É a hora de
preparar o novo ciclo geopolítico mundial
Immanuel
Wallestein e Giovanni Arrighi trouxeram importantes insights para o campo das
relações internacionais (O Declínio do Poder Americano, 2004) e a
economia capitalista contemporânea (O Longo Século XX, 2007; e Adam
Smith em Pequim: Origens e Fundamentos do Século XXI, 2008). O primeiro
abordou, dentre outras coisas, a corrosão ideológica do poder norte-americano
ao longo do tempo, ou seja, a capacidade de Os Estados Unidos da América ser um
exemplo a ser seguido pelo chamado “mundo livre”; e o segundo na chegada do fim
do Ciclo Sistêmico de Acumulação dominado atualmente pelos EUA. As relações
internacionais estão passando por essas transformações.
Mesmo
com algumas críticas pertinentes às abordagens e conclusões dos autores, seja
pelas várias escolas analíticas das relações internacionais, o fato é que o
mundo geopolítico e econômico de hoje não é mais o mesmo do final da Segunda
Guerra Mundial e muito menos o herdado do fim da Guerra Fria. Podemos afirmar
que a ideia de que o século XXI continuará a ser comandado pelo EUA e Europa
perdeu o sentido totalmente.
A
consolidação da China como uma grande economia capitalista, investidora global
e com projeto geopolítico próprio ao lado do retorno da Rússia ao chessboard nos
últimos anos, demonstram que os EUA e União Europeia (o “Ocidente”) não estão
mais no controle da economia e da ideologia mundial ou, mais precisamente, da
democracia liberal como um valor absoluto emanado de países comprometidos com
Direitos Humanos ou Democracia. John Mearsheimer de algum modo, por exemplo,
analisou tal processo (The Great Delusion: Liberal Dreams and International
Realities, 2018). Mearsheimer (John Mearsheimer: We’re playing
Russian roulette)
sofre várias críticas por ter feito uma leitura lógica, realista e geopolítica
da disputa Otan e Rússia. Um dos poucos analistas que não cederam ao
stablishment ideológico bélico da Casa Branca. Aliás, não nos esqueçamos de
Henry Kissinger que também viu como uma provocação a expansão da Otan para leste.
Depois mudou de opinião (Henry Kissinger: Why I changed my
mind about Ukraine) para seguir o mainstream de Washington. Nada mais
correto do que manter a sua coerência histórica.
Retornando
ao nosso argumento, a própria ideia de um compromisso eficaz dos EUA com os
Direitos Humanos ou respeito ao Direito Internacional perde o sentido quando
nos lembramos do Iraque, Abu Ghraib e Afeganistão para falar dos mais recentes
fatos, são os exemplos mais claros de violações territoriais e dos direitos
humanos.
Como
já assinalamos (Guerra da Ucrânia: um novo mundo multipolar
está surgindo),
a invasão da Ucrânia (2014-2022) seria a linha divisória desse novo ciclo
geopolítico de poder que está emergindo. Muito mais do que a invasão russa
propriamente dita, o fracasso do Ocidente em tentar isolar a Rússia demonstrou que
algo mudou completamente. A baixa influência dos EUA e da UE em arregimentar
outras nações para seguir a estratégia de sanções contra Moscou demonstrou que
é preciso muito mais do que a retórica da violação territorial da Ucrânia. A
ausência de legitimidade global da política de Washington se evidencia quando
os próprios EUA mantêm relações privilegiadas com Israel que ocupa ilegalmente
a Cisjordânia e as Colinas do Golan desde 1967, por exemplo. Além disso, a
suposta defesa da democracia como um pilar fundamental de sua política externa
se torna objeto frágil quando se mantém relações diplomáticas de alto nível com
a Arábia Saudita ou China, países com histórico de violações sistemáticas dos
Direitos Humanos segundo as organizações que fiscalizam o tema ao redor do
mundo e sediadas nos próprios EUA e UE.
Matias
Spektor, na Foreign Affairs (May/June 2023), com o artigo In Defense of the Fence Sitters: What
the West Gets Wrong About Hedging analisa as causas do chamado Sul
Global não ter embarcado na adoção das posições ocidentais contra a Rússia.
Trata-se de um bom roteiro para entender o que pode estar acontecendo nas
relações internacionais e o seu futuro.
Outro
sinal da mudança foi a chegada do Brics englobando países com grande projeção
global em termos econômicos e posteriormente a criação do Novo Banco de
Desenvolvimento como um órgão efetivo na democratização do acesso ao crédito
internacional fora do tradicional centro criado no pós-guerra como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) ou Banco Mundial. Trata-se de um importante
detalhe para esta nova configuração geopolítica e econômica, mesmo com as
óbvias assimetrias existentes entre os seus membros fundadores. O próprio
possível aumento do Brics para o Brics Plus com outros países
postulando a entrada no grupo demonstra que algo está fora do tradicional
padrão que conhecemos.
Cliff
Kupchan, chairman do Eurasia Group em artigo no website da Foreign Policy
intitulado 6 Swing States Will Decide the Future
of Geopolitic,
já visualiza que a nova dinâmica geopolítica está mudando para novos
protagonistas como o Brasil, a Índia, a Indonésia, a Arábia Saudita, a África
do Sul e a Turquia. Países que não estão na esfera de influência direta dos EUA
e que deveriam receber mais atenção de Washington segundo o autor. São nações
que não apoiaram as sanções promovidas pela UE e EUA contra Moscou e procuraram
estabelecer linhas atuação própria com base nos seus interesses econômicos e
geopolíticos.
Outra
contribuição importante e coerente face a realidade da disputa geopolítica
entre a Otan e a Rússia é o artigo de Samuel Charap, An Unwinnable War Washington Needs an
Endgame in Ukraine também na Foreign Affairs. A lógica de extensão
de uma guerra em que a Rússia pode até não vencer, mas dificilmente será
derrotada, só serve os interesses (econômicos e geopolíticos, por exemplo) dos
EUA. Além de aumentar os perigos de uma escalada militar e até mesmo nuclear.
Europeus e ucranianos são meros peões dentro da lógica de Washington. É preciso
reconhecer que Moscou terá que ter as reclamações ouvidas, mais cedo ou mais
tarde. Mesmo que o bom senso não encontre eco em Washington, vários analistas
já perceberem isso.
Tendo
como base o atual cenário, o mundo está entrando em uma nova fase, que não terá
o comando dos EUA e da UE. Aí está o maior problema para europeus e
norte-americanos: reconhecer que o seu ciclo de poder está chegando ao fim,
porém não aceitar esse fim de uma maneira coerente. O que queremos dizer como
isso? A manutenção das mesmas linhas da atuação da Guerra Fria, ou seja,
criando sistematicamente “inimigos comunistas” para arregimentar aliados e
mantendo uma linha beligerante na política externa é uma falha grave que não
mudará o resultado final: o declínio geopolítico e econômico dos EUA enquanto
potência dominante e da Europa como uma região geopolítica importante.
Por
outro lado, a UE ainda não percebeu que a linha ditada pelos EUA e seguida de
maneira cega por Bruxelas promoverá ainda mais problemas para o bloco. Aliás,
os resultados já são visualizados. A inflação e o desemprego são as pontas
visíveis do iceberg que a UE precisa enfrentar. A perda de influência do eixo
euro-atlântico é irreversível.
O
que fazer? É a hora de preparar o novo ciclo geopolítico mundial.
Ø
Perguntas
para um novo mundo. Por Almir Felitte
A
turbulência política vivida pelo mundo de hoje já está longe de ser uma
novidade. De golpes na América Latina à Primavera Árabe, da ascensão fascista
na Europa à Guerra na Ucrânia, a crise do capitalismo liberal, desde 2008,
parece ter desencadeado uma movimentação na geopolítica global como não se via
há tempos.
Diante
deste cenário, em parte por falta de visão, em parte por interesses privados, a
mídia hegemônica tem se perdido em uma tentativa desastrosa de reeditar um
discurso que remete à Guerra Fria. Para esta, todos os conflitos não passam de
uma disputa entre duas grandes potências, China e EUA, pela hegemonia do
capitalismo global.
Recusam-se
a analisar de forma mais profunda os significados e as raízes dos atuais
conflitos. Ao contrário da segunda metade do século XX, quando, de fato, dois
grandes blocos com espectros ideológicos, sobretudo econômicos, bem definidos
se opunham, hoje, o antagonismo político que se desenha envolve uma certa
pluralidade.
