Roberto
Amaral: O presidencialismo emparedado
O mais famoso dos bardos ingleses valeu-se do
disfarce da grande poesia para fazer ciência política. Em uma de suas peças
mais lidas, recitadas, ouvidas e vistas (Rei Lear, de 1602), William
Shakespeare conta-nos a história de um velho soberano que, descuidado das
lições de Maquiavel (O príncipe, 1532), e desprotegido de virtù após
ser abandonado pela fortuna, decide, na velhice, pretendendo
salvá-lo, dividir seu vasto e poderoso império com suas filhas, igualmente
herdeiras. A novela é conhecida: o poder se desconstitui, e o monarca, despido
da coroa, conhece o mais vil opróbio, até salvar-se na loucura. A interpretação
da saga é, claro, obra aberta. Uma delas pode ser esta: não faz a guerra (ou
seja, não se defende), quem foge da adversidade.
Muitas vezes, para poder salvar o mandato, o
governante cede o governo. Frequentemente, o dirigente político é levado a se
curvar ao que os cientistas grafaram como “correlação de forças” e Ortega y
Gasset (Meditaciones del Quijote, 1914) resumiria como o império das
circunstâncias: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não me salvo nelas não
me salvo a mim”. Parece ser este o desafio de Gabriel Boric, no Chile,
governante de centro-esquerda (na origem eleitoral) impotente, em face das
circunstâncias, para alterar a correlação de forças que se revela adversa, em
país ainda polarizado tantos anos passados daquela que certamente vai para a
história como a mais abjeta das abjetas ditaduras militares da América Latina.
Impotente para levar a cabo um governo de avanços (promessa da campanha
eleitoral), acossado por uma constituinte de extrema-direita, tende a seguir no
cargo (ou, mais precisamente, a preservar o mandato), mas só podendo
implementar, do programa com o qual se elegeu, a pequena parte que os donos do
poder julgarem palatável.
Praz aos céus que não estejamos às portas de um
recidiva da tragédia chilena, pois a história registra, sem parcimônia,
quantas batalhas foram perdidas simplesmente por não terem sido travadas.
A propósito, acusa-se Jango por não haver resistido em 1964 (para o que,
supõe-se, teria apoio), e, para criticá-lo, todos se valem do exemplo de seu
cunhado Leonel Brizola, pondo por terra a tentativa de golpe dos militares em
1961, simplesmente por a ele resistir.
Essas questões, ainda sem qualquer sorte de
dramaticidade, se colocam em nossa história presente, com os impasses que se
impõem ao governo Lula.
A conjunção entre o reacionarismo tout court (o
atraso que nos persegue desde o período colonial) e o fisiologismo do baixo
clero, gerenciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, é um dos indicadores
do esgarçamento institucional que se vem acentuando nos últimos anos, mais
notadamente desde 2016, quando o Congresso Nacional, na contramão da ordem
constitucional, se insurgiu contra a vontade da soberania popular, ditada no
pronunciamento das urnas, assim atingindo de morte não apenas a reclamada
independência dos poderes, mas os fundamentos da democracia representativa – um
projeto que, entre nós, ainda não passa de mera expectativa de futuro.
Como falar em democracia em sociedade clivada por
brutal desigualdade social?
Na década passada, após impedir a presidente Dilma
Rousseff de governar, papel levado a cabo pela Câmara dos Deputados, o
Congresso extinguiu-lhe o mandato legitimamente conquistado nas urnas, dizendo
para a história que entre nós o império da soberania popular não salta das
páginas da Constituição para a vida real. Era o golpe de 2016, cujas consequências
ainda hoje padecemos.
