sábado, 2 de setembro de 2023

Caso Bustani: ataque dos EUA contra embaixador brasileiro prova urgência de reforma internacional

Embaixador brasileiro que confrontou os EUA nos preparativos para a invasão do Iraque reconta sua trajetória e explica o papel do BRICS na reforma do sistema internacional. Alvo de chantagem e ameaça por parte de altos funcionários dos EUA, caso Bustani revela por que manter a ordem global inalterada é inaceitável para países em desenvolvimento.

O embaixador brasileiro José Maurício Bustani, famoso por confrontar os Estados Unidos durante os preparativos para a invasão do Iraque, concedeu entrevista exclusiva à Sputnik Brasil recontando sua trajetória e explicando por que uma das principais tarefas do BRICS é democratizar organismos multilaterais.

Alvo de chantagem e ameaça por parte de altos funcionários dos EUA, Bustani foi ilegalmente afastado da diretoria da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), filiada às Nações Unidas, pouco antes da invasão no Iraque.

"O que aconteceu comigo foi um reflexo da ordem mundial construída após a Segunda Guerra Mundial, na qual a possibilidade de ingerência e pressão em função da dependência orçamentária das principais economias mundiais é uma realidade", disse o embaixador Bustani à Sputnik Brasil.

Apesar das tensões do atual contexto geopolítico, organizações multilaterais continuam desempenhando papel em assuntos fundamentais para a sobrevivência da espécie humana, como o controle de armas químicas e nucleares.

Porém, o funcionamento imparcial das organizações internacionais é cotidianamente colocado em xeque por grandes potências, que utilizam seu poderio econômico para cercear suas atividades e chantagear seus membros mais idôneos.

Esse foi o caso de Bustani, obrigado a travar uma luta solitária contra a maior potência militar da atualidade, os EUA. Durante sua permanência no cargo de diretor da OPAQ, Bustani esteve a poucos passos de impedir a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, sob o falso pretexto de que o regime de Saddam Hussein estaria desenvolvendo arsenal de armas químicas.

·         O obstáculo Bustani

Criada em 1997, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) têm como objetivo garantir a destruição desses arsenais, inclusive através de inspeções surpresa no território dos países-membros.

O prestígio do embaixador brasileiro José Maurício Bustani, que contava com ampla experiência na área de controle de armamentos, garantiu a sua nomeação por aclamação ao cargo de primeiro diretor-geral da OPAQ, ainda em 1997.

"Eu aceitei assumir esse cargo porque tinha interesse nessa organização, que eu considerava mais justa do que outras da área [de controle de armamentos]", disse o embaixador Bustani à Sputnik Brasil.

Ao contrário de controle de armas nucleares, a OPAQ garante obrigações idênticas a todos os países-membros, sejam eles grandes potências ou países em desenvolvimento.

A primeira gestão de Bustani foi considerada bem-sucedida pelos países-membros, que solicitaram a sua recondução ao cargo antes mesmo do fim de seu mandato. Em 2000, o diplomata brasileiro deu segmento a sua missão de ampliar a adesão de países à organização e o número de inspeções em plantas químicas no território dos Estados-membros.

Um dos principais desafios do brasileiro era incluir países do Oriente Médio no grupo. O desenvolvimento das capacidades militares de Israel, amplamente considerado um país nuclearmente armado, levava seus vizinhos a considerar a viabilidade do desenvolvimento de armas químicas.

Cumprindo suas obrigações, o diplomata brasileiro logrou a adesão de países como Irã, Arábia Saudita, Sudão e Jordânia à OPAQ. Bustani também conseguiu o que muitos consideravam impossível na época: negociar a adesão de Iraque e Líbia ao regime de controle de armas químicas.

·         Sucesso indesejado

A atuação de Bustani garantiu a redução de 15% na quantidade de armas químicas no mundo, realizou cerca de 1.100 inspeções em 50 países e aumentou o número de Estados-membros de 87 para 145. Mas o diplomata não sabia que seu sucesso seria o motivo da sua derrocada.

"A partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, a visão dos EUA sobre o trabalho [de Bustani na OPAQ] mudou radicalmente", disse a socióloga e professora Silvia Portela à Sputnik Brasil. "A guerra ao terror colocou o Iraque – e posteriormente a Líbia – na mira dos EUA."

Nesse contexto, a Casa Branca passou a considerar a adesão do Iraque como uma ameaça a seus planos geopolíticos e militares. A administração George W. Bush já buscava justificar uma invasão militar com base em supostos arsenais químicos desenvolvidos pelo regime de Saddam Hussein.

"Na época, nós sabíamos que o Iraque não possuía esses arsenais. Inspetores que trabalhavam comigo [na OPAQ] haviam me garantido que os arsenais haviam sido destruídos e que o país não dispunha de capacidade de os desenvolver", relatou Bustani em recente entrevista na Universidade Federal de Santa Catarina.

A resistência de Bustani em abandonar as negociações com o Iraque levou os Estados Unidos a iniciarem uma campanha feroz e ilegal para retirar o brasileiro da direção da organização.

·         Pressão norte-americana

Em março de 2002, a delegação dos EUA submeteu a OPAQ a uma "moção de desconfiança", convidando Bustani a renunciar ao cargo até o fim daquele mês. A manobra, que não estava prevista no regulamento da instituição, não alcançou a maioria necessária para a sua aprovação.

Diante da derrota, altos funcionários dos EUA passaram a pressionar Bustani a renunciar, recorrendo a instrumentos flagrantemente ilegais, como a chantagem e ameaça.

Em entrevista ao The Intercept Brasil, Bustani relata reunião com o então subsecretário de Estado para Controle de Armas e Assuntos de Segurança Internacional da administração de George W. Bush, John Bolton, um dos principais defensores da invasão norte-americana do Iraque.

"Ele entrou no meu escritório, me ameaçou e deu 24 horas para que eu renunciasse", relembra Bustani em entrevista ao The Intercept Brasil. "Foi um ultimato. Ele disse: 'Nós sabemos onde estão seus filhos.' Na época, dois estavam em Nova York, nos EUA. Eu respondi: 'Eu não tenho medo de nada e nem eles. Se vocês quiserem, me ponham para fora'."

Bolton confirmou a reunião com o brasileiro em entrevista ao The New York Times, dizendo que se limitou a dizer a Bustani que, "caso renunciasse voluntariamente, daríamos a ele uma saída graciosa e digna".

·         Brasil subserviente

Na mesma ocasião, John Bolton revelou a Bustani que havia selado acordo com o governo brasileiro, então presidido por Fernando Henrique Cardoso, para afastá-lo da diretoria da OPAQ.

De fato, o Brasil havia barganhado o destino de Bustani com os norte-americanos. De acordo com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, as tratativas incluíram a concessão do cargo de alto comissário das Nações Unidas a nacional brasileiro.

A submissão do Brasil aos planos de Washington foi reportada pela mídia local na época. Na ocasião, fonte no Itamaraty ouvida pelo jornal Estado de São Paulo afirmou que a permanência de Bustani no cargo era "causa perdida", pelo brasileiro ser "pouco maleável aos interesses das nações mais poderosas". A fonte ainda disse que "o cargo de diretor-geral [...] de organismos internacionais exige um perfil mais aberto às negociações políticas e às pressões políticas exercidas pelos EUA".

Anos mais tarde, o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Lafer, confirmou a participação do Brasil na expulsão ilegal de Bustani da OPAQ. "Foi um processo complicado, com os Estados Unidos e particularmente John Bolton e Donald Rumsfeld [então secretário de Defesa] querendo a cabeça de Bustani", revelou o ex-chanceler.

·         Pressão financeira

Fazendo uso de seu poderio econômico, os EUA ameaçaram suspender o pagamento de suas obrigações junto à OPAQ, que, na época, representavam cerca de 25% do orçamento da organização. As pressões de Washington para que o Japão fizesse o mesmo levariam a OPAQ a perder praticamente metade de seu orçamento, inviabilizando o trabalho da organização no combate às armas químicas.

Após intensa campanha para desmoralizar Bustani, alegando "falta de transparência, má-gestão, negligência, irresponsabilidade, incompetência", os norte-americanos lograram a aprovação de resolução interna que, finalmente, retirou o brasileiro do cargo.

A vitória norte-americana permitiu não só a saída de Bustani da organização, mas também a impossibilidade de verificação multilateral acerca da suposta existência de arsenais químicos no Iraque.

Em 2003, o mundo assistiu à invasão do país, sob a justificativa de "desarmar o regime iraquiano, encerrar o apoio de Saddam Hussein a organizações terroristas e libertar o povo iraquiano", nas palavras do então presidente dos EUA George W. Bush.

·         Volta para casa?

Apesar da atitude do embaixador Bustani ser amplamente considerada ética e consonante com os cânones da política externa brasileira, a sua volta aos corredores do Itamaraty foi complicada. O ministério, então chefiado por Lafer, deixou Bustani sem função específica durante praticamente um ano. O quadro foi revertido somente após a eleição do petista Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, em 2002.

"Lula tomou uma decisão muito relevante, que foi a de nomear Bustani para o cargo de embaixador do Brasil em Londres", relatou a socióloga Silvia Portela. "Essa foi uma atitude altiva, afinal a Grã-Bretanha apoiava ativamente o esforço de guerra no Iraque."

Segundo ela, apesar das dificuldades em sua trajetória, Bustani goza de prestígio e boa imagem entre os colegas, "afinal ele fez jus à postura independente que todo diplomata brasileiro deve ter".