Para
chegar as questões que este artigo deseja, primeiro, precisamos quebrar um
grande mito. Mesmo com todos os discursos de livre mercado, desde que o
capitalismo conectou o mundo (violentamente na forma de colonização), ele nunca
foi um sistema realmente multilateral. Na verdade, local ou globalmente, o
capitalismo sempre se organizou em binômios: metrópole e colônia; casa-grande e
senzala; proprietários e trabalhadores. Sempre uma relação de poder que emanou
de um centro às periferias.
Essa
bipolarização tipicamente capitalista não se refletiu apenas em aspectos
econômicos, impactando, inclusive, as nossas próprias noções de Estado e
democracia.
Berço
da democracia liberal na Europa com sua Revolução no século 18, tão logo passou
a perder boa parte de suas colônias na América, a França já confabulava pela
“Partilha” do território africano enquanto ocupava parte da Ásia ao longo do
século 19. A democracia liberal francesa foi o centro violento de poder para
inúmeras colônias até a década de 1970.
Outro
berço icônico do liberalismo, os já independentes EUA conviveram por 89 anos
com a escravidão negra, no que Mbembe chama de “democracia de escravos”. Depois
ainda viveriam outros 99 anos coexistindo com as leis de segregação racial. Ao
resto da América, os EUA reservaram a Doutrina Monroe e a política do Big
Stick, um intervencionismo imperialista que também não tardaria a cruzar
oceanos.
Os
exemplos francês e norte-americano são apenas uma amostra de como, de fato, o capitalismo
global se organizou ao redor do mundo, não só no campo econômico, como também
no político. Bipolarizado por essência, numa relação desigual entre centro e
periferia. E eis que chegamos ao grande ponto deste artigo.
Os
conflitos que se espalham pelo mundo hoje não são um mero choque de potências
em disputa pela hegemonia global. Estão em jogo visões distintas de como países
devem coexistir. Uma visão que se fecha em si mesma, e outra que se abre a uma
vasta gama de possibilidades. Não é um conflito entre Ocidente e Oriente. Não é
um conflito entre capitalistas e comunistas. É um conflito entre os que
defendem a manutenção deste capitalismo bipolarizado que irradia do centro à
periferia e outro grupo, formado por um conjunto de países bem diversos entre
si, que deseja a multilateralidade.
Diante
desta constatação de que o grande conflito global da atualidade se dá entre a
manutenção da bipolarização e a construção de um mundo multilateral, algumas
perguntas (talvez ainda sem resposta) podem nos ajudar a entender os novos
tempos que se avizinham.
Quais
os efeitos do enfraquecimento de órgãos centrais do capitalismo para a
soberania dos países do chamado Sul global? Em palavras exemplificativas, o que
aconteceria com um país periférico em crise que, ao invés de recorrer a
submissão da agenda liberal do FMI, tivesse alternativas como o Banco do Brics?
Caso a desdolarização continue a avançar, que peso continuarão a ter as sanções
norte-americanas para países que rezem fora de sua cartilha? O que aconteceria
se o lastro de confiabilidade de países não ficasse mais sujeito apenas ao
Banco Mundial e a agências de risco de Wall Street? Como ficaria a
autodeterminação dos povos por todo o mundo sem a ameaça da Otan?
Para
além destes questionamentos que, à primeira vista, convergem para um pensamento
mais econômico, podemos fazer alguns apontamentos ainda mais profundos. Não só
o capitalismo, mas a própria democracia liberal também sempre sobreviveu deste
sistema que irradia de um centro para suas periferias. Como Mbembe nos ensina,
as democracias modernas sempre dependeram de “violências distantes”, de um
estado de exceção permanente que ele chama de “face noturna da democracia”.
Violências
que, da distância do colonialismo e do imperialismo, já explodem no centro das
próprias autoproclamadas democracias nestes tempos de crise. Do Black Lives
Matter norte-americano à Paris em chamas contra a violência policial, os
problemas do Estado democrático de direito se desnudam no centro do capitalismo
como sempre se desnudaram nas periferias do mundo. Enfim, com todos os seus
problemas, a democracia em sua forma liberal, igualmente bipolarizada, tem sido
colocada em xeque.
Neste
ponto, poderia a multilateralidade representar novas formas de organização
política e social para o mundo? A derrocada da democracia liberal em um mundo
multilateral representaria a radicalização de conceitos verdadeiramente
democráticos e populares ou o império de autocracias? De todo modo, pela
primeira vez na história do capitalismo, parece que todas estas respostas não
serão mais dadas apenas pelo Ocidente.
Fonte:
Por Charles Pennaforte, no Le Monde/Outras Palavras
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