sábado, 27 de maio de 2023

Roberto Amaral: O presidencialismo emparedado

O mais famoso dos bardos ingleses valeu-se do disfarce da grande poesia para fazer ciência política. Em uma de suas peças mais lidas, recitadas, ouvidas e vistas (Rei Lear, de 1602), William Shakespeare conta-nos a história de um velho soberano que, descuidado das lições de Maquiavel (O príncipe, 1532), e desprotegido de virtù após ser abandonado pela fortuna, decide, na velhice, pretendendo salvá-lo, dividir seu vasto e poderoso império com suas filhas, igualmente herdeiras. A novela é conhecida: o poder se desconstitui, e o monarca, despido da coroa, conhece o mais vil opróbio, até salvar-se na loucura. A interpretação da saga é, claro, obra aberta. Uma delas pode ser esta: não faz a guerra (ou seja, não se defende), quem foge da adversidade.

Muitas vezes, para poder salvar o mandato, o governante cede o governo. Frequentemente, o dirigente político é levado a se curvar ao que os cientistas grafaram como “correlação de forças” e Ortega y Gasset (Meditaciones del Quijote, 1914) resumiria como o império das circunstâncias: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não me salvo nelas não me salvo a mim”. Parece ser este o desafio de Gabriel Boric, no Chile, governante de centro-esquerda (na origem eleitoral) impotente, em face das circunstâncias, para alterar a correlação de forças que se revela adversa, em país ainda polarizado tantos anos passados daquela que certamente vai para a história como a mais abjeta das abjetas ditaduras militares da América Latina. Impotente para levar a cabo um governo de avanços (promessa da campanha eleitoral), acossado por uma constituinte de extrema-direita, tende a seguir no cargo (ou, mais precisamente, a preservar o mandato), mas só podendo implementar, do programa com o qual se elegeu, a pequena parte que os donos do poder julgarem palatável.

Praz aos céus que não estejamos às portas de um recidiva da tragédia chilena, pois a história registra, sem  parcimônia, quantas batalhas foram perdidas simplesmente por não terem  sido travadas. A propósito, acusa-se Jango por não haver resistido em 1964 (para o que, supõe-se, teria apoio), e, para criticá-lo, todos se valem do exemplo de seu cunhado Leonel Brizola, pondo por terra a tentativa de golpe dos militares em 1961, simplesmente por a ele resistir.

Essas questões, ainda sem qualquer sorte de dramaticidade, se colocam em nossa história presente, com os impasses que se impõem ao governo Lula.

A conjunção entre o reacionarismo tout court (o atraso que nos persegue desde o período colonial) e o fisiologismo do baixo clero, gerenciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, é um dos indicadores do esgarçamento institucional que se vem acentuando nos últimos anos, mais notadamente desde 2016, quando o Congresso Nacional, na contramão da ordem constitucional, se insurgiu contra a vontade da soberania popular, ditada no pronunciamento das urnas, assim atingindo de morte não apenas a reclamada independência dos poderes, mas os fundamentos da democracia representativa – um projeto que, entre nós, ainda  não passa de mera expectativa de futuro.

Como falar em democracia em sociedade clivada por brutal desigualdade social?

Na década passada, após impedir a presidente Dilma Rousseff de governar, papel levado a cabo pela Câmara dos Deputados, o Congresso extinguiu-lhe o mandato legitimamente conquistado nas urnas, dizendo para a história que entre nós o império da soberania popular não salta das páginas da Constituição para a vida real. Era o golpe de 2016, cujas consequências ainda hoje padecemos.

Formalmente vencidas as vicissitudes que se instalam em 2018, é eleito em 2022 um novo Congresso, que se afigura como um mostrengo, ainda mais reacionário que o antecedente, ainda mais preso, como craca sedenta, às tetas do erário. Fruto direto do esquema de corrupção que a crônica política identifica como “orçamento secreto”,  o Poder Legislativo de hoje, e nele cumprindo papel primordial a Câmara dos Deputados, é um leviatã insaciável na sua sede por mais poder, impondo-se como verdadeira ditadura sobre o executivo, cuja capacidade de ação é crescentemente limitada, como é limitada sua capacidade de formular políticas. Não se pode dizer que a história intenta repetir-se, mas é fora de dúvida que a este filme já assistimos.

O presidente da Câmara, vitorioso sempre que o governo perde ou a direita (de dentro e de fora de sua  base de apoio) ganha, diz que o governo precisa curvar-se ao “congresso empoderado” e negociar. O verbo negociar, como sabe o leitor, empresta-se aos mais variados entendimentos, e a acepção do jagunço das Alagoas não é a mais canônica. Reimposto por outros meios o teto dos gastos – o que inviabiliza o projeto lulista aprovado majoritariamente pelo eleitorado –, alterada a estrutura dos ministérios para facilitar a ação dos grupos de pressão, ameaçados a defesa do meio ambiente e o mínimo de proteção às populações nativas, o presidente da Câmara confronta o Planalto, dizendo que o Congresso é governo, e, nestes termos, mais forte que o governo mesmo: “O congresso conquistou mais protagonismo nos últimos anos, é liberal e conservador e destoa do governo”. Este que se adapte, ou seja, que se adeque às novas circunstâncias de um presencialíssimo emparedado.

capo porta-se, arrogante, como o toureiro que no meio da arena, cutelo em punho, chama a fera ferida, cansada, exangue, para a última partida. O recado é óbvio: ou o presidente Lula compõe com a direita (e como tal entenda-se o que se quiser), ou não governará. Ou, governará como  o novo rei da Inglaterra, levando a cabo projeto que não é o seu.

O processo em curso, montado à luz do dia, claramente, sem subterfúgios ou cerimônias, visa a reinstalar, no governo Lula, o governo rejeitado pelo eleitorado. Uma afronta à democracia que deve ser interpretada, julgada e enfrentada como o que de fato é, pois o chamado “terceiro turno” das eleições a que se reportam comentaristas políticos tem nome e sobrenome: golpe de Estado.

Na retaguarda, um ministério que, concebido com o justo objetivo de garantir estabilidade institucional (donde determinadas concessões) e governabilidade (donde outra série de concessões) não oferece hoje ao presidente nem a homogeneidade de que carece todo projeto de governo (que continua sendo um projeto do presidente Lula) e menos ainda o respaldo parlamentar que era sua justificativa. É um ministério velho de cinco meses, visivelmente cansado quando é tão óbvia a virulência dos adversários, pois a oposição parlamentar tem na sua retaguarda o grande capital.

Perigosamente, a esquerda, e, a partir dela, o movimento social e as chamadas forças democráticas, progressistas ou não, bem como os ditos liberais (estes como sempre), submergem, e assistem, como plateia silenciosa, ao embate entre direita e extrema-direita, que passam a ocupar o proscênio.

Tudo isso enseja uma questão crucial: a tarefa fundamental das forças democráticas – portando para além da esquerda e dos liberais – é sustentar o governo Lula.

 

Ø  Derrotas não são de Lula, mas do Executivo, que perdeu poder para o Legislativo e Judiciário desde 2016. Por Aquiles Lins

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se manifestou sobre as derrotas políticas que o governo sofreu no Congresso Nacional. Parlamentares alteraram a estrutura administrativa do Executivo, com o esvaziamento das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e também dos Povos Indígenas, abriram brecha para o desmatamento da Mata Atlântica, além da aprovação da urgência da votação do PL 490, o chamado Marco Temporal.

Durante discurso na Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), o presidente minimizou o impacto das medidas, criticou o tom catastrofista da mídia nas críticas e destacou que o governo e apoiadores não podem se assustar com o jogo político. "Uma comissão do Congresso querendo mexer numa estrutura de governo que é difícil de mexer. Agora que começou o jogo. O que a gente não pode é se assustar com a política. Quando a sociedade se assusta com a política e começa a culpar a classe política, o resultado é infinitamente pior. É na política que se tem as soluções dos grandes e pequenos problemas do país", disse Lula em discurso.

Ao seu modo característico, Lula exaltou a política até na derrota. Traduziu para o eleitor médio a realidade nua e crua de um governo que não tem maioria no Congresso Nacional. Lula também sinalizou que outros reveses poderão surgir, porque o jogo é jogado a cada dia. Ele tem a clareza de que lida com um Poder Legislativo hostil às suas bandeiras, nesta esquizofrenia política do eleitor brasileiro, que vota para presidente num candidato do PT e num candidato do União Brasil ou do PP para deputado ou senador.

Na relação entre os Três Poderes, que deveria ser harmônica e independente, desde pelo menos 2016 o Legislativo e o Judiciário passaram por uma hipertrofia de suas competências. Enquanto isso, o Poder Executivo foi o que mais perdeu poder. Desde as chantagens de Eduardo Cunha e Aécio Neves com as pautas bombas para imobilizar e enfraquecer o governo da presidente Dilma Rousseff, o Congresso Nacional foi usurpando competências, chantageando o Executivo para impor uma agenda que atenda aos interesses do mercado financeiro e que não acerte as contas com o passado tenebroso do país - da escravização à Ditadura Militar. Enquanto isso, o Judiciário ganhou uma musculatura política jamais vista desde a redemocratização. O ativismo judicial executado pelo Judiciário, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal, teve como vítima principal as competências e prerrogativas do Poder Executivo. 

Um exemplo didático desta anomalia institucional foi um juiz de primeira instância - Sérgio Moro - ter grampeado em 2016 a presidente da República sem qualquer autorização do STF. Não bastasse este crime, o juiz divulgou o conteúdo da conversa de Dilma no mesmo dia do grampo, sendo exibido em cadeia nacional. Nada aconteceu com Moro. Pelo contrário, a sua decisão criminosa ensejou outro arbítrio do Judiciário contra o Executivo, que foi a decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes que impediu um ato discricionário e exclusivo da presidente da República de nomear o então ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil. Legislativo e Judiciário se aliaram para retirar Dilma da presidência, admitindo sem qualquer constrangimento que não havia crime de responsabilidade. Assim, se o Judiciário pôde se intrometer em competências do Poder Executivo, o Congresso Nacional também pode. E foi o que a comissão mista fez ao alterar o desenho da máquina administrativa do governo. 

É sobre esta realidade que o governo Lula 3 está assentado. Uma realidade de enfraquecimento institucional do Executivo em face do Legislativo e do Judiciário. Não há saída fácil. Mas como disse Lula, ela deve vir dentro da política. 

 

Ø  No jogo político, Lula é craque e está em campo. Por Denise Assis

 

Que ninguém se iluda. O governo de coalizão tocado por Lula em seu terceiro mandato sofre ataques diários e permanentes e assim será. Ao assumir o poder sob a ação de um golpe sendo engendrado, o derrotou em sua primeira semana de governo, mas os fatos que se seguiram não são menos fortes ou estão fora do script da tentativa de desidratá-lo e, no primeiro cochilo, tentar que o cenário político dê uma guinada para a direita radical.  

 A tentativa de desmonte do modelo de gestão apresentado ao país, por Lula – através das alterações feitas pelo líder do MDB, Isnaldo Bulhões, ligado ao presidente da Câmara, Arthur Lira -, foi apenas mais uma das investidas, na tentativa de enfraquecê-lo. Até aqui, Lira tem agido como barata: morde e assopra. Nesta última atitude, porém, errou na mão. Tal como um jogador que cava a falta na cara do juiz, Lira deixou transparecer que tem pressa. E, com isso, quase pôs tudo a perder, apertando “o jogo”. O que Lira provoca – cavando a falta – é que Lula reaja com um pouco mais de contundência, provocando o rompimento público.

 Rompidos, ele jogará contra o governo os seus 464 votantes/seguidores, levando a partida para a pequena área. Com isso, não há mãos a medir de recursos para “emendas” (nada de cargos, apenas. Lira quer a chave do cofre) e segue um roteiro que faz parecer trazer nas mãos, em tempo integral, o livro “Guerras Híbridas, de Andrew Koribko – eu sempre volto a ele -, para orientar as suas próximas jogadas.

 A revolução colorida funciona como uma base unificada: “pode-se afirmar que a infraestrutura social é bastante hierárquica e que um pequeno grupo de indivíduos na vanguarda rege o movimento inteiro”. Esses indivíduos são a vanguarda da “revolução colorida”, explica, esclarecendo a seguir.  

“Eles são as pessoas que controlam as instituições/organizações em posição para colocar em prática a mudança Democrática Liberal. Eles são altamente treinados e mantêm contato direto com o patrocinador externo (ideológico e/ou financeiro). (...) “Eles são as pessoas mais poderosas do país-alvo e, quando a decisão por iniciar a revolução colorida é tomada, eles podem aparecer fazendo discursos motivadores ao público em favor da revolução colorida ou podem continuar organizando o movimento nas sombras”.

 Para estabelecer um paralelo, há duas semanas, no dia 11/05, o Jornal Valor trouxe matéria relatando que ao palestrar para empresários em Nova Iorque, o presidente da Câmara, Arthur Lira, arrancou aplausos entusiasmados ao defender medidas liberais e garantir que tudo faria para aprová-las. Qualquer coincidência com a descrição acima, não é mera semelhança com os princípios da “revolução colorida” de que nos fala Koribko. Está lá, no “manual”, que eles se utilizarão de: Discursos públicos; dupla soberania ou governo paralelo; recusa em aceitar funcionários nomeados e outras artimanhas para tumultuar o governo/alvo.

 O que Arthur Lira não dimensiona é o tamanho da sagacidade do presidente. Enquanto o editorial da Folha de hoje, escreve que Lula está “a reboque”, o governo segue imprimindo ritmo.

 “Lula, eleito por margem mínima de votos (como provar, se houve a operação da PRF? - destaque meu) e apoiado por uma coalizão partidária frágil, parece ter entendido que o Planalto não é mais capaz de dar as cartas da administração como há 20 anos, quando todo o jogo se organizava em torno da distribuição de cargos e verbas por parte do Executivo.

 É racional, pois, que o governo escolha as batalhas que precisa e que pode travar. O que não parece evidente, decorridos quase cinco meses de mandato, é se o presidente tem clareza de quais são elas”.

 Ledo engano. Ainda que a Folha recorra a uma comparação debochada, da opção de Lula por incrementar a venda dos carros populares, com a do ex-presidente Itamar Franco por ressuscitar o “fusca”, como medida para aquecer a venda de carros populares e assim aquecer a economia, o que o presidente está fazendo, de fato, é política pura.  

 Com seu ato, demonstra que não topou a provocação de Arthur Lira. Não vai disputar a bola na pequena área. Vai, isto sim, mostrar que está trabalhando e tocando o seu governo. E quando solta a frase enigmática: “o jogo começou”, talvez o que queira dizer, de fato, é: se é para fazer política, a bola está comigo. E no “cara ou coroa”, sai jogando. Lula vai entrar em campo, desviar das bolas divididas e evitar dar “balões”.  Segue o jogo.

 

Fonte: Brasil 247

 

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