Formalmente vencidas as vicissitudes que se instalam
em 2018, é eleito em 2022 um novo Congresso, que se afigura como um mostrengo,
ainda mais reacionário que o antecedente, ainda mais preso, como craca sedenta,
às tetas do erário. Fruto direto do esquema de corrupção que a crônica política
identifica como “orçamento secreto”, o Poder Legislativo de hoje, e nele
cumprindo papel primordial a Câmara dos Deputados, é um leviatã insaciável na
sua sede por mais poder, impondo-se como verdadeira ditadura sobre o executivo,
cuja capacidade de ação é crescentemente limitada, como é limitada sua
capacidade de formular políticas. Não se pode dizer que a história intenta
repetir-se, mas é fora de dúvida que a este filme já assistimos.
O presidente da Câmara, vitorioso sempre que o
governo perde ou a direita (de dentro e de fora de sua base de apoio)
ganha, diz que o governo precisa curvar-se ao “congresso empoderado” e
negociar. O verbo negociar, como sabe o leitor, empresta-se aos mais variados
entendimentos, e a acepção do jagunço das Alagoas não é a mais canônica.
Reimposto por outros meios o teto dos gastos – o que inviabiliza o projeto
lulista aprovado majoritariamente pelo eleitorado –, alterada a estrutura dos
ministérios para facilitar a ação dos grupos de pressão, ameaçados a defesa do
meio ambiente e o mínimo de proteção às populações nativas, o presidente da
Câmara confronta o Planalto, dizendo que o Congresso é governo, e, nestes
termos, mais forte que o governo mesmo: “O congresso conquistou mais
protagonismo nos últimos anos, é liberal e conservador e destoa do governo”.
Este que se adapte, ou seja, que se adeque às novas circunstâncias de um
presencialíssimo emparedado.
O capo porta-se, arrogante, como o
toureiro que no meio da arena, cutelo em punho, chama a fera ferida, cansada,
exangue, para a última partida. O recado é óbvio: ou o presidente Lula compõe
com a direita (e como tal entenda-se o que se quiser), ou não governará. Ou,
governará como o novo rei da Inglaterra, levando a cabo projeto que não é
o seu.
O processo em curso, montado à luz do dia,
claramente, sem subterfúgios ou cerimônias, visa a reinstalar, no governo Lula,
o governo rejeitado pelo eleitorado. Uma afronta à democracia que deve ser
interpretada, julgada e enfrentada como o que de fato é, pois o chamado
“terceiro turno” das eleições a que se reportam comentaristas políticos tem
nome e sobrenome: golpe de Estado.
Na retaguarda, um ministério que, concebido com o
justo objetivo de garantir estabilidade institucional (donde determinadas
concessões) e governabilidade (donde outra série de concessões) não oferece
hoje ao presidente nem a homogeneidade de que carece todo projeto de governo
(que continua sendo um projeto do presidente Lula) e menos ainda o respaldo parlamentar
que era sua justificativa. É um ministério velho de cinco meses, visivelmente
cansado quando é tão óbvia a virulência dos adversários, pois a oposição
parlamentar tem na sua retaguarda o grande capital.
Perigosamente, a esquerda, e, a partir dela, o
movimento social e as chamadas forças democráticas, progressistas ou não, bem
como os ditos liberais (estes como sempre), submergem, e assistem, como plateia
silenciosa, ao embate entre direita e extrema-direita, que passam a ocupar o
proscênio.
Tudo isso enseja uma questão crucial: a tarefa
fundamental das forças democráticas – portando para além da esquerda e dos
liberais – é sustentar o governo Lula.
Ø Derrotas não são de Lula, mas do Executivo, que perdeu poder para o
Legislativo e Judiciário desde 2016. Por Aquiles Lins
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se manifestou
sobre as derrotas políticas que o governo sofreu no Congresso Nacional.
Parlamentares alteraram a estrutura administrativa do Executivo, com o
esvaziamento das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e também dos
Povos Indígenas, abriram brecha para o desmatamento da Mata Atlântica, além da
aprovação da urgência da votação do PL 490, o chamado Marco Temporal.
