser realista, "pois não somos muito bons para
compreender riscos".
Então, que tipo de
restrição funciona para os motoristas agressivos mais resistentes? Bem, segundo
Sally Kyd, "para reprimi-los, é preciso enfrentar o seu comportamento
intrínseco".
Ou seja, para ela, o
motorista precisa pensar que pode ser pego e disciplinado a qualquer momento em
que praticar direção perigosa — não apenas se sofrer um acidente, o que eles
acham que nunca irá acontecer.
Kyd acredita que
sentenças mais severas por direção perigosa devem ser combinadas com maior
aplicação das leis, para aumentar a probabilidade de atingir motoristas
perigosos antes que eles causem tragédias.
De fato, o aumento da
aplicação das leis contribuiu para a redução das mortes no trânsito em algumas
partes do Brasil, nos Estados Unidos e em outros países onde o carro é
utilizado em larga escala.
Uma razão para a
leniência em relação à direção perigosa nos sistemas legais de muitos países é
a normalização de práticas ilegais, como o excesso de velocidade.
Muitos políticos
hesitam em questionar essas práticas, devido à influência dos motoristas. Na
Itália, por exemplo, os acidentes de carros aumentam nos anos de eleições
municipais, quando a aplicação de multas é reduzida.
Parte do problema é
que as autoridades policiais e judiciárias provavelmente também dirigem
automóveis. Por isso, elas podem se identificar mais facilmente com os
motoristas do que com os usuários mais vulneráveis do sistema de trânsito.
Mas a aplicação mais
rigorosa da legislação não é uma bala de prata, mesmo se for implementada de
forma não discriminatória e respeitando a privacidade das pessoas.
"Os recursos de
policiamento são limitados e o comportamento de direção agressiva é comum e
difícil de ser detectado", explica Love.
"O aumento das
multas pode dissuadir alguns contraventores, mas as pesquisas indicam que as
sanções costumam não inibir os infratores frequentes, provavelmente devido a
problemas psicológicos intrínsecos e persistentes, que influenciam o seu
comportamento."
Love acredita que pode
ser útil incorporar este tipo de análise psicológica – para controlar as
emoções, por exemplo – em colaboração com os sistemas de transporte, saúde
pública e educacional.
• Como lidar com a 'motonormatividade'
Para Ian Walker, a
percepção psicológica da segurança no trânsito deve se estender não apenas aos
indivíduos, mas a toda a sociedade, com seus perigosos preconceitos no
trânsito.
Nas sociedades em que
os carros são mais valorizados, algo peculiar acontece quando as pessoas pensam
no trânsito, segundo ele.
Walker menciona as
campanhas de segurança orientando as crianças a se vestirem com roupas
brilhantes, para serem vistas nas ruas. Na sua opinião, essas campanhas podem
ser interpretadas como ensinando às crianças que, se elas forem atropeladas, a
culpa é delas por não estarem vestidas de forma adequada para os motoristas.
No contexto do
trânsito, é fácil tomar ações que parecem culpar a vítima, segundo Walker, sem
perceber o que estamos fazendo. E, ainda assim, "muitas vezes, as mesmas
pessoas reconheceriam que estariam culpando a vítima se isso ocorresse em
outros contextos", explica ele.
Na análise de Walker,
este é um exemplo da falácia conhecida como "súplica especial", um
viés inconsciente que faz com que certos casos sejam tratados como exceções das
normas sociais.
Andar de carro tem um
status especial em muitas sociedades, apesar do seu custo ambiental e dos
prejuízos da poluição à saúde. Walker e seus colegas chamam esse status de
"motonormatividade".
O interessante é que
até pessoas que não dirigem demonstram esse viés em favor dos motoristas.
Em um estudo com mais
de 2.150 adultos no Reino Unido, Walker e seus colegas concluíram que as
pessoas são menos propensas a concordar com críticas a atividades como fumar do
que dirigir, embora ambas contribuam para a poluição do ar nas cidades.
Walker afirma que as
pessoas que não dirigem também internalizam essa mensagem cultural arraigada
entre os órgãos de infraestrutura, os meios de comunicação e o setor jurídico,
em favor da primazia dos carros.
"A mensagem para
alguém que não esteja em um carro é muito clara no espaço público",
segundo ele. "É você que deve esperar. Você é quem será tratado com menos
importância."
Estigmatizar os que
não são motoristas é algo comum. Os ciclistas de Botsuana, por exemplo,
conhecem muito bem essa realidade.
No Brasil, Ana Carboni
se sente julgada por ter uma bicicleta e não um carro. Além da transformação
política e de infraestrutura necessária para melhorar a segurança no trânsito,
"essa mudança cultural vai levar muito tempo", segundo ela.
Na visão de Walker,
existem dificuldades para que essa mudança cultural aconteça — em parte,
porque, da mesma forma que motoristas agressivos e pacientes têm definições
diferentes sobre o que é dirigir bem, também os motoristas irados e os
defensores da segurança no trânsito mantêm opiniões distintas sobre mobilidade.
Ele acredita que a
motonormatividade faz com que muitas pessoas interpretem o incentivo à redução
dos automóveis como limitação da sua liberdade de movimento.
"É claro que
qualquer pessoa no ativo mundo das viagens, quando diz 'acho que você deve
dirigir um pouco menos', ela quer dizer 'acho que você deve ter mobilidade por
outros meios'", explica ele. "Mas não é isso o que as pessoas ouvem."
Walker acredita que o
primeiro passo é reconhecer o problema. "Enquanto não reconhecermos,
coletiva e individualmente, que a nossa relação com os carros traz
consequências, não sei o quanto poderemos progredir."
Mas Charlie Klauer
acredita que este progresso é possível, mesmo que seja gradual. Os cintos de
segurança e airbags, por exemplo, começaram sendo motivo de discórdia, mas hoje
são onipresentes em muitos países.
Considerando que 1,2
milhão de pessoas morrem em acidentes de trânsito todos os anos, outras
mudanças para melhorar a segurança no trânsito, baseadas em diferentes ramos da
psicologia, seriam muito bem-vindas.
Fonte: BBC Future
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