sábado, 27 de janeiro de 2024

Por que olhamos tanto para o Ocidente? Um retrato atual sobre a política e a cultura no Brasil

Quem acompanha os jornais e o noticiário no Brasil, já deve ter percebido que, para além do Ocidente, fala-se muito pouco de outras regiões do mundo. Mas por que será que isso ocorre?

A razão está no fato de o Brasil ser um país profundamente ocidento-cêntrico, ou seja, um país que culturalmente se acostumou a olhar quase que exclusivamente para os desenvolvimentos na Europa e em especial nos Estados Unidos. Concorrentemente, a influência cultural ocidental – e sobretudo a americana – é inegavelmente muito grande no país. Por certo, tal situação se deve ao papel predominante na economia global exercido pelo Ocidente a partir de meados do século XIX, assim como pela herança luso-católica do Brasil.

Quando o Brasil, por sua vez, se tornou independente em 1822, o Ocidente já havia conseguido se projetar bastante em termos globais, o que veio a ser confirmado pouco mais de um século depois, quando países como França, Grã-Bretanha e Estados Unidos foram alguns dos principais responsáveis pela articulação da Ordem Mundial do pós-guerra. Apesar dessa ordem hoje estar em declínio com a ascensão da multipolaridade nas relações internacionais, o Ocidente ainda é muito influente em termos culturais e econômicos.

Entretanto, esse domínio ocidental testemunhado ao longo dos últimos dois séculos trata-se, na verdade, de uma aberração histórica. Antes, o centro geopolítico do globo encontrava-se na Ásia, tanto por razões demográficas quanto pelos recursos de poder contidos no continente. O mundo tradicionalmente sempre foi Ásia-cêntrico até o surgimento da Revolução Industrial, que permitiu ao Ocidente deter um papel determinante na política econômica internacional. Contudo, agora vemos o centro de gravidade das relações internacionais voltando a seu lugar de origem, a Ásia, por conta da ascensão chinesa, do retorno da Rússia como grande potência e de uma Índia cada vez mais assertiva nos assuntos globais. Este trata-se de um processo normal e irreversível.

Nos últimos dois séculos, os países industrializados do Ocidente acabaram enriquecendo de forma bastante rápida por meio da exploração colonial e da expansão de seus impérios pelo planeta, apesar de deterem uma parcela pequena da população global. A partir desse enriquecimento, países ocidentais como França (séculos XVIII e XIX), Grã-Bretanha (século XIX) e Estados Unidos (século XX) conseguiram usar seu poder econômico e militar para não só projetar-se politicamente, como também para projetar sua língua e culturas ao redor do globo, o que não deixou de afetar o Brasil. Para se ter uma ideia, para ser um diplomata no Itamaraty uma pessoa precisa deter o domínio dos idiomas inglês e francês, apesar de a França nem de longe representar a potência que um dia fora. Afinal, já faz tempo que Napoleão Bonaparte perdeu a batalha de Waterloo.

Seja como for, mesmo para o Brasil não há como escapar das consequências de um mundo que vem se tornando novamente Ásia-cêntrico. Hoje nosso principal parceiro comercial é a China, além do fato de fazermos partes de iniciativas cujo núcleo principal encontra-se justamente na Ásia, como é o caso do BRICS. Atualmente, a China afeta muito mais a economia brasileira do que os Estados Unidos, apesar de os americanos ainda possuírem quase monopólio cultural sobre o Brasil, devido ao ensino da língua inglesa e, não menos importante, por conta de seus produtos audiovisuais (músicas, filmes, séries, redes sociais etc.). Por outro lado, temos a Europa, que ainda domina o mercado global de turismo, com muitos brasileiros sonhando em passear ou mesmo viver nos países do Velho Mundo. Ainda assim, não é surpresa que os Estados Unidos sejam o país que mais abriga brasileiros no exterior, seguido por outros destinos ocidentais como Portugal, Irlanda, Canadá, Austrália, Espanha, Alemanha, França, entre outros.

Voltemos então aos aspectos político-culturais que conectam o Brasil ao Ocidente e em especial aos Estados Unidos. Inegavelmente, existe um processo de transmissão quase que automática das agendas sociais e políticas estadunidenses para o cenário nacional brasileiro (e isso vale tanto para a esquerda quanto para a direita). Para onde quer que se olhe, ou mesmo de onde se olhe, o Brasil é fortemente – e passivamente – impactado pelos desdobramentos culturais e políticos dos Estados Unidos.

