2024: em crise estrutural, desenvolvimento
destrutivo ampliará choques entre “minorias” e golpistas
O primeiro ano do
terceiro governo Lula inegavelmente entra para a história política do pais.
Após duros trabalhos de transição que viabilizaram a pauta vencedora nas urnas,
o país viu o presidente subir a rampa do Planalto junto aos deserdados desta
terra, uma tentativa de golpe de Estado e um ano marcado pela retomada de
políticas públicas que tentam contemplar a base da pirâmide. Ao mesmo tempo, os
maiores beneficiários políticos e econômicos dos anos Temer e Bolsonaro se
mantêm fortes, de maneira que a contradição entre dois projetos de sociedade
segue latente. Até onde será possível conciliar? Nesta entrevista que marca a
edição Prospectiva 2024 do Correio da Cidadania, a socióloga Maria Orlanda
Pinassi busca interpretar o enigma.
Na conversa, a Pinassi
passa ao largo de qualquer otimismo. Apesar de reconhecer que a volta de Lula e
do PT ao governo federal trouxeram alívio e tornam o cotidiano um pouco menos
penoso, os horizontes seguem cinzentos. Isso porque se Bolsonaro foi removido
do poder, as bases sociais que permitiram sua ascensão permanecem em movimento.
“Saímos mais
vulneráveis do desmonte institucional e dos crimes cometidos pelo governo
Bolsonaro que atingiram principalmente as áreas social, ambiental, educacional,
cultural e sanitária, todas elas agravadas pela Covid-19. O mesmo podemos dizer
do empoderamento concedido a militares, milicianos, crime organizado e
neopentecostais, que, juntos, aparelharam o país inteiro com pesado aparato
tecnológico de repressão, de controle pela fé e muita violência com o objetivo
de garantir o rebaixamento da nossa economia política interna e externa. Mas
esse processo todo é muito mais profundo e estrutural do que imaginam os que se
iludem com a mera troca de governo”.
Ao falar da condição
estrutural, a autora de A miséria ideológica e a crise do capital – uma
reconciliação histórica, entra nas condições objetivas da economia do país, que
consolidaram uma reorientação primarista e extrativista de matriz
excessivamente voltada à exportação de bens baixo valor agregado aos grandes
centros capitalistas. “A situação tem implicações internas importantes
apontando para uma tendência de enfraquecimento das regiões industriais outrora
dominantes na economia brasileira e de fortalecimento de outras voltadas à
produção de commodities. O eixo Rio-São Paulo passou o bastão para o
Centro-Oeste, o Norte e o Sul, regiões dominadas por ‘bolsonaristas raiz’. Ou
seja, Lula não encontra dificuldades apenas em Brasília, mas em parte considerável
do território nacional que funciona na forma de enclave”, explicou.
Dessa forma, Pinassi
joga o olhar para as crises ecológicas que se apresentam cada vez mais intensas
no mundo inteiro. Nesse sentido, lamenta que a visão de desenvolvimento do
espectro progressista/esquerdista guarde mais semelhanças que diferenças com a
direita mais diretamente associada ao capital.
“As futricas
palacianas não revelam o altíssimo custo ecológico e humanitário resultante da
matriz de produção predadora adotada, associada e submetida ao grande capital.
Se o governo antecessor de fato extrapolou o seu poder de destruição, não foi o
único responsável pelas sucessivas tragédias socioambientais, entre as quais o
genocídio da população indígena, yanomami inclusive. Isso vem de longa data e
se intensifica na parte que ora nos cabe na cadeia global da produção de
valor”, analisa.
E é da constatação das
similaridades nos modos de condução do Estado entre uns outros que Pinassi
extrai as mais pessimistas conclusões. Em sua visão, migalhas oriundas de
tímidas políticas de distribuição de renda e geração de empregos precários não
têm a menor condição de estancar a brutal insatisfação das maiorias sociais. As
monstruosidades políticas e ideológicas seguirão à espreita.
“O ministro da
Fazenda, o mais neoliberal dos petistas, Fernando Haddad, é o único que parece
não fazer jogo de cena ao praticar uma política de austeridade fiscal e
monetária, sem aceno aos gastos sociais e aos investimentos do passado. Temos
33 milhões de famélicos e 36 milhões de trabalhadores informais, números já
suficientemente assustadores que certamente irão crescer com tal política
antipopular voltada ao comércio exterior, à produção de commodities e ao
aprofundamento da financeirização. Mas, vejamos, uma miséria ampliada das
massas, anunciada como receita de sucesso pelo governo petista, é água farta no
moinho dos extremistas de direita”.
>>>> Leia
a entrevista completa a seguir.
