domingo, 28 de janeiro de 2024

O que é o FirstMile, software que teria sido usado pela Abin para monitorar jornalistas e ministros do STF

O possível uso de um software de espionagem por agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está sendo investigado pela Polícia Federal (PF).

Segundo investigação, a ferramenta pode ter sido utilizada de maneira ilegal por agentes da Abin durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para rastrear e monitorar dados de geolocalização de celulares.

Nesta quinta-feira (25/01), agentes da Polícia Federal realizam buscas em endereços ligados a doze suspeitos, entre eles o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor Abin no governo anterior.

A suspeita é que uma organização criminosa teria funcionado dentro da agência para monitorar adversários políticos da família Bolsonaro e proteger filhos do então presidente de investigações da PF.

A PF realizou buscas em Brasília, Juiz de Fora (MG), São João Del Rei (MG) e Rio de Janeiro. Um dos locais vasculhados foi o gabinete de Ramagem na Câmara dos Deputados.

A operação foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Por outro lado, ele não atendeu o pedido da PF para afastar Ramagem do seu mandato parlamentar.

O software FirstMile, produzido pela empresa israelense Cognyte, está no centro da operação Última Milha, da PF. Em outubro, a operação havia prendido dois oficiais e afastou cinco dirigentes da Abin.

Segundo a PF, provas levantadas naquela ocasião levaram à realização da operação Vigilância Aproximada nesta quinta-feira.

De acordo com as investigações iniciais, os servidores usaram o FirstMile para monitorar membros do Supremo Tribunal Federal (STF), jornalistas, advogados e políticos durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O software foi adquirido sem licitação ainda no governo Michel Temer (MDB) durante a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, mas teria sido utilizado mais intensamente no governo Bolsonaro, de acordo com a apuração da PF.

Esse monitoramento seria ilegal, diz a polícia, pois os agentes investigados precisariam de autorização judicial para realizá-lo.

Os investigados podem responder por vários crimes, como invasão de dispositivo informático alheio, organização criminosa e interceptação de comunicações sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Em nota publicada em seu site em outubro, a Abin afirmou que a corregedoria da agência instaurou uma sindicância investigativa sobre o assunto e que as informações apuradas estão sendo repassadas à Polícia Federal e ao STF.

A agência informou ainda que o software FirstMile deixou de ser utilizado em maio de 2021.

"A atual gestão e os servidores da Abin reafirmam o compromisso com a legalidade e o Estado Democrático de Direito", diz.

Na época, o Exército, que também adquiriu o software em 2018, afirmou à BBC News Brasil por meio de uma nota que não comentaria o caso.

Após a nova operação da PF, a BBC News Brasil procurou o deputado Ramagem por meio de seu gabinete, mas ainda não havia manifestação do parlamentar sobre a ação da PF.

A reportagem também tentou obter um posicionamento de Jair Bolsonaro por meio de Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação do governo anterior, mas não obteve retorno.

Já senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, se manifestou, por meio de sua assessoria, negando qualquer uso da Abin para protegê-lo.

A decisão de Moraes cita suposta atuação da Abin com a produção de relatórios de inteligência para ajudar sua defesa na investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de salário de funcionários) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de Janeiro.

“É mentira que a Abin tenha me favorecido de alguma forma, em qualquer situação, durante meus 42 anos de vida. Isso é um completo absurdo e mais uma tentativa de criar falsas narrativas para atacar o sobrenome Bolsonaro”, disse o senador em nota.

“Minha vida foi virada do avesso por quase cinco anos e nada foi encontrado, sendo a investigação arquivada pelos tribunais superiores com teses tão somente jurídicas, conforme amplamente divulgado pela grande mídia”, disse ainda.

·        Como a ferramenta funciona?

O software FirstMile teria capacidade de monitorar a geolocalização de até 10 mil celulares por um período de um ano. Pelo que se sabe, a ferramenta não tem acesso a mensagens ou a ligações dos alvos rastreados.

Segundo Rafael Zanatta, diretor da ONG Data Privacy Brasil, o software "invade" e "engana" a rede de empresas de telefonia para conseguir rastrear o alvo do monitoramento.

"Todo celular emite informações para o que chamamos de uma 'estação rádio-base', que seriam as antenas de celular espalhadas pelo país, em um protocolo conhecido como SS7", explica Zanatta.

"O que se descobriu é que esse software consegue bagunçar esse protocolo, enganando a estação e perguntando a ela: 'qual era a localização do número tal nesse momento exato?'", diz.

