terça-feira, 4 de julho de 2023

A globalização como mercado e guerra civil mundiais

Nos últimos anos, o filósofo italiano Maurizio Lazzarato desenvolveu um trabalho essencial para a compreensão do nosso presente, cuja relevância se destaca no panorama das ciências sociais. Em títulos como Guerras e capital e El imperialismo del dólar, ele contextualiza as guerras como parte indissociável do capitalismo, desde a sua origem.

Partindo daí, o pensador desenvolve uma arquitetura conceitual que desarma as ingenuidades de matriz liberal que predominam no pensamento político hegemônico - e em nosso senso comum - e nos permite adentrar na complexidade de nosso tempo histórico.

>>>> Eis a entrevista.

•        Qual é a primeira guerra que poderíamos considerar uma guerra propriamente capitalista e por quê?

A acumulação primitiva não teria sido possível sem a guerra de conquista dos Estados Unidos. E a expropriação dos camponeses e a caça às bruxas são obra do Estado e de seus exércitos. Contudo, entre fins do século XIX e inícios do XX, houve uma ruptura radical com o capitalismo marxiano: o capital competitivo abriu passagem ao capital monopolista, a guerra se torna guerra industrial pela hegemonia do mercado mundial, o governo está mais bem preparado para dirigir guerra do que os generais. A guerra também se torna guerra colonial. É impossível para o capital competir no mercado mundial como capital.

•        Nesse momento, entra em cena o que você chama de “máquina estado-capital”?

Marx concebeu o capital como um poder imanente que não conhece limites, mas apenas obstáculos que continuamente desloca, que continuamente recria e que ainda supera, ad infinitum. Na realidade, nenhum destes obstáculos pode ser superado pelo capital sem a intervenção do Estado, particularmente no mercado mundial onde concorre não só com outros capitais, mas também com outros Estados.

Por outro lado, o Estado não pode existir, reproduzir-se sem o capital. Sem sua produção, não tem poder dentro de seu território, nem fora dele. Juntos, portanto, constituem uma máquina (Estado-Capital) na qual não se identificam, mas funcionam juntos segundo lógicas complementares: acumulação infinita de poder, acumulação infinita de valor.

São essas três “centralizações” – econômica, política, militar –, que podemos chamar de “soberanas”, que definem o novo tipo de guerra. Michel Foucault afirma que a economia política inutiliza o soberano. Pelo contrário, a economia soberaniza, produz verticalizações.

Um esclarecimento importante: quando falamos de guerra, devemos sempre nos referir primeiro à guerra civil e, melhor ainda, à guerra civil mundial. O que transtorna as sociedades europeias, desde a Revolução Francesa, não é a guerra entre Estados, mas a guerra civil. É um novo tipo de guerra civil que nasce da acumulação primitiva e que será intensificada pelo imperialismo e os monopólios. Uma guerra civil contínua, ora subterrânea, ora aberta, mas que não conhece uma solução contínua, daí a necessidade de centralizações (econômicas, políticas, militares) de comando sobre o trabalho e a sociedade.

Na modernidade, todas as grandes convulsões políticas, institucionais, jurídicas, sociais e econômicas foram inauguradas pelas guerras civis: a revolução “americana”, entre aspas, porque se trata apenas de uma ruptura com o poder soberano inglês, as revoluções francesa, soviética, chinesa, vietnamita e todas as outras revoluções do século XX, a mexicana, a iraniana etc.

As duas guerras mundiais e os anos transcorridos entre os dois conflitos testemunharam a simultaneidade e a sobreposição das guerras entre Estados e as guerras civis. A continuidade de guerras entre Estados e guerras civis também determinou o nascimento das “democracias europeias” do pós-guerra. A luta contra o fascismo foi basicamente uma guerra civil. Uma das constituições mais avançadas do pós-guerra, a italiana, nasceu de uma guerra civil entre fascistas e partisanos. A constituição também tem um inimigo declarado solenemente, o fascismo.

O grande desenvolvimento econômico da China também nasceu de uma guerra civil mais ou menos sigilosa e mais ou menos violenta, a “revolução cultural”. Somente após a vitória política de um bando sobre o outro, da afirmação daqueles que queriam o capitalismo mesmo em um país socialista, torna-se possível o desenvolvimento econômico.

•        Quais as consequências desta concepção da guerra como continuidade na constituição da subjetividade?

A guerra civil é uma formidável máquina de produção e transformação da subjetividade. Os saltos subjetivos, a constituição de sujeitos políticos e as novas formas de ação coletiva são produzidas no seio dessas rupturas, algo completamente ignorado pelas teorias modernas que, paradoxalmente, têm no centro o “sujeito” (Foucault), a “produção de subjetividade” (Deleuze e Guattari) e a “subjetivação” da multidão (Hardt e Negri).

