Caso Bustani: ataque dos EUA contra embaixador brasileiro prova
urgência de reforma internacional
Embaixador brasileiro que confrontou os EUA nos
preparativos para a invasão do Iraque reconta sua trajetória e explica o papel do
BRICS na reforma do sistema internacional. Alvo de chantagem e ameaça por parte
de altos funcionários dos EUA, caso Bustani revela por que manter a ordem
global inalterada é inaceitável para países em desenvolvimento.
O embaixador brasileiro José Maurício Bustani,
famoso por confrontar os Estados Unidos durante os preparativos para a invasão
do Iraque, concedeu entrevista exclusiva à Sputnik Brasil recontando sua
trajetória e explicando por que uma das principais tarefas do BRICS é
democratizar organismos multilaterais.
Alvo de chantagem e ameaça por parte de altos
funcionários dos EUA, Bustani foi ilegalmente afastado da diretoria da
Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), filiada às Nações
Unidas, pouco antes da invasão no Iraque.
"O que aconteceu comigo foi um reflexo da
ordem mundial construída após a Segunda Guerra Mundial, na qual a possibilidade
de ingerência e pressão em função da dependência orçamentária das principais
economias mundiais é uma realidade", disse o embaixador Bustani à Sputnik
Brasil.
Apesar das tensões do atual contexto geopolítico,
organizações multilaterais continuam desempenhando papel em assuntos
fundamentais para a sobrevivência da espécie humana, como o controle de armas
químicas e nucleares.
Porém, o funcionamento imparcial das organizações
internacionais é cotidianamente colocado em xeque por grandes potências, que
utilizam seu poderio econômico para cercear suas atividades e chantagear seus
membros mais idôneos.
Esse foi o caso de Bustani, obrigado a travar uma
luta solitária contra a maior potência militar da atualidade, os EUA. Durante
sua permanência no cargo de diretor da OPAQ, Bustani esteve a poucos passos de
impedir a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, sob o falso pretexto de
que o regime de Saddam Hussein estaria desenvolvendo arsenal de armas químicas.
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O obstáculo Bustani
Criada em 1997, a Organização para a Proibição de
Armas Químicas (OPAQ) têm como objetivo garantir a destruição desses arsenais,
inclusive através de inspeções surpresa no território dos países-membros.
O prestígio do embaixador brasileiro José Maurício
Bustani, que contava com ampla experiência na área de controle de armamentos,
garantiu a sua nomeação por aclamação ao cargo de primeiro diretor-geral da
OPAQ, ainda em 1997.
"Eu aceitei assumir esse cargo porque tinha
interesse nessa organização, que eu considerava mais justa do que outras da
área [de controle de armamentos]", disse o embaixador Bustani à Sputnik
Brasil.
Ao contrário de controle de armas nucleares, a OPAQ
garante obrigações idênticas a todos os países-membros, sejam eles grandes
potências ou países em desenvolvimento.
A primeira gestão de Bustani foi considerada
bem-sucedida pelos países-membros, que solicitaram a sua recondução ao cargo
antes mesmo do fim de seu mandato. Em 2000, o diplomata brasileiro deu segmento
a sua missão de ampliar a adesão de países à organização e o número de
inspeções em plantas químicas no território dos Estados-membros.
Um dos principais desafios do brasileiro era
incluir países do Oriente Médio no grupo. O desenvolvimento das capacidades
militares de Israel, amplamente considerado um país nuclearmente armado, levava
seus vizinhos a considerar a viabilidade do desenvolvimento de armas químicas.
Cumprindo suas obrigações, o diplomata brasileiro
logrou a adesão de países como Irã, Arábia Saudita, Sudão e Jordânia à OPAQ.
Bustani também conseguiu o que muitos consideravam impossível na época:
negociar a adesão de Iraque e Líbia ao regime de controle de armas químicas.
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Sucesso indesejado
A atuação de Bustani garantiu a redução de 15% na
quantidade de armas químicas no mundo, realizou cerca de 1.100 inspeções em 50
países e aumentou o número de Estados-membros de 87 para 145. Mas o diplomata
não sabia que seu sucesso seria o motivo da sua derrocada.
"A partir dos atentados de 11 de setembro de
2001, a visão dos EUA sobre o trabalho [de Bustani na OPAQ] mudou
radicalmente", disse a socióloga e professora Silvia Portela à Sputnik
Brasil. "A guerra ao terror colocou o Iraque – e posteriormente a Líbia –
na mira dos EUA."
Nesse contexto, a Casa Branca passou a considerar a
adesão do Iraque como uma ameaça a seus planos geopolíticos e militares. A
administração George W. Bush já buscava justificar uma invasão militar com base
em supostos arsenais químicos desenvolvidos pelo regime de Saddam Hussein.
"Na época, nós sabíamos que o Iraque não
possuía esses arsenais. Inspetores que trabalhavam comigo [na OPAQ] haviam me
garantido que os arsenais haviam sido destruídos e que o país não dispunha de
capacidade de os desenvolver", relatou Bustani em recente entrevista na
Universidade Federal de Santa Catarina.
