A globalização como
mercado e guerra civil mundiais
Nos
últimos anos, o filósofo italiano Maurizio Lazzarato desenvolveu um trabalho
essencial para a compreensão do nosso presente, cuja relevância se destaca no
panorama das ciências sociais. Em títulos como Guerras e capital e El
imperialismo del dólar, ele contextualiza as guerras como parte indissociável
do capitalismo, desde a sua origem.
Partindo
daí, o pensador desenvolve uma arquitetura conceitual que desarma as
ingenuidades de matriz liberal que predominam no pensamento político hegemônico
- e em nosso senso comum - e nos permite adentrar na complexidade de nosso
tempo histórico.
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Eis a entrevista.
• Qual é a primeira guerra que poderíamos
considerar uma guerra propriamente capitalista e por quê?
A
acumulação primitiva não teria sido possível sem a guerra de conquista dos
Estados Unidos. E a expropriação dos camponeses e a caça às bruxas são obra do
Estado e de seus exércitos. Contudo, entre fins do século XIX e inícios do XX,
houve uma ruptura radical com o capitalismo marxiano: o capital competitivo
abriu passagem ao capital monopolista, a guerra se torna guerra industrial pela
hegemonia do mercado mundial, o governo está mais bem preparado para dirigir
guerra do que os generais. A guerra também se torna guerra colonial. É
impossível para o capital competir no mercado mundial como capital.
• Nesse momento, entra em cena o que você
chama de “máquina estado-capital”?
Marx
concebeu o capital como um poder imanente que não conhece limites, mas apenas
obstáculos que continuamente desloca, que continuamente recria e que ainda
supera, ad infinitum. Na realidade, nenhum destes obstáculos pode ser superado
pelo capital sem a intervenção do Estado, particularmente no mercado mundial
onde concorre não só com outros capitais, mas também com outros Estados.
Por
outro lado, o Estado não pode existir, reproduzir-se sem o capital. Sem sua
produção, não tem poder dentro de seu território, nem fora dele. Juntos,
portanto, constituem uma máquina (Estado-Capital) na qual não se identificam,
mas funcionam juntos segundo lógicas complementares: acumulação infinita de
poder, acumulação infinita de valor.
São
essas três “centralizações” – econômica, política, militar –, que podemos
chamar de “soberanas”, que definem o novo tipo de guerra. Michel Foucault
afirma que a economia política inutiliza o soberano. Pelo contrário, a economia
soberaniza, produz verticalizações.
Um
esclarecimento importante: quando falamos de guerra, devemos sempre nos referir
primeiro à guerra civil e, melhor ainda, à guerra civil mundial. O que
transtorna as sociedades europeias, desde a Revolução Francesa, não é a guerra
entre Estados, mas a guerra civil. É um novo tipo de guerra civil que nasce da
acumulação primitiva e que será intensificada pelo imperialismo e os monopólios.
Uma guerra civil contínua, ora subterrânea, ora aberta, mas que não conhece uma
solução contínua, daí a necessidade de centralizações (econômicas, políticas,
militares) de comando sobre o trabalho e a sociedade.
Na
modernidade, todas as grandes convulsões políticas, institucionais, jurídicas,
sociais e econômicas foram inauguradas pelas guerras civis: a revolução
“americana”, entre aspas, porque se trata apenas de uma ruptura com o poder
soberano inglês, as revoluções francesa, soviética, chinesa, vietnamita e todas
as outras revoluções do século XX, a mexicana, a iraniana etc.
As
duas guerras mundiais e os anos transcorridos entre os dois conflitos
testemunharam a simultaneidade e a sobreposição das guerras entre Estados e as
guerras civis. A continuidade de guerras entre Estados e guerras civis também
determinou o nascimento das “democracias europeias” do pós-guerra. A luta
contra o fascismo foi basicamente uma guerra civil. Uma das constituições mais
avançadas do pós-guerra, a italiana, nasceu de uma guerra civil entre fascistas
e partisanos. A constituição também tem um inimigo declarado solenemente, o
fascismo.
O
grande desenvolvimento econômico da China também nasceu de uma guerra civil
mais ou menos sigilosa e mais ou menos violenta, a “revolução cultural”.
Somente após a vitória política de um bando sobre o outro, da afirmação
daqueles que queriam o capitalismo mesmo em um país socialista, torna-se
possível o desenvolvimento econômico.
• Quais as consequências desta concepção
da guerra como continuidade na constituição da subjetividade?
A
guerra civil é uma formidável máquina de produção e transformação da
subjetividade. Os saltos subjetivos, a constituição de sujeitos políticos e as
novas formas de ação coletiva são produzidas no seio dessas rupturas, algo
completamente ignorado pelas teorias modernas que, paradoxalmente, têm no
centro o “sujeito” (Foucault), a “produção de subjetividade” (Deleuze e
Guattari) e a “subjetivação” da multidão (Hardt e Negri).