A guerra e a guerra civil são conjuntamente forças econômicas, sociais e políticas. Delas depende o modo de produção, o sistema político, a forma social que, para o bem ou para o mal, uma sociedade adotará. O trágico caso da Guerra Civil Espanhola nos oferece muito o que aprender a esse respeito. A vitória de Franco impôs um capitalismo, um sistema político e social radicalmente diferente ao de outros países europeus.

Na realidade, com o capitalismo, a guerra civil sempre foi uma guerra civil mundial. O capitalismo nasceu imediatamente como mercado mundial e a formação de suas classes ocorre nessa dimensão espacial. O capitalismo não existe sem a polarização entre centro e periferia, onde, no entanto, a guerra e a guerra civil evoluem de forma diferente.

No norte, depois da acumulação primitiva, a guerra civil flui subterraneamente para a integração da classe operária na produção e reprodução do capital e do Estado, ao passo que no sul a guerra civil, o estado de exceção e a guerra de conquista não conhecerão nenhum processo de integração, mas provocarão estragos sem interrupção, expressando uma violência absoluta, como diria Frantz Fanon, sem mediação.

No século XX, esses dois processos se entrelaçarão em uma única guerra civil mundial diferenciada, cuja vanguarda são os “povos oprimidos” do sul global. A globalização, de fato, a acumulação mundial de capital, deve ser lida de duas formas diferentes e complementares: como construção do mercado mundial e como guerra civil mundial, ainda que o segundo aspecto seja silenciado, eliminado, inclusive, negado pelas teorias críticas. No entanto, o que foi eliminado ressurge, como realidade e possibilidade, com a guerra na Ucrânia.

•        A dinâmica de guerra civil continuada se vê intensificada pela crise econômica?

O sistema político não integra mais o conflito como fez por um breve período, de 1945 a 1968, e apenas no Norte Global. No Sul Global, sempre houve guerra de conquista e guerra civil. Depois de constituir o motor da acumulação dos Trinta Gloriosos, o conflito é, ao contrário, contestado, desvalorizado, reprimido. A relação dialética entre instituições e lutas, base do compromisso capital/trabalho do pós-guerra, é denunciada publicamente, em inícios dos anos 1970, porque, segundo a Comissão Trilateral, determina o aumento das reivindicações salariais e de renda, de direitos sociais e econômicos.

As lutas, que não estão mais integradas nas instituições econômicas, sociais e políticas, são cada vez mais parecidas com guerras civis. A guerra civil não conhece mediação, compromisso ou negociação, como sempre é possível na guerra entre Estados. Só há vencedores e vencidos.

Especialmente depois de 2008, as lutas adotam esta forma: as primaveras árabes, o levante chileno e iraniano, mas também as diferentes experiências de reformismo desenvolvidas na América Latina parecem efêmeras porque não há condições para um “compromisso social-democrata”. Mesmo na Europa, a luta pelas pensões na França viu um governo decidido a não fazer a menor concessão. Ou se ganha ou se perde, porque, como no caso da crise da dívida soberana da Grécia, o imperialismo da dívida não admite negociações.

•        Quais são as consequências desse quadro conceitual para as forças políticas e sociais anticapitalistas?

Tem-se a impressão de que os movimentos não percebem o fechamento do espaço político, mesmo intensificado, e desta vez definitivamente, pela guerra. A ideia de que os movimentos podem se desenvolver, crescer e expandir sem passar por momentos-chave de confronto com o inimigo, sem determinar rupturas e sem construir relações de força e formas de organização capazes de sustentá-las fica, hoje, desmentida pela realidade da política conjuntura.

A ilusão da democracia como sistema político capaz de dar expressão às “diferenças”, à sua conciabilidade, à sua síntese harmoniosa para o desenvolvimento do “sistema”, que durou 30 anos – e só no Ocidente –, foi definitivamente rompida. Essa ilusão do desenvolvimento linear de “diferenças”, cujo único problema é a sua própria potencialização, como se pudessem se desenvolver independentemente das estratégias do poder, também é compartilhada pelos novos movimentos.

Ao contrário, emerge a impossibilidade de síntese, de dialética, porque as “diferenças” são irredutíveis e contraditórias. Os acontecimentos atuais nos ensinam que, ao invés de proliferarem, conforme a filosofia da diferença e o espinosismo político acreditam, a micropolítica e a microfísica levam ao confronto e ao embate armado. Nesse sentido, a revolução se torna uma necessidade porque as derrotas políticas sofridas pelos sucessivos movimentos abrem o caminho para a extrema direita e os novos fascismos.

Apesar do fracasso da governamentalidade, continua-se tentando negar o conflito com os regimes autoritários, neofascistas e de extrema direita. Mas escapam, isto sim, por todas as partes, e a guerra é a única forma que possuem de controlá-lo.