• O que esperar de 2024, à luz do primeiro
ano de governo Lula? O que os atuais arranjos e correlações de forças
políticas, parlamentares, sociais e econômicas permitem vislumbrar?
Maria Orlanda Pinassi:
O último grande feito de Lula foi ter nos poupado (por ora, pelo menos!) do
maior canalha da nossa história e tornar nosso dia a dia um pouco menos pesado.
Liberto da prisão de Curitiba para o pleito mais difícil da sua vida, temos de
reconhecer que nenhum outro político brasileiro teria sido capaz de contornar
situação tão adversa como a que vivemos entre 2019 e 2022. A campanha tímida de
Lula apostou nas positividades dos dois mandatos anteriores e foi nelas que
seus eleitores, receosos de se expor, acreditaram.
Entretanto, o Brasil
de 2023 já não era mais o mesmo de 2003 ou 2008. As fontes do capital
financeiro internacional que abasteceram os fundos destinados a políticas
públicas sociais minguaram. O projeto “neodesenvolvimentista” calcado em
megaempreiteiras na construção de megaobras – complexos petroquímicos,
hidrelétricas, transposição de rios e estradas para atender demandas do agro e
da mineração – derreteu pelas mãos da operação Lava Jato. Neste ano de 2023, o
PAC e as metas da velha agenda IIRSA (Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana) foram retomadas com um investimento
público acima da média anterior e participação mais efetiva de empresas
estrangeiras.
Os novos tempos
reverberam ainda a virada ideológica das manifestações de 2013, o golpe de 2016
e a celeridade do governo Temer em aprovar a PEC 55 (12/2016), que congelou por
20 anos os gastos públicos, a Reforma do Ensino Médio (fevereiro de 2017), a Reforma
Trabalhista (julho de 2017) e apresentar a Reforma da Previdência (2017),
aprovada em novembro de 2019. Saímos mais vulneráveis do desmonte institucional
e dos crimes cometidos pelo governo Bolsonaro que atingiram principalmente as
áreas social, ambiental, educacional, cultural e sanitária, todas elas
agravadas pela Covid-19.
O mesmo podemos dizer
do empoderamento concedido a militares, milicianos, crime organizado e
neopentecostais, que, juntos, aparelharam o país inteiro com pesado aparato
tecnológico de repressão, de controle pela fé e muita violência com o objetivo
de garantir o rebaixamento da nossa economia política interna. Mas esse
processo todo é muito mais profundo e estrutural do que imaginam os que se
iludem com a mera troca de governo.
• De toda forma, as polarizações
prosseguem, o que se pode notar pela timidez em se encaminhar processos contra
os responsáveis reais pelo golpismo, inclusive o próprio Bolsonaro, que segue a
circular livremente. Ao mesmo tempo, as famosas fórmulas conciliatórias de
governabilidade agora precisam lidar com interesses de um congresso formado por
representantes diretos de certo capital nacional, também diretamente vinculados
à extrema-direita e que apresentam uma pauta econômica primarista e
ambientalmente predatória.
Maria Orlanda Pinassi:
A vitória apertada de Lula, acostumado a níveis imbatíveis de popularidade,
teve uma posse tensa, o que de certo modo antevia as muitas manifestações
inconformadas que culminaram no 8 de janeiro. Apesar das bravatas em torno do
caso, aquilo foi sim uma demonstração da força ativa da extrema direita apoiada
nas Forças Armadas.
Os extremistas deram
uma trégua aos atos de rua, mas Lula já devia saber que os encontraria pela
frente em um Legislativo hostil que dificulta ou impede a aprovação das
propostas governamentais. Certamente sabia por que desde Eduardo Cunha – que
regeu e deu seu voto ao impeachment de Dilma Rousseff - até Arthur Lira – um
dos primeiros sapos a engolir em 2023, o Congresso assume cada vez mais as
prerrogativas que tradicionalmente foram do chefe de Estado.
Isso significa que o
orçamento impositivo, as emendas de bancadas e as individuais, enfim, grande
parte do orçamento da União está em poder dos parlamentares, não mais do
Executivo, fator que impõe severas restrições ao presidencialismo tão caro a
Lula.
Esse quadro político é
reflexo do acentuado declínio da atividade industrial e a escalada crescente do
agronegócio e da mineração, os gigantes do PIB nacional que conduziram o Brasil
à 9ª posição entre as maiores riquezas do mundo, segundo o FMI. Mas isso não
significa poder de fogo internacional já que não nos cabem nem a geração
científica nem a produção de tecnologias de ponta. Há tempos que o Brasil vem
abandonando as políticas de incentivo à Ciência e Tecnologia. Somos primários,
fornecedores de matéria prima e com isso aprofundamos a nossa condição de país
dependente.