Por lei, essas informações são sigilosas, ou seja, uma operadora de celular só pode fornecer a geolocalização de seus clientes mediante autorização da Justiça. É diferente, por exemplo, de quando o próprio usuário permite que aplicativos, como o Google ou o Uber, tenham acesso a esses dados.

"O que o software FirstMile faz é atacar o sistema das operadoras, ou seja, isso deveria ser uma preocupação delas também. Esses dados são depois armazenados em nuvem e o histórico é analisado e vendido ao cliente", diz Zanatta.

"Essas informações podem ser usadas de diversas formas, como em investigações policiais contra o crime organizado, mas também podem ser um atrativo para monitorar ilegalmente opositores políticos e a própria população, atacando o direito a liberdades cívicas, como o de manifestação", afirma.

De acordo com um relatório da Anistia Internacional de 2021, serviços oferecidos pela Cognyte, a empresa israelense que desenvolveu o FirstMile, "foram utilizados pelo governo do Sudão para instrumentalizar perseguição e violação de direitos de opositores.”

Em março, após o caso Abin ser revelado pelo jornal O Globo, a ONG Data Privacy Brasil enviou um ofício ao Ministério Público Federal pedindo que o uso do FirstMile fosse investigado pelo órgão.

Segundo a ONG, "a utilização do FirstMile pela Abin apresenta um grave problema de violação do direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais".

 

Ø  Quem é Alexandre Ramagem, deputado bolsonarista alvo da PF por suposto uso da Abin para proteger aliados e vigiar opositores

 

O deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo de Jair Bolsonaro, foi alvo de uma operação da Polícia Federal (PF) nesta quinta-feira (25/01) que investiga possível atuação ilegal do órgão durante seu comando.

A suspeita é que uma organização criminosa teria funcionado dentro da Abin para monitorar adversários da família Bolsonaro e proteger filhos do então presidente de investigações.

Ramagem é forte aliado da família Bolsonaro, sendo cotado para disputar neste ano a eleição para prefeito do Rio de Janeiro, berço político do ex-presidente.

Ele se tornou próximo do clã político na campanha de 2018, quando foi destacado pela PF para coordenar a segurança do então candidato após ele ter sido alvo de uma facada em setembro daquele ano e quase morrer.

Em 2020, quando o hoje senador Sergio Moro (União-PR) deixou o Ministério da Justiça acusando Bolsonaro de tentar interferir na PF, o ex-presidente quis colocar Ramagem como diretor do órgão, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a nomeação devido à proximidade pessoal de ambos.

Agora, Ramagem é suspeito de ter usado a Abin em favor de interesses da família Bolsonaro.

A BBC News Brasil procurou o deputado Ramagem por meio de seu gabinete, mas ainda não havia manifestação do parlamentar sobre a ação da PF.

Segundo decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes autorizando a operação desta quinta-feira, "os policiais federais destacados, sob a direção de ALEXANDRE RAMAGEM, utilizaram das ferramentas e serviços da ABIN para serviços e contrainteligência ilícitos e para interferir em diversas investigações da Polícia Federal, como por exemplo, para tentar fazer prova a favor de RENAN BOLSONARO, filho do então Presidente JAIR BOLSONARO".

Em inquérito já arquivado, Renan era suspeito de cometer tráfico de influência ao ter, supostamente, intermediado reuniões entre empresários e integrantes do governo Bolsonaro. Foi nesse caso que a Abin teria atuado em seu favor.

A decisão cita também suposta atuação da Abin com a produção de relatórios de inteligência para ajudar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, na investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de salário de funcionários) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de Janeiro.

O caso depois foi paralisado por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que anularam provas obtidas.

A BBC News Brasil tentou obter um posicionamento de Jair Bolsonaro e de seu filho Renan por meio de Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação do governo anterior, mas não obteve retorno.

Já Flávio Bolsonaro se manifestou, por meio de sua assessoria, negando qualquer uso da Abin para protegê-lo.

“É mentira que a Abin tenha me favorecido de alguma forma, em qualquer situação, durante meus 42 anos de vida. Isso é um completo absurdo e mais uma tentativa de criar falsas narrativas para atacar o sobrenome Bolsonaro”, disse o senador em nota.

“Minha vida foi virada do avesso por quase cinco anos e nada foi encontrado, sendo a investigação arquivada pelos tribunais superiores com teses tão somente jurídicas, conforme amplamente divulgado pela grande mídia”, disse ainda.

Ainda segundo a decisão de Moraes, a investigação apura se o sistema de inteligência First Mile teria sido usado pela Abin para monitorar dispositivos móveis de adversários políticos de Bolsonaro, sem prévia autorização judicial e sem a necessidade de interferência ou ciência das operadoras de telefonia.

"A Polícia Federal indica, também, que os investigados, sob as ordens de ALEXANDRE RAMAGEM, utilizaram a ferramenta FIRST MILE para monitoramento do então Presidente da Câmara dos Deputados, RODRIGO MAIA, da então deputada federal JOICE HASSSELMAN e de ROBERTO BERTHOLDO", escreveu Moraes.

Bertholdo é apontado como advogado de Joice Hasselmann e do então vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), à época tidos como adversários políticos do governo Bolsonaro.

Já o comunicado da PF diz que a operação Vigilância Aproximada foi deflagrada a partir de provas obtidas na operação Última Milha, realizada em outubro.

Essas provas indicariam que “o grupo criminoso criou uma estrutura paralela na Abin e utilizou ferramentas e serviços daquela agência de inteligência do Estado para ações ilícitas, produzindo informações para uso político e midiático, para a obtenção de proveitos pessoais e até mesmo para interferir em investigações da Polícia Federal”.

Além de Ramagem, a operação atingiu mais onze pessoas, incluindo sete policias federais que foram afastados de suas funções.

A Polícia Federal cumpriu 21 mandados de busca e apreensão, a maioria em Brasília, mas também no Rio de Janeiro e nas cidades mineiras da Juiz de Fora e São João Del Rei.

O gabinete parlamentar de Ramagem foi um dos alvos. Ninguém foi preso.

Moraes, porém, negou pedido da PF para afastar o investigado do seu mandato de deputado.

"Essa hipótese poderá ser reanalisada se o investigado voltar a utilizar suas funções para interferir na produção probatória ou no curso das investigações", ressaltou na decisão.

Outros parlamentares bolsonaristas saíram em defesa de Ramagem.

"Essas operações contra deputados da oposição evidenciam uma clara perseguição a esses parlamentares e esse espectro político. Precisamos nos manter firmes perante esse período de turbulência", afirmou o deputado federal Sargento Gonçalves (PL-RN) em declaração enviada à imprensa.

·        A trajetória de Ramagem até a Abin

Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 2000, Ramagem se tornou delegado da Polícia Federal em 2005.

Na PF, foi responsável pelas divisões de Administração de Recursos Humanos (2013 e 2014) e de Estudos, Legislações e Pareceres (2016 e 2017).

Também fez parte da equipe de investigação da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro em 2017.

Com a posse de Bolsonaro, Ramagem foi chamado para o governo, tendo primeiro atuado como assessor especial da Secretaria de Governo, quando a pasta era comandada pelo general Carlos Alberto Santos Cruz.

Em junho de 2019, deixou essa função para assumir a Abin.

Em abril de 2020, Bolsonaro tentou nomear Ramagem como diretor da Polícia Federal, mas a medida foi barrada pelo STF, em decisão de Moraes.

O ministro do STF acatou pedido do PDT, que argumentou que a amizade entre Bolsonaro e Ramagem comprometiam “os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, necessários para nomear o diretor da PF.

Na época, circulou uma foto de Ramagem ao lado dos filhos do presidente em uma festa de Ano Novo, na virada de 2018 para 2019.

Na ocasião, Bolsonaro minimizou a questão ao responder um comentário numa rede social: "E daí? Antes de [ele] conhecer meus filhos, eu conheci o Ramagem. Por isso deve ser vetado? Devo escolher alguém amigo de quem?".

A proximidade do então delegado com a família causou especial controvérsia devido ao contexto em que ocorreu a troca de comando da Polícia Federal, logo após o então ministro da Justiça Sergio Moro se demitir afirmando que Bolsonaro estava tentando interferir na PF.

Na ocasião, o então presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva, afirmou que Ramagem era tido como "um profissional sério e competente" na categoria.

"Não há desabono à carreira dele", afirmou ainda em abril de 2020.

"Mas há um incômodo dos delegados com essa saída traumática de Moro, com acusações [de interferência na instituição], porque a própria Polícia Federal fica como órgão em suspeita", ressaltou na época.

Com a decisão do STF barrando a nomeação, a PF foi assumida pelo delegado Rolando Alexandre de Souza. Ramagem continuou no comando da Abin até março de 2022, quando saiu para disputar e vencer a eleição para a Câmara dos Deputados.

 

Fonte: BBC News Brasil 

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