A
guerra e a guerra civil são conjuntamente forças econômicas, sociais e
políticas. Delas depende o modo de produção, o sistema político, a forma social
que, para o bem ou para o mal, uma sociedade adotará. O trágico caso da Guerra
Civil Espanhola nos oferece muito o que aprender a esse respeito. A vitória de
Franco impôs um capitalismo, um sistema político e social radicalmente
diferente ao de outros países europeus.
Na
realidade, com o capitalismo, a guerra civil sempre foi uma guerra civil
mundial. O capitalismo nasceu imediatamente como mercado mundial e a formação
de suas classes ocorre nessa dimensão espacial. O capitalismo não existe sem a
polarização entre centro e periferia, onde, no entanto, a guerra e a guerra
civil evoluem de forma diferente.
No
norte, depois da acumulação primitiva, a guerra civil flui subterraneamente
para a integração da classe operária na produção e reprodução do capital e do
Estado, ao passo que no sul a guerra civil, o estado de exceção e a guerra de
conquista não conhecerão nenhum processo de integração, mas provocarão estragos
sem interrupção, expressando uma violência absoluta, como diria Frantz Fanon,
sem mediação.
No
século XX, esses dois processos se entrelaçarão em uma única guerra civil
mundial diferenciada, cuja vanguarda são os “povos oprimidos” do sul global. A
globalização, de fato, a acumulação mundial de capital, deve ser lida de duas
formas diferentes e complementares: como construção do mercado mundial e como
guerra civil mundial, ainda que o segundo aspecto seja silenciado, eliminado,
inclusive, negado pelas teorias críticas. No entanto, o que foi eliminado
ressurge, como realidade e possibilidade, com a guerra na Ucrânia.
• A dinâmica de guerra civil continuada se
vê intensificada pela crise econômica?
O
sistema político não integra mais o conflito como fez por um breve período, de
1945 a 1968, e apenas no Norte Global. No Sul Global, sempre houve guerra de
conquista e guerra civil. Depois de constituir o motor da acumulação dos Trinta
Gloriosos, o conflito é, ao contrário, contestado, desvalorizado, reprimido. A
relação dialética entre instituições e lutas, base do compromisso
capital/trabalho do pós-guerra, é denunciada publicamente, em inícios dos anos
1970, porque, segundo a Comissão Trilateral, determina o aumento das
reivindicações salariais e de renda, de direitos sociais e econômicos.
As
lutas, que não estão mais integradas nas instituições econômicas, sociais e
políticas, são cada vez mais parecidas com guerras civis. A guerra civil não
conhece mediação, compromisso ou negociação, como sempre é possível na guerra
entre Estados. Só há vencedores e vencidos.
Especialmente
depois de 2008, as lutas adotam esta forma: as primaveras árabes, o levante
chileno e iraniano, mas também as diferentes experiências de reformismo
desenvolvidas na América Latina parecem efêmeras porque não há condições para
um “compromisso social-democrata”. Mesmo na Europa, a luta pelas pensões na
França viu um governo decidido a não fazer a menor concessão. Ou se ganha ou se
perde, porque, como no caso da crise da dívida soberana da Grécia, o
imperialismo da dívida não admite negociações.
• Quais são as consequências desse quadro
conceitual para as forças políticas e sociais anticapitalistas?
Tem-se
a impressão de que os movimentos não percebem o fechamento do espaço político,
mesmo intensificado, e desta vez definitivamente, pela guerra. A ideia de que
os movimentos podem se desenvolver, crescer e expandir sem passar por
momentos-chave de confronto com o inimigo, sem determinar rupturas e sem
construir relações de força e formas de organização capazes de sustentá-las
fica, hoje, desmentida pela realidade da política conjuntura.
A
ilusão da democracia como sistema político capaz de dar expressão às
“diferenças”, à sua conciabilidade, à sua síntese harmoniosa para o desenvolvimento
do “sistema”, que durou 30 anos – e só no Ocidente –, foi definitivamente
rompida. Essa ilusão do desenvolvimento linear de “diferenças”, cujo único
problema é a sua própria potencialização, como se pudessem se desenvolver
independentemente das estratégias do poder, também é compartilhada pelos novos
movimentos.
Ao
contrário, emerge a impossibilidade de síntese, de dialética, porque as
“diferenças” são irredutíveis e contraditórias. Os acontecimentos atuais nos
ensinam que, ao invés de proliferarem, conforme a filosofia da diferença e o
espinosismo político acreditam, a micropolítica e a microfísica levam ao
confronto e ao embate armado. Nesse sentido, a revolução se torna uma
necessidade porque as derrotas políticas sofridas pelos sucessivos movimentos
abrem o caminho para a extrema direita e os novos fascismos.
Apesar
do fracasso da governamentalidade, continua-se tentando negar o conflito com os
regimes autoritários, neofascistas e de extrema direita. Mas escapam, isto sim,
por todas as partes, e a guerra é a única forma que possuem de controlá-lo.
• A partir da guerra na Ucrânia, por que
as burguesias europeias, principalmente a alemã, não conseguiram estabelecer
uma linha geopolítica divergente com os Estados Unidos, uma linha defensiva
contra suas ações, já que fica muito claro que uma das facetas do conflito é um
ataque à sua economia?
Samir
Amin afirma que, após a Segunda Guerra Mundial, o imperialismo foi
reestruturado em uma tríade: Estados Unidos, Europa, Japão. Essa tríade começou
a desenvolver contradições internas porque a Europa e o Japão eram competidores
da economia estadunidense. Esta é uma das razões pelas quais os Estados Unidos
lançaram a globalização. Imediatamente, colocaram em xeque a economia japonesa,
ao passo que neutralizar a Europa demorou um pouco mais. Agora, com a guerra, a
tríade se alinha perfeitamente com as posições estadunidenses de “defender” o
Ocidente e seus valores.
A
Alemanha sempre foi o alvo das políticas econômicas estadunidenses e militares
da OTAN. Economicamente forte, nunca teve a capacidade de transformar seu poder
econômico em uma força política, em minha opinião, também devido ao
ordoliberalismo. A Polônia e os países do Leste são subfornecedores da economia
alemã, dependem economicamente da Alemanha. Contudo, os Estados Unidos têm a
hegemonia política sobre esses países.
Merkel
é considerada uma grande estadista, mas não teve nenhuma perspectiva para a
Europa. Basta ver como lidou com a crise da dívida soberana, tratando a Grécia
e o sul da Europa apenas do ponto de vista dos interesses alemães e franceses.
A Europa já estava moribunda pela crise grega, a guerra terminou o trabalho. A
destruição do Nord Stream 2 foi um ato de guerra anglo-estadunidense, agora
também confirmado pela CIA, contra a Alemanha, que bloqueou – também
simbolicamente – a Ostpolitik de décadas, primeiro com a Rússia, depois com a
China.
A
economia da zona euro está em recessão há dois meses, mas continua alardeando
acerca da guerra da democracia contra a autocracia. Em grande parte, a recessão
vem da Alemanha, que se viu direta e muito gravemente afetada pela guerra na
Ucrânia. Sua indústria, a mais desenvolvida da zona euro, está se vendo
gravemente afetada pelo aumento dos preços da energia devido à imposição de não
importar gás da Rússia. Um dos primeiros objetivos da aliança
anglo-estadunidense foi alcançado.
O
que surpreende é a classe dirigente e os meios de comunicação alemães que se
apresentaram, diante do pelotão de fuzilamento, convencidos de que a guerra
consistia em salvar o Ocidente e impor a democracia. Não se sabe se são
ingênuos ou masoquistas.
• No livro "El Imperialismo del
dólar", aparece a impossibilidade de os países europeus exercerem o
imperialismo em função de seu próprio tamanho. Isso também explica sua
impotência geopolítica, sua incapacidade de construir uma política externa
comum, um mecanismo de defesa fora da OTAN e um abastecimento energético
conjunto. As burguesias dos países europeus não podem, nesse novo cenário,
transcender seu caráter nacional e se tornar uma burguesia verdadeiramente
europeia?
A
Europa está acabada, está completamente alinhada com a posição da OTAN global.
Também está começando a tratar a China como um inimigo estratégico do ponto de
vista industrial, tecnológico e logístico. As “Rotas da Seda” são questionadas.
As sanções, a restrição de crédito, o congelamento de depósitos monetários, o
bloqueio de matérias-primas e tecnologia são atos de guerra, a sua continuação
por outros meios. Esta guerra é paralela e complementar à guerra entre exércitos.
Na
Grã-Bretanha, no final de 2022, por exemplo, Downing Street obrigou a chinesa
Nexperia a vender sua participação de 86% na empresa de semicondutores Newport
Wafer. Na Alemanha, o Governo decidiu restringir a presença da Cosco na
propriedade do terminal de contêineres de Tollerort para 24,99%, dos 35%
iniciais.
Na
Itália, bloqueou-se a aquisição de 70% da empresa de semicondutores LPE pela
Shenzen Investment, em 2021. Pouco depois, proibiu-se a compra pela Syngenta
(grupo Sinochem) da Verisem, empresa ativa em sementes e hortaliças. Quanto à
paralisação das negociações entre a CNH Industrial e a chinesa FAW Jiefang para
a venda de uma divisão da Iveco, bastou a persuasão moral de nosso governo.
Politicamente,
uma Europa federal é impossível, mas nem sequer uma Europa de nações parece ter
chances. Em seu lugar, está se construindo uma Europa de nacionalismos,
liderada pelo eixo polonês com muitos países do Leste, que encontra margens
amigas nos governos ou forças neofascistas do sul e oeste da Europa.
Fonte:
Entrevista com Maurizio Lazzarato para Pablo Gandolfo, publicada por El Salto -
tradução do Cepat, para IHU
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