•        A partir da guerra na Ucrânia, por que as burguesias europeias, principalmente a alemã, não conseguiram estabelecer uma linha geopolítica divergente com os Estados Unidos, uma linha defensiva contra suas ações, já que fica muito claro que uma das facetas do conflito é um ataque à sua economia?

Samir Amin afirma que, após a Segunda Guerra Mundial, o imperialismo foi reestruturado em uma tríade: Estados Unidos, Europa, Japão. Essa tríade começou a desenvolver contradições internas porque a Europa e o Japão eram competidores da economia estadunidense. Esta é uma das razões pelas quais os Estados Unidos lançaram a globalização. Imediatamente, colocaram em xeque a economia japonesa, ao passo que neutralizar a Europa demorou um pouco mais. Agora, com a guerra, a tríade se alinha perfeitamente com as posições estadunidenses de “defender” o Ocidente e seus valores.

A Alemanha sempre foi o alvo das políticas econômicas estadunidenses e militares da OTAN. Economicamente forte, nunca teve a capacidade de transformar seu poder econômico em uma força política, em minha opinião, também devido ao ordoliberalismo. A Polônia e os países do Leste são subfornecedores da economia alemã, dependem economicamente da Alemanha. Contudo, os Estados Unidos têm a hegemonia política sobre esses países.

Merkel é considerada uma grande estadista, mas não teve nenhuma perspectiva para a Europa. Basta ver como lidou com a crise da dívida soberana, tratando a Grécia e o sul da Europa apenas do ponto de vista dos interesses alemães e franceses. A Europa já estava moribunda pela crise grega, a guerra terminou o trabalho. A destruição do Nord Stream 2 foi um ato de guerra anglo-estadunidense, agora também confirmado pela CIA, contra a Alemanha, que bloqueou – também simbolicamente – a Ostpolitik de décadas, primeiro com a Rússia, depois com a China.

A economia da zona euro está em recessão há dois meses, mas continua alardeando acerca da guerra da democracia contra a autocracia. Em grande parte, a recessão vem da Alemanha, que se viu direta e muito gravemente afetada pela guerra na Ucrânia. Sua indústria, a mais desenvolvida da zona euro, está se vendo gravemente afetada pelo aumento dos preços da energia devido à imposição de não importar gás da Rússia. Um dos primeiros objetivos da aliança anglo-estadunidense foi alcançado.

O que surpreende é a classe dirigente e os meios de comunicação alemães que se apresentaram, diante do pelotão de fuzilamento, convencidos de que a guerra consistia em salvar o Ocidente e impor a democracia. Não se sabe se são ingênuos ou masoquistas.

•        No livro "El Imperialismo del dólar", aparece a impossibilidade de os países europeus exercerem o imperialismo em função de seu próprio tamanho. Isso também explica sua impotência geopolítica, sua incapacidade de construir uma política externa comum, um mecanismo de defesa fora da OTAN e um abastecimento energético conjunto. As burguesias dos países europeus não podem, nesse novo cenário, transcender seu caráter nacional e se tornar uma burguesia verdadeiramente europeia?

A Europa está acabada, está completamente alinhada com a posição da OTAN global. Também está começando a tratar a China como um inimigo estratégico do ponto de vista industrial, tecnológico e logístico. As “Rotas da Seda” são questionadas. As sanções, a restrição de crédito, o congelamento de depósitos monetários, o bloqueio de matérias-primas e tecnologia são atos de guerra, a sua continuação por outros meios. Esta guerra é paralela e complementar à guerra entre exércitos.

Na Grã-Bretanha, no final de 2022, por exemplo, Downing Street obrigou a chinesa Nexperia a vender sua participação de 86% na empresa de semicondutores Newport Wafer. Na Alemanha, o Governo decidiu restringir a presença da Cosco na propriedade do terminal de contêineres de Tollerort para 24,99%, dos 35% iniciais.

Na Itália, bloqueou-se a aquisição de 70% da empresa de semicondutores LPE pela Shenzen Investment, em 2021. Pouco depois, proibiu-se a compra pela Syngenta (grupo Sinochem) da Verisem, empresa ativa em sementes e hortaliças. Quanto à paralisação das negociações entre a CNH Industrial e a chinesa FAW Jiefang para a venda de uma divisão da Iveco, bastou a persuasão moral de nosso governo.

Politicamente, uma Europa federal é impossível, mas nem sequer uma Europa de nações parece ter chances. Em seu lugar, está se construindo uma Europa de nacionalismos, liderada pelo eixo polonês com muitos países do Leste, que encontra margens amigas nos governos ou forças neofascistas do sul e oeste da Europa.

 

Fonte: Entrevista com Maurizio Lazzarato para Pablo Gandolfo, publicada por El Salto - tradução  do Cepat, para IHU

 

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