A retomada dos rumos naturais de sua carreira não foi o suficiente para Bustani. O brasileiro optou por entrar com processo judicial no Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho, reivindicando a anulação da decisão, o reconhecimento da ilegalidade da campanha dos EUA para retirá-lo do cargo e exigindo indenização por danos materiais e morais.

Caso deixada impune, a exoneração de Bustani abriria precedente para que outros diretores de organizações internacionais fossem retirados por pressões políticas de Estados-membros, ferindo a autonomia destas instituições.

"Fiz questão de entrar com a ação para explicitar a ilegalidade do processo, e impedir que outros diretores fossem destituídos da mesma forma", relatou Bustani à Sputnik Brasil.

Em sua sentença, o Tribunal condenou a interferência dos EUA no trabalho da organização e considerou a demissão de Bustani ilegal.

"Eu fui o primeiro diretor de organização internacional a ser afastado, mas serei o último", disse o embaixador brasileiro. "Podemos dizer que essa decisão foi um legado positivo, afinal o mecanismo de expulsar diretores das Organizações Internacionais não está mais à disposição dos EUA."

Como Bustani não solicitou a recondução ao cargo de diretor, o Tribunal da OIT condenou a OPAQ a manter o pagamento do seu salário até o fim do mandato que lhe era de direito, além de prover danos morais no valor de 50 mil euros.

"Decidi doar minha indenização para o fundo para países em desenvolvimento da OPAQ, para o qual os americanos sempre dificultavam a liberação de recursos", disse Bustani.

·         Nunca mais

A análise do caso de Bustani é particularmente relevante em contexto de tensões geopolíticas mundiais, que poderão levar a uma reforma ampla da ordem internacional vigente.

Apesar da retração relativa do poderio norte-americano, o embaixador Bustani nota que "o poder continua entrando pelas portas das organizações internacionais de várias formas".

A influência desproporcional de alguns países na formação do orçamento e na ocupação de cargos técnicos das organizações internacionais segue como desafio para sua atuação imparcial.

"A realidade é que as disparidades econômicas globais também ditam a disponibilidade de quadros qualificados proveniente de países desenvolvidos. Então a disparidade é muito profunda", lamentou Bustani.

O embaixador, no entanto, não exclui a possibilidade de uma ordem internacional mais justa emergir, caso as disparidades econômicas entre os países sejam mais bem equalizadas.

"A partir dos BRICS, poderemos debater uma nova legislação internacional, com maior equilíbrio econômico entre os países. Somente assim poderíamos ter novos critérios, retirando a violência da dependência orçamentária dos EUA das organizações internacionais", considerou Bustani.

Para ele, "mudar esse quadro não será nada fácil", mas o primeiro passo é garantir espaço diplomático para que o Brasil "possa de fato palpitar e dar as suas contribuições às grandes decisões internacionais".

 

Ø  Presidente eleito da Guatemala denuncia golpe de Estado em curso

 

Declaração é dada após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pedir medidas de proteção a Bernardo Arévalo e exortar autoridades a respeitarem o resultado das urnas.

O presidente eleito da Guatemala, Bernardo Arévalo, denunciou nesta sexta-feira (1º) que há um golpe de Estado em curso no país, promovido por políticos e funcionários corruptos que buscam quebrar a ordem constitucional e violar a democracia, ignorando o resultado das eleições de 20 de agosto.

"Estamos a assistir a um golpe de Estado em curso, em que o aparelho de Justiça é utilizado para violar a própria Justiça, zombando da vontade popular expressa livremente nas urnas em 20 de agosto", sublinhou Arévalo, em conferência de imprensa.

Pouco menos de duas semanas após as eleições presidenciais, o país já enfrenta confrontos políticos de grande escala. Em 24 de agosto, apenas quatro dias após vencer as eleições, Arévalo disse ser alvo de um plano de assassinato. A declaração do presidente eleito foi dada pouco após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pedir às autoridades do país medidas cautelares de proteção a Arévalo e à futura vice-presidente, Karen Herrera.

Na última quinta-feira (31), a comissão divulgou uma nota exortando as autoridades da Guatemala a respeitarem o resultado das urnas. A nota destaca a suspensão do registro de pessoa jurídica do partido de Arévalo pelo tribunal superior eleitoral do país, oito dias após sua vitória nas urnas.

"A CIDH observa com preocupação a decisão de suspender o registro do Semilla, que violaria um amparo provisório emitido pela Corte Constitucional e teria o objetivo de impedir a posse de membros do partido eleitos para a presidência e vice-presidência da República e outros cargos públicos. Da mesma forma, [a suspensão do registro] teria sido ordenada sem cumprir os fundamentos e o processo estabelecidos na Lei Eleitoral e dos Partidos Políticos, o que poderia restringir arbitrariamente a liberdade de associação e os direitos políticos", diz a nota.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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