A esquerda brasileira, em vários aspectos, é influenciada diretamente pela confusa agenda Woke norte-americana e pelas políticas identitárias patrocinadas pelo Partido Democrata; enquanto isso, a direita brasileira importa elementos do trumpismo (vide a invasão ao Capitólio em 2021 e a invasão à Brasília em 2023) assim como a retórica republicana extremadamente anti-China, anti-islâmica e de viés econômico liberal e belicista.

Em suma, tudo isso serve para dizer que, se observarmos de perto, chegamos à conclusão de que as forças políticas no Brasil (seja à esquerda ou à direita do espectro ideológico) possuem muito pouca autonomia intelectual, sendo facilmente permeada pelas tendências e discussões surgidas nos Estados Unidos. Seja a América criticada por suas políticas imperialistas ao redor do mundo ou por representar – para alguns – um modelo de "liberdade" e de democracia, é de lá que o Brasil importa quase todas as suas pautas políticas. Diante desse contexto, e com uma mídia que também recebe suas principais linhas editorais a partir do Ocidente, temos uma situação de mais alto risco para a soberania cultural do Brasil.

Já foram iniciadas as primárias do Partido Republicano nos Estados Unidos, por exemplo, processo esse que se estenderá até a metade do ano. Em novembro, um novo presidente americano será eleito. Já se espera, por exemplo, que essa seja uma das pautas prioritárias das reportagens no Brasil pelos próximos meses. Mas será mesmo que precisamos observar absolutamente cada passo desse processo? Será que nos impacta de fato cada processo, cada discurso, cada discussão dos pré-candidatos de nosso vizinho do Norte?

A questão aqui não se trata de abandonar de vez o noticiário ocidental ou as polêmicas que ele suscita. Mas sim de equilibrar o nosso olhar para o mundo, de enxergar também outras regiões e civilizações de nosso rico planeta. O Brasil é um país plural. Pena que nossa atenção não seja.

 

Ø  Guerra às drogas 'modelo USA' aperfeiçoou e deslocou narcotráfico para outros territórios

 

O estopim da crise de segurança pública no Equador ligou o alerta na região a respeito da fracassada "guerra às drogas", doutrina oficial de combate ao narcotráfico dos Estados Unidos que desde o final dos anos 60 impera na América Latina, apesar do aumento da violência e do poder do crime organizado.

De um dos países mais seguros da região há quatro anos, o Equador teve mais de 7,5 mil homicídios em 2023, segundo autoridades locais, o ano mais violento da sua história, com uma das maiores taxas de homicídio da América Latina.

Pese as singularidades geográficas, econômicas, políticas e sociais desse país, semelhanças em relação à violência crescente perpetrada por traficantes de drogas são identificadas em todas as nações do Sul Global.

Estudiosos de segurança pública e América Latina ouvidos pela Sputnik Brasil são uníssonos ao afirmar que a estratégia exclusivamente focada na repressão fortaleceu o crime organizado:

"Essa lógica tem se mantido intacta, e o que provoca não é o fim do narcotráfico, mas sua depuração, seu aperfeiçoamento, por um lado, e, em segundo lugar, o seu deslocamento", explica o professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thiago Rodrigues.

Nesse contexto, vigente há cerca de 50 anos, os Estados Unidos se apresentam como o país consumidor, "na posição de vítima de supostos violadores internacionais", comenta.

Especialista em estudos estratégicos de defesa e segurança, Rodrigues destaca que o aumento da repressão tende a eliminar pequenos grupos ou forçar a que sejam absorvidos por grupos maiores, que "conseguem se defender do Estado, com maior penetração econômica e maior penetração e influência política", ocorrendo o chamado efeito bexiga ou balão, "quando você aperta um lado do balão ou da bexiga e infla o outro lado".

Mestre em relações internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), a pesquisadora Beatriz dos Santos Abreu argumenta que o crime organizado e o narcotráfico continuam se fortalecendo, revelando as falhas de uma política de guerra às drogas que "não tem a visão de resolver um problema social em sua estrutura".

Especialista em conflitividade e segurança da América Latina, ela acrescenta que esse cenário tem incrementado o monitoramento e a militarização dos EUA dentro das suas relações com países da América Latina nos últimos anos.

"Um exemplo fatídico de tal realidade é a participação do Departamento de Defesa dos EUA e dos militares dentro da estratégia de segurança que abarca a região", exemplifica a pesquisadora.

O discurso sobre combate ao narcotráfico legitima, segundo ela, uma série de intervenções políticas, diplomáticas, bélicas e econômicas dos EUA na América Latina, assim como a guerra ao terrorismo para alguns países da região e para o Oriente Médio.

"As intervenções dos EUA na América Latina que são legitimadas em discursos desse tipo, em muitos dos casos, possuem interesses voltados ao controle e influência sobre territórios geoestratégicos", argumenta.

Uma análise histórica dos últimos 20 anos ajuda a compreender ainda a divisão internacional do trabalho dentro do narcotráfico, segundo a especialista:

"Os países do Sul Global são os que mais produzem para os países do Norte manterem seu padrão de consumo de ilícitos. Essa guerra também incentiva o mercado de armas e equipamentos bélicos – a guerra é lucrativa uma vez que incentiva essa indústria e esse mercado", salienta.

Os estudiosos mencionam que, nas últimas duas décadas, houve uma ênfase da guerra às drogas na Colômbia, no México, na América Central e no Caribe, como a Iniciativa Andina, o Plano Colômbia, o Plano Patriota, Iniciativa Mérida e Mérida II.

A pressão sobre essas regiões, em que o narcotráfico é historicamente mais ativo, fez com que as rotas já estabelecidas de cocaína, principalmente em direção ao mercado estadunidense e da Europa, ficassem muito congestionadas:

"Quando uma região ou um país de grande atividade narcotraficante passa a ter suas atividades dificultadas pela intensidade da repressão, essas atividades econômicas tendem a mudar de país ou de região", explica Rodrigues.

No mercado ilegal, que envolve a competição de vários atores, o desequilíbrio acarreta geralmente disputas violentas entre os grupos pelo controle de territórios e de rotas, destaca o especialista.

Nesse contexto, os analistas acrescentam que o aprofundamento da desigualdade social e as crises econômicas no continente, nos últimos anos, foram elementos cruciais para detonar o barril de pólvora.

·        Superencarceramento e crime organizado: faces da mesma moeda

Os pesquisadores ressaltam que em alguns países, como Brasil e Equador, grupos criminosos se estruturam no sistema penitenciário, lugar de treinamento, de operação e quartel general do crime organizado:

A superlotação dos presídios, diz Abreu, "dá condições, dentro das penitenciárias, à organização de facções locais", e estrutura a uma lógica de crime organizado transnacional, no caso do Equador.

Na prática, agrega a pesquisadora, as práticas repressivas por parte dos policiais só aumentam em territórios marginalizados e contra a "população pobre e racializada".

"Na América Latina, por meio da influência dos EUA, o que se observa é um processo de enrijecimento das políticas para os sistemas penais no continente, que tem relação direta com o aumento da população carcerária e prisão em massa de consumidores, e não de traficantes alinhados ao crime organizado transnacional", destaca ela.

Rodrigues segue o mesmo raciocínio da colega e afirma que além de prenderem muito, os sistemas de justiça latino-americanos prendem, em sua maioria, pessoas com baixa periculosidade, "peixes pequenos", enquanto os "peixes grandes", as grandes lideranças, sequer figuram no noticiário:

"Os grandes empresários, lavadores de dinheiro, os operadores do sistema financeiro internacional, essas pessoas sequer aparecem. São geralmente brancas, vivem em bairros de luxo e operam o grande sistema financeiro internacional, que não é operado, obviamente, por um rapaz pobre, semianalfabeto, de favela", expõe o professor.

·        Ações conjuntas e mudança radical na metodologia e na ideologia

Reverter esse quadro não é tarefa fácil, afirmam os entrevistados, mas é possível no longo prazo, se houver uma mudança radical na metodologia e na ideologia das políticas de segurança pública de uma maneira global.

"Prender menos, dar alternativas de profissionalização para esses jovens que são pegos em confronto com a lei, em vez de encarcerá-los em penitenciárias que vão ser verdadeiras escolas do crime", pondera o catedrático da UFF.

Para Abreu, não há solução possível sem que as políticas de enfrentamento ao crime organizado englobem o combate a problemas sociais estruturantes:

"Países latino-americanos a médio e longo prazo poderiam rever tal quadro a partir de maiores investimentos em educação, pela redução de desigualdades sociais, e por maiores ofertas de emprego para a população jovem", defende ela.

Outro ponto defendido pela pesquisadora é que as políticas internacionais de combate ao tráfico de drogas atinjam também os países consumidores e do Norte, na tentativa de frear padrões de consumo, bem como políticas globais para impedir a estruturação de paraísos fiscais.

Ela aborda ainda a necessidade de países da América Latina agirem de forma conjunta, integrada e autônoma contra o crime organizado em ações transnacionais, seja nas rotas terrestres, marítimas ou aéreas.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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