Durante discurso na Federação das Indústrias de São
Paulo (Fiesp), o presidente minimizou o impacto das medidas, criticou o tom
catastrofista da mídia nas críticas e destacou que o governo e apoiadores não
podem se assustar com o jogo político. "Uma comissão do Congresso querendo
mexer numa estrutura de governo que é difícil de mexer. Agora que começou o
jogo. O que a gente não pode é se assustar com a política. Quando a sociedade
se assusta com a política e começa a culpar a classe política, o resultado é
infinitamente pior. É na política que se tem as soluções dos grandes e pequenos
problemas do país", disse Lula em discurso.
Ao seu modo característico, Lula exaltou a política
até na derrota. Traduziu para o eleitor médio a realidade nua e crua de um
governo que não tem maioria no Congresso Nacional. Lula também sinalizou que
outros reveses poderão surgir, porque o jogo é jogado a cada dia. Ele tem a
clareza de que lida com um Poder Legislativo hostil às suas bandeiras, nesta
esquizofrenia política do eleitor brasileiro, que vota para presidente num
candidato do PT e num candidato do União Brasil ou do PP para deputado ou
senador.
Na relação entre os Três Poderes, que deveria ser
harmônica e independente, desde pelo menos 2016 o Legislativo e o Judiciário
passaram por uma hipertrofia de suas competências. Enquanto isso, o Poder
Executivo foi o que mais perdeu poder. Desde as chantagens de Eduardo Cunha e
Aécio Neves com as pautas bombas para imobilizar e enfraquecer o governo da
presidente Dilma Rousseff, o Congresso Nacional foi usurpando competências,
chantageando o Executivo para impor uma agenda que atenda aos interesses do
mercado financeiro e que não acerte as contas com o passado tenebroso do país -
da escravização à Ditadura Militar. Enquanto isso, o Judiciário ganhou uma
musculatura política jamais vista desde a redemocratização. O ativismo judicial
executado pelo Judiciário, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal,
teve como vítima principal as competências e prerrogativas do Poder
Executivo.
Um exemplo didático desta anomalia institucional foi
um juiz de primeira instância - Sérgio Moro - ter grampeado em 2016 a
presidente da República sem qualquer autorização do STF. Não bastasse este
crime, o juiz divulgou o conteúdo da conversa de Dilma no mesmo dia do grampo,
sendo exibido em cadeia nacional. Nada aconteceu com Moro. Pelo contrário, a
sua decisão criminosa ensejou outro arbítrio do Judiciário contra o Executivo,
que foi a decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes que impediu um ato
discricionário e exclusivo da presidente da República de nomear o então
ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil. Legislativo e Judiciário se
aliaram para retirar Dilma da presidência, admitindo sem qualquer
constrangimento que não havia crime de responsabilidade. Assim, se o Judiciário
pôde se intrometer em competências do Poder Executivo, o Congresso Nacional
também pode. E foi o que a comissão mista fez ao alterar o desenho da máquina
administrativa do governo.
É sobre esta realidade que o governo Lula 3 está
assentado. Uma realidade de enfraquecimento institucional do Executivo em face
do Legislativo e do Judiciário. Não há saída fácil. Mas como disse Lula, ela
deve vir dentro da política.
Ø No jogo político, Lula é craque e está em campo. Por Denise Assis
Que ninguém se iluda. O governo de coalizão tocado
por Lula em seu terceiro mandato sofre ataques diários e permanentes e assim
será. Ao assumir o poder sob a ação de um golpe sendo engendrado, o derrotou em
sua primeira semana de governo, mas os fatos que se seguiram não são menos
fortes ou estão fora do script da tentativa de desidratá-lo e, no primeiro
cochilo, tentar que o cenário político dê uma guinada para a direita radical.
A tentativa de desmonte do modelo de gestão
apresentado ao país, por Lula – através das alterações feitas pelo líder do
MDB, Isnaldo Bulhões, ligado ao presidente da Câmara, Arthur Lira -, foi apenas
mais uma das investidas, na tentativa de enfraquecê-lo. Até aqui, Lira tem
agido como barata: morde e assopra. Nesta última atitude, porém, errou na mão.
Tal como um jogador que cava a falta na cara do juiz, Lira deixou transparecer
que tem pressa. E, com isso, quase pôs tudo a perder, apertando “o jogo”. O que
Lira provoca – cavando a falta – é que Lula reaja com um pouco mais de
contundência, provocando o rompimento público.
Rompidos, ele jogará contra o governo os seus
464 votantes/seguidores, levando a partida para a pequena área. Com isso, não
há mãos a medir de recursos para “emendas” (nada de cargos, apenas. Lira quer a
chave do cofre) e segue um roteiro que faz parecer trazer nas mãos, em tempo
integral, o livro “Guerras Híbridas, de Andrew Koribko – eu sempre volto a ele
-, para orientar as suas próximas jogadas.
A revolução colorida funciona como uma base
unificada: “pode-se afirmar que a infraestrutura social é bastante hierárquica
e que um pequeno grupo de indivíduos na vanguarda rege o movimento inteiro”.
Esses indivíduos são a vanguarda da “revolução colorida”, explica, esclarecendo
a seguir.
“Eles são as pessoas que controlam as
instituições/organizações em posição para colocar em prática a mudança
Democrática Liberal. Eles são altamente treinados e mantêm contato direto com o
patrocinador externo (ideológico e/ou financeiro). (...) “Eles são as pessoas
mais poderosas do país-alvo e, quando a decisão por iniciar a revolução colorida
é tomada, eles podem aparecer fazendo discursos motivadores ao público em favor
da revolução colorida ou podem continuar organizando o movimento nas sombras”.
Para estabelecer um paralelo, há duas semanas,
no dia 11/05, o Jornal Valor trouxe matéria relatando que ao palestrar para
empresários em Nova Iorque, o presidente da Câmara, Arthur Lira, arrancou
aplausos entusiasmados ao defender medidas liberais e garantir que tudo faria
para aprová-las. Qualquer coincidência com a descrição acima, não é mera
semelhança com os princípios da “revolução colorida” de que nos fala Koribko.
Está lá, no “manual”, que eles se utilizarão de: Discursos públicos; dupla
soberania ou governo paralelo; recusa em aceitar funcionários nomeados e outras
artimanhas para tumultuar o governo/alvo.
O que Arthur Lira não dimensiona é o tamanho
da sagacidade do presidente. Enquanto o editorial da Folha de hoje, escreve que
Lula está “a reboque”, o governo segue imprimindo ritmo.
“Lula, eleito por margem mínima de votos (como
provar, se houve a operação da PRF? - destaque meu) e apoiado por uma
coalizão partidária frágil, parece ter entendido que o Planalto não é mais
capaz de dar as cartas da administração como há 20 anos, quando todo o jogo se
organizava em torno da distribuição de cargos e verbas por parte do Executivo.
É racional, pois, que o governo escolha as
batalhas que precisa e que pode travar. O que não parece evidente, decorridos
quase cinco meses de mandato, é se o presidente tem clareza de quais são elas”.
Ledo engano. Ainda que a Folha recorra a uma
comparação debochada, da opção de Lula por incrementar a venda dos carros
populares, com a do ex-presidente Itamar Franco por ressuscitar o “fusca”, como
medida para aquecer a venda de carros populares e assim aquecer a economia, o
que o presidente está fazendo, de fato, é política pura.
Com seu ato, demonstra que não topou a
provocação de Arthur Lira. Não vai disputar a bola na pequena área. Vai, isto
sim, mostrar que está trabalhando e tocando o seu governo. E quando solta a
frase enigmática: “o jogo começou”, talvez o que queira dizer, de fato, é: se é
para fazer política, a bola está comigo. E no “cara ou coroa”, sai jogando.
Lula vai entrar em campo, desviar das bolas divididas e evitar dar “balões”.
Segue o jogo.
Fonte: Brasil 247
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