Veja, por exemplo, que
a indústria de transformação já representou 36% do PIB brasileiro e hoje
representa somente 11%. O Brasil perdeu 9,5 mil empresas na última década ou
3,5% do total. As maiores exportações advêm da soja (11,9%), do minério de
ferro (11,7%) e do petróleo (8,1%), setores que nos tornam reféns das altas e
baixas nos preços dessas commodities. É por isso que, na razão inversa do
ranking do FMI, saltamos da 25ª para a 60ª posição no ranking de complexidade
econômica de Harvard, que avalia 133 países.
A situação tem
implicações internas importantes apontando para uma tendência de
enfraquecimento das regiões industriais outrora dominantes na economia
brasileira e de fortalecimento de outras voltadas à produção de commodities. O
eixo Rio-São Paulo passou o bastão para o Centro-Oeste, o Norte e o Sul,
regiões dominadas por “bolsonaristas raiz”. Ou seja, Lula não encontra
dificuldades apenas em Brasília, mas em parte considerável do território
nacional que funciona na forma de enclave.
• Como observa a contradição interna ao
governo, que parece dividir adeptos de uma visão mais liberal na economia, como
a de Fernando Haddad, de partidários de uma visão defensora de maiores
orçamentos voltados às despesas sociais, sem corroborar ideias como a de
“déficit zero”?
Maria Orlanda Pinassi:
O tema da Reforma Tributária, aprovada no Congresso neste ano de 2023,
certamente será outro importante fator de incentivo à reprimarização do país,
já que ao desonerar as exportações vai intensificar ainda mais o modelo
extrativista, monocultor e comercial no qual estamos atolados.
Eu diria que o
calcanhar de Aquiles desse governo é a contradição no seu sentido mais agudo.
No plano imediato, a maneira que Lula encontrou de “amenizar” os novos
transtornos para sua forma de governança foi abrir o ministério para apoiadores
convictos do seu adversário filiados ao PP, PSD, União Brasil, PL,
Republicanos. Não que isso represente uma novidade em se tratando das alianças
no mínimo questionáveis que fez ao longo da história. E não é demais lembrar
que parte dessas legendas surgiu na cena política para fortalecer a campanha de
Dilma 2, que precisava do apoio do baixo clero político para se reeleger.
A questão é que,
durante o golpe, essas eminências pardas saíram dos subterrâneos e revelaram
seu pendor fascista ao compor o que ficou conhecido como as bancadas do boi, da
bala e da bíblia. Ou seja, o “progressismo popular” do PT que sempre evitou
associar-se à esquerda revolucionária hoje depende da extrema direita para
sobreviver e pavimenta os caminhos de uma autocracia travestida de democracia.
O ministro da
Economia, o mais neoliberal dos petistas, Fernando Haddad, é o único que parece
não fazer jogo de cena ao praticar uma política de austeridade fiscal e
monetária, sem aceno aos gastos sociais e aos investimentos do passado. Temos
33 milhões de famélicos e 36 milhões de trabalhadores informais, números já
suficientemente assustadores que certamente irão crescer com tal política
antipopular voltada ao comércio exterior, à produção de commodities e ao
aprofundamento da financeirização. Mas, vejamos, uma miséria ampliada das
massas, anunciada como receita de sucesso pelo governo petista, é água farta no
moinho dos extremistas de direita.
De qualquer maneira,
quem vem desempenhando muito bem o papel de provedor da população vulnerável
não é tanto mais o Estado e sim a iniciativa privada que, através de suas
fundações e organizações sociais, convoca agentes para embrenharem no Brasil
profundo com ofertas de: a) financiamentos para os novos empreendedores
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, mulheres pobres e a população periférica;
b) pedagogias educacionais voltadas ao trabalho precário de crianças e jovens
(4).
Enfim, políticas
sociais públicas e privadas se complementam na arte de prover a pobreza e
enfraquecer as lutas sociais que de fato questionem o sistema e suas bases de
funcionamento.
• Não seria perigoso acreditar demais
nesta estabilidade, calcada nos tradicionais “pactos por cima” da história
brasileira, e ignorar os anseios e necessidades da massa de trabalhadores
empobrecida nesses últimos anos? Isto é, o governo e seus apoiadores não têm
obrigação de costurar iniciativas mais incisivas no combate às desigualdades e
aprofundarem alianças por fora de uma institucionalidade renitentemente
conservadora?
Maria Orlanda Pinassi:
Lula foi talhado para absorver algumas das mais profundas contradições sociais
que se ampliam e agravam sob o neoliberalismo ou, como prefiro, sob a crise
estrutural introjetada no Brasil pelas mãos da ditadura de 1964. Lula jamais se
declarou socialista, preferindo ser um político da ordem democrático-burguesa,
não para combatê-la, mas conformá-la a um país periférico, colonial e
autocrático. Desde o seu surgimento no cenário nacional, como líder operário
combativo da linha de menor resistência, ele foi peça chave na transição
transada dos anos 80, na reorganização da classe trabalhadora, na
institucionalização dos conflitos sociais no campo e nas cidades. A partir de
então, a luta de classes se travaria em uma mesa de negociação.
O PT, seu braço
político, foi um guarda-chuva para organizações de esquerda, sindicatos e
movimentos sociais, mas o foco do líder e dos mais chegados sempre foi a
conquista do parlamento e do legislativo em todos os níveis da nação. De fato,
conquistou municípios, governos de estado, o Congresso e a Presidência da
República, essa por cinco vezes. Em todas essas, preponderou a forma
conciliatória de se exercer a política e um afastamento decisivo das bases de
onde emergiu.
Passados tantos anos
de intensa projeção nacional e internacional, Lula e seu partido mantêm-se como
eficientes agentes da “contrarrevolução”. No entanto, frente às mudanças
exigidas pelo sistema sociometabólico em crise estrutural, o que foi trunfo se
reverte na sua maior dificuldade, pois a empatia com as massas sofre o impacto
de um adversário à altura. Tem pouco a dizer à classe que insiste em ignorar,
classe que já provou, através da imensa popularidade que carreou para
Bolsonaro, que não quer somente encher a barriga com as sobras vacilantes do
capital financeiro. A massa parece querer algo mais do que um prato de comida e
um cala a boca. Precisa de alguém que ouça a sua insatisfação e reverbere a sua
miséria ideológica.
O identitarismo
amoroso do petista mascara o desalento em ascensão, abre o Planalto para
“minorias” e golpistas, dá continuidade e aprofunda políticas de
desenvolvimento destrutivo ao país. A “harmonia” que parece reinar entre
ministérios tão incompatíveis não faz sentido com o identitarismo que vigora no
mundo real, que serve melhor ao ódio que divide e confronta as massas entre si.
É uma guerra intestina que esse governo fomenta.
• Dessa forma, estamos diante de uma bomba
relógio, onde se tenta construir uma democracia crível e inclusiva, mas cada
vez mais arbitrada por setores que impõem uma pauta regressiva sob todos os
ângulos, com forte conteúdo de precarização do trabalho, manutenção/ampliação
das desigualdades estruturais e destruição ambiental?
Maria Orlanda Pinassi:
O petismo passa por uma transfiguração irreversível, seja por sua aproximação
das pautas da extrema direita que refletem os anseios da lumpenburguesia
interna do agro e do extrativismo, seja pelo atendimento das crescentes
demandas por minérios das indústrias de transformação externas, sobretudo da
indústria 4.0. Para esses setores não há sustentabilidade possível, nem valores
humanos a preservar.
Somos um país em
disputa pelo imperialismo chinês, estadunidense, europeu. O Brasil, assim como
todos os demais países da América Latina, é disputado porque tem riquezas in
natura que são negociadas sem valor agregado. As futricas palacianas não
revelam o altíssimo custo ecológico e humanitário resultante da matriz de
produção predadora adotada, associada e submetida ao grande capital.
Se o governo
antecessor de fato extrapolou o seu poder de destruição, não foi o único
responsável pelas sucessivas tragédias socioambientais entre as quais o
genocídio da população indígena, yanomami inclusive. Isso vem de longa data e
se intensifica na parte que ora nos cabe na cadeia global da produção de valor.
A verdadeira essência
do governo Lula pode ser, assim, mensurada, por exemplo, pela projeção de
extração de petróleo na Foz do Amazonas, pelos acordos para liberação do
potássio no Rio Madeira e pelo veto – fake e demagógico - ao Marco Temporal,
que permitiu indenização a invasores de Terras Indígenas. Penso que esses
exemplos são demonstrações dos alicerces onde repousa a tal
"estabilidade" do governo.
Eu diria que esse é um
quadro pouco animador para as perspectivas socioambientais de 2024, que irão
aprofundar ainda mais as contradições do governo que desde o início anda na
corda bamba. Mas, certamente, não será através da política representativa que as
coisas irão se resolver. Neste plano, o PT representou a última esperança de
civilidade, traço que a atual desfiguração enterra sem luto.
Fonte: Por Gabriel
Brito, no Correio da Cidadania
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