A resistência de Bustani em abandonar as
negociações com o Iraque levou os Estados Unidos a iniciarem uma campanha feroz
e ilegal para retirar o brasileiro da direção da organização.
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Pressão norte-americana
Em março de 2002, a delegação dos EUA submeteu a
OPAQ a uma "moção de desconfiança", convidando Bustani a renunciar ao
cargo até o fim daquele mês. A manobra, que não estava prevista no regulamento
da instituição, não alcançou a maioria necessária para a sua aprovação.
Diante da derrota, altos funcionários dos EUA
passaram a pressionar Bustani a renunciar, recorrendo a instrumentos
flagrantemente ilegais, como a chantagem e ameaça.
Em entrevista ao The Intercept Brasil, Bustani
relata reunião com o então subsecretário de Estado para Controle de Armas e
Assuntos de Segurança Internacional da administração de George W. Bush, John
Bolton, um dos principais defensores da invasão norte-americana do Iraque.
"Ele entrou no meu escritório, me ameaçou e
deu 24 horas para que eu renunciasse", relembra Bustani em entrevista ao
The Intercept Brasil. "Foi um ultimato. Ele disse: 'Nós sabemos onde estão
seus filhos.' Na época, dois estavam em Nova York, nos EUA. Eu respondi: 'Eu
não tenho medo de nada e nem eles. Se vocês quiserem, me ponham para
fora'."
Bolton confirmou a reunião com o brasileiro em
entrevista ao The New York Times, dizendo que se limitou a dizer a Bustani que,
"caso renunciasse voluntariamente, daríamos a ele uma saída graciosa e
digna".
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Brasil subserviente
Na mesma ocasião, John Bolton revelou a Bustani que
havia selado acordo com o governo brasileiro, então presidido por Fernando
Henrique Cardoso, para afastá-lo da diretoria da OPAQ.
De fato, o Brasil havia barganhado o destino de
Bustani com os norte-americanos. De acordo com o embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, as tratativas incluíram a concessão do cargo de alto comissário das
Nações Unidas a nacional brasileiro.
A submissão do Brasil aos planos de Washington foi
reportada pela mídia local na época. Na ocasião, fonte no Itamaraty ouvida pelo
jornal Estado de São Paulo afirmou que a permanência de Bustani no cargo era
"causa perdida", pelo brasileiro ser "pouco maleável aos interesses
das nações mais poderosas". A fonte ainda disse que "o cargo de
diretor-geral [...] de organismos internacionais exige um perfil mais aberto às
negociações políticas e às pressões políticas exercidas pelos EUA".
Anos mais tarde, o então ministro das Relações
Exteriores do Brasil, Celso Lafer, confirmou a participação do Brasil na
expulsão ilegal de Bustani da OPAQ. "Foi um processo complicado, com os
Estados Unidos e particularmente John Bolton e Donald Rumsfeld [então
secretário de Defesa] querendo a cabeça de Bustani", revelou o
ex-chanceler.
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Pressão financeira
Fazendo uso de seu poderio econômico, os EUA
ameaçaram suspender o pagamento de suas obrigações junto à OPAQ, que, na época,
representavam cerca de 25% do orçamento da organização. As pressões de
Washington para que o Japão fizesse o mesmo levariam a OPAQ a perder
praticamente metade de seu orçamento, inviabilizando o trabalho da organização
no combate às armas químicas.
Após intensa campanha para desmoralizar Bustani,
alegando "falta de transparência, má-gestão, negligência,
irresponsabilidade, incompetência", os norte-americanos lograram a
aprovação de resolução interna que, finalmente, retirou o brasileiro do cargo.
A vitória norte-americana permitiu não só a saída
de Bustani da organização, mas também a impossibilidade de verificação
multilateral acerca da suposta existência de arsenais químicos no Iraque.
Em 2003, o mundo assistiu à invasão do país, sob a
justificativa de "desarmar o regime iraquiano, encerrar o apoio de Saddam
Hussein a organizações terroristas e libertar o povo iraquiano", nas
palavras do então presidente dos EUA George W. Bush.
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Volta para casa?
Apesar da atitude do embaixador Bustani ser
amplamente considerada ética e consonante com os cânones da política externa
brasileira, a sua volta aos corredores do Itamaraty foi complicada. O
ministério, então chefiado por Lafer, deixou Bustani sem função específica
durante praticamente um ano. O quadro foi revertido somente após a eleição do
petista Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, em 2002.
"Lula tomou uma decisão muito relevante, que
foi a de nomear Bustani para o cargo de embaixador do Brasil em Londres",
relatou a socióloga Silvia Portela. "Essa foi uma atitude altiva, afinal a
Grã-Bretanha apoiava ativamente o esforço de guerra no Iraque."
Segundo ela, apesar das dificuldades em sua
trajetória, Bustani goza de prestígio e boa imagem entre os colegas,
"afinal ele fez jus à postura independente que todo diplomata brasileiro
deve ter".
A retomada dos rumos naturais de sua carreira não
foi o suficiente para Bustani. O brasileiro optou por entrar com processo
judicial no Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho,
reivindicando a anulação da decisão, o reconhecimento da ilegalidade da
campanha dos EUA para retirá-lo do cargo e exigindo indenização por danos
materiais e morais.
Caso deixada impune, a exoneração de Bustani
abriria precedente para que outros diretores de organizações internacionais
fossem retirados por pressões políticas de Estados-membros, ferindo a autonomia
destas instituições.
"Fiz questão de entrar com a ação para
explicitar a ilegalidade do processo, e impedir que outros diretores fossem
destituídos da mesma forma", relatou Bustani à Sputnik Brasil.
Em sua sentença, o Tribunal condenou a interferência
dos EUA no trabalho da organização e considerou a demissão de Bustani ilegal.
"Eu fui o primeiro diretor de organização
internacional a ser afastado, mas serei o último", disse o embaixador
brasileiro. "Podemos dizer que essa decisão foi um legado positivo, afinal
o mecanismo de expulsar diretores das Organizações Internacionais não está mais
à disposição dos EUA."
Como Bustani não solicitou a recondução ao cargo de
diretor, o Tribunal da OIT condenou a OPAQ a manter o pagamento do seu salário
até o fim do mandato que lhe era de direito, além de prover danos morais no
valor de 50 mil euros.
"Decidi doar minha indenização para o fundo
para países em desenvolvimento da OPAQ, para o qual os americanos sempre
dificultavam a liberação de recursos", disse Bustani.
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Nunca mais
A análise do caso de Bustani é particularmente
relevante em contexto de tensões geopolíticas mundiais, que poderão levar a uma
reforma ampla da ordem internacional vigente.
Apesar da retração relativa do poderio
norte-americano, o embaixador Bustani nota que "o poder continua entrando
pelas portas das organizações internacionais de várias formas".
A influência desproporcional de alguns países na
formação do orçamento e na ocupação de cargos técnicos das organizações
internacionais segue como desafio para sua atuação imparcial.
"A realidade é que as disparidades econômicas
globais também ditam a disponibilidade de quadros qualificados proveniente de
países desenvolvidos. Então a disparidade é muito profunda", lamentou
Bustani.
O embaixador, no entanto, não exclui a
possibilidade de uma ordem internacional mais justa emergir, caso as
disparidades econômicas entre os países sejam mais bem equalizadas.
"A partir dos BRICS, poderemos debater uma
nova legislação internacional, com maior equilíbrio econômico entre os países.
Somente assim poderíamos ter novos critérios, retirando a violência da
dependência orçamentária dos EUA das organizações internacionais",
considerou Bustani.
Para ele, "mudar esse quadro não será nada
fácil", mas o primeiro passo é garantir espaço diplomático para que o
Brasil "possa de fato palpitar e dar as suas contribuições às grandes
decisões internacionais".
Ø Presidente eleito da Guatemala denuncia golpe de Estado em curso
Declaração é dada após a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos pedir medidas de proteção a Bernardo Arévalo e exortar
autoridades a respeitarem o resultado das urnas.
O presidente eleito da Guatemala, Bernardo Arévalo,
denunciou nesta sexta-feira (1º) que há um golpe de Estado em curso no país, promovido
por políticos e funcionários corruptos que buscam quebrar a ordem
constitucional e violar a democracia, ignorando o resultado das eleições de 20
de agosto.
"Estamos a assistir a um golpe de Estado em
curso, em que o aparelho de Justiça é utilizado para violar a própria Justiça,
zombando da vontade popular expressa livremente nas urnas em 20 de
agosto", sublinhou Arévalo, em conferência de imprensa.
Pouco menos de duas semanas após as eleições
presidenciais, o país já enfrenta confrontos políticos de grande escala. Em 24
de agosto, apenas quatro dias após vencer as eleições, Arévalo disse ser alvo
de um plano de assassinato. A declaração do presidente eleito foi dada pouco
após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pedir às autoridades do
país medidas cautelares de proteção a Arévalo e à futura vice-presidente, Karen
Herrera.
Na última quinta-feira (31), a comissão divulgou
uma nota exortando as autoridades da Guatemala a respeitarem o resultado das
urnas. A nota destaca a suspensão do registro de pessoa jurídica do partido de
Arévalo pelo tribunal superior eleitoral do país, oito dias após sua vitória
nas urnas.
"A CIDH observa com preocupação a decisão de
suspender o registro do Semilla, que violaria um amparo provisório emitido pela
Corte Constitucional e teria o objetivo de impedir a posse de membros do
partido eleitos para a presidência e vice-presidência da República e outros
cargos públicos. Da mesma forma, [a suspensão do registro] teria sido ordenada
sem cumprir os fundamentos e o processo estabelecidos na Lei Eleitoral e dos
Partidos Políticos, o que poderia restringir arbitrariamente a liberdade de
associação e os direitos políticos", diz a nota.
Fonte: Sputnik Brasil
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