“É
o momento de maior risco, na História, de uma guerra nuclear em grande escala”,
diz diretor do ICAN
Carlos Umaña é um médico costarriquenho que
pelas eventualidades da vida se tornou uma das grandes referências
do movimento pelo desarmamento nuclear. É presidente da Associação
Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear, que ganhou
o Prêmio Nobel da Paz, em 1985.
Também faz parte da direção da Campanha
Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN), que recebeu o
mesmo prêmio, em 2017, por promover a adesão dos países ao Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN), assinado por mais de 120 estados.
<<<< Eis a entrevista.
·
Em termos de ameaça nuclear, em que momento estamos?
Estamos no momento de maior risco, na História, de
uma guerra nuclear em grande escala, conforme ponderou o grupo de
especialistas do Boletim dos Cientistas Atômicos, em seu Relógio do Apocalipse. Isso se deve não apenas à
atual guerra na Ucrânia, mas também a três outros
fatores:
O primeiro é composto pela instabilidade, as
declarações e ameaças imprudentes feitas por líderes dos países com armas
nucleares.
O segundo é a crise climática, que gera instabilidade, competição por recursos e,
portanto, conflitos nacionais e internacionais.
O terceiro é a possibilidade de disparos
acidentais de armamento nuclear. Foram registrados muitos acidentes: só no
Estados Unidos foram registrados mais de mil. Não foram disparos, mas quase.
Acontecem quando mísseis são transportados, mas também quando os sistemas de
alerta máxima são ativados por outras coisas que não são bombardeios. Isso me
preocupa muito.
·
Então, um alarme falso pode nos levar à guerra
nuclear?
Sim. De fato, existem alguns especialistas que dizem
que a guerra nuclear mais provável não é uma intencional, mas uma
acidental. Os alarmes foram acionados muitas vezes por uma tempestade solar,
por balões meteorológicos ou mesmo por bandos de gansos.
As pessoas que monitoram esses sistemas de alarme
precisam interpretar que são alarmes falsos, mas quando estamos em guerra,
essas interpretações humanas podem variar e más decisões podem ser tomadas.
Já nem sequer cabe questionar qual é a sanidade
mental de Vladimir Putin. A dissuasão nuclear está fundamentada no princípio
de que a ameaça é credível e que esse cenário de destruição total não interessa
a ninguém. Temos que estar assim, perto do precipício, para que essa lógica funcione.
É uma loucura.
·
Por que viram a necessidade de promover um Tratado
de Proibição de Armas Nucleares, se já existia um Tratado de Não Proliferação
assinado por várias potências nucleares, entre elas, os Estados Unidos e a
Rússia?
O tratado de não proliferação entrou em vigor em
1970, como uma reação à crise dos mísseis em Cuba, de 1967, quando as
pessoas experimentaram uma ameaça existencial. Naquele momento, o Relógio
do Apocalipse estava a menos 12 minutos, agora, estamos a menos de 90
segundos.
Está muito claro que sozinho este tratado não levará
ao desarmamento nuclear. Suas duas últimas conferências de revisão foram
um fracasso, pois não foi possível sequer produzir um documento de consenso.
·
Não serviu para que os arsenais nucleares diminuam?
Está havendo uma tendência a reduzir
os arsenais nucleares, mas tem mais a ver com os tratados
bilaterais START. O Tratado de Não Proliferação reconhece cinco
estados nucleares e os outros são não nucleares, com obrigações distintas.
Serve muito mais para reforçar a ideia de que
as armas nucleares são necessárias para a segurança e a estabilidade,
cria um apartheid nuclear. O Tratado de
Proibição que promovemos é uma proibição universal das armas nucleares para
absolutamente todos os países.
·
Contudo, nenhuma potência nuclear o assinou.
Ainda. Todas as mudanças de paradigma começam com
muita resistência. Agora, estamos passando pelas etapas da verdade
de Schopenhauer: primeiro a chacota, em seguida, a resistência e, depois,
a aceitação.
Inicialmente, fomos chamados de hippies e nos fóruns
internacionais a palavra proibição mal era pouco mencionada, mas, em três anos,
começaram as negociações desse tratado. É um sonho pacifista.
·
Na Espanha, você apresentou a Aliança para o
Desarmamento Nuclear, que busca a adesão do país ao tratado de proibição. Pedro
Sánchez prometeu assiná-lo, mas nunca cumpriu. Em que situação está a eventual
adesão da Espanha?
Em 2018, esse compromisso foi assumido, mas houve
resistência dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. A Aliança é um
grupo de movimentos de base que busca formar uma massa crítica para
conscientizar sobre as consequências humanitárias de um ataque nuclear e para
estimular a Espanha a se juntar ao TPAN.
Contudo, atualmente, o Governo não está disposto a
apoiar o tratado, nem mesmo a comparecer como observador às reuniões dos
Estados-membros, algo que fazem outros países da OTAN, como Alemanha, Holanda e Noruega. A Espanha agora
não quer ter nenhuma controvérsia com a OTAN, nem com a Europa.
Houve uma resposta muito militarista de todo o mundo
a partir da guerra na Ucrânia, especialmente da OTAN. E há uma
interpretação errônea de que esse militarismo também implica apoio
incondicional a dissuadir do uso de armas nucleares, muito pelo contrário.
Foram as armas nucleares que tornaram
possível a guerra da Ucrânia. Putin invadiu lançando a ameaça de
que se algum país se envolvesse diretamente, teria consequências como nunca
vistas na história, em referência às armas nucleares.
·
Como a guerra na Ucrânia afeta a ameaça nuclear?
Aumentou o risco de uma guerra nuclear, mas o
impacto tem uma leitura positiva e outra negativa. As pessoas estão se tornando
mais conscientes do risco nuclear. Já passamos duas gerações de pessoas
que não vivenciaram essa ameaça existencial e que, agora, estão
acordando e vendo realmente a face de uma ameaça com a qual se convive há
muitos anos.
Contudo, também ficou mais difícil o apoio ao
tratado de proibição, porque se difunde o discurso de que as armas
nucleares são necessárias como contrapeso. Os aliados nucleares não
condenam o uso de armas nucleares, mas o seu uso por Putin. É
hipócrita e absurdo dizer que alguns são responsáveis para tê-las, mas outros
não. Não se trata de segurança, mas de mostrar um poder, um privilégio.
·
Além da Rússia, que outros países preocupam por seu
desenvolvimento nuclear?
O caso da Coreia do Norte e o do Irã são vistos com
preocupação. Cada vez mais países têm capacidade para fabricar armas nucleares,
e essa capacidade deriva justamente da tecnologia para obter energia nuclear. Foi o que a Índia e o Paquistão conseguiram.
Quanto mais Estados tiverem essas armas, mais
aumenta o risco para o mundo. Mas, esse é o sintoma de uma doença: o fomento
da hegemonia nuclear como doutrina de segurança para os
países.
·
Considera que, nesse contexto, é possível chegar a
um cenário como o da crise dos mísseis de Cuba?
Esse cenário já estamos vivendo cotidianamente.
Quando estourou a guerra na Ucrânia, muitos de nós que trabalhamos pelo
desarmamento sofremos do que chamamos de “ansiedade nuclear”, porque estamos
muito conscientes do risco.
Robert McNamara, secretário de Estado
de Kennedy, durante a crise dos mísseis em Cuba, disse que naquele
momento não houve uma guerra nuclear simplesmente por sorte. Agora,
vivemos um contexto em que a possibilidade de reagir diante dessas situações é
muito maior e mais rápida e onde os sistemas de alerta estão automatizados.
Caso se ultrapasse o limiar de um disparo é muito fácil levar a uma guerra em
grande escala.
·
A crise nuclear e a climática são, na sua opinião,
as duas ameaças mais prementes para o planeta. Afirma que não é possível
solucionar uma, caso não se acabe com a outra. Por quê?
Porque as armas nucleares já são uma
grande ameaça para o meio ambiente. Também porque a manutenção e
modernização dos arsenais consomem muitos recursos: 116 bilhões de dólares por
ano é o que se investe em armas nucleares, além de recursos humanos,
políticos, científicos e tecnológicos.
Caminhando para um mundo livre de armas
nucleares, fortalecemos o regime multilateral entre os países, necessário
para lutar contra a mudança climática. Também liberamos recursos
científicos e econômicos para abordar soluções para a crise climática.
·
O que você pensou quando a cúpula do G7, que
prometeu mais recursos para a guerra na Ucrânia, foi realizada em Hiroshima,
devastada por uma bomba atômica dos Estados Unidos?
Não é por acaso que tenha ocorrido em Hiroshima. O
Japão ainda não assinou o TPAN, mas tem uma clara intenção retórica nesse
sentido ao estabelecer a cúpula lá.
Contudo, diante desse avanço, a declaração do
G7 foi uma decepção total, serviu para aprofundar o militarismo e não para buscar avanços rumo à paz. Não
esperava avanços nesta cúpula, mas serve para que as pessoas vejam quais são os
efeitos reais das armas nucleares.
·
Receber o Prêmio Nobel da Paz abriu muitas portas
para que os países assinem o TPAN?
Muitíssimo. Em determinados espaços, como nas
reuniões da ONU, a relação muda completamente quando você é um ativista
com um Nobel. Nós também estávamos ficando sem recursos e quando recebemos o
prêmio, em 2017, essa situação foi completamente solucionada.
Agora, temos muito mais legitimidade internacional.
Esta Aliança para o Desarmamento Nuclear na Espanha faz parte de
todos os esforços que levaram ao Prêmio Nobel.
Ø Um mundo sem armas nucleares é possível. Por Jacques Gaillot
Em 6 de agosto de 1945, a primeira bomba
atômica foi lançada sobre Hiroshima. Esse é o ato terrorista mais importante da
história. As armas nucleares são uma ameaça à sobrevivência da humanidade. O
homem é capaz de criar o apocalipse. Tem a capacidade de destruir o planeta. Em
6 de agosto de 1945, a humanidade entra na era nuclear. O Tratado de
Proibição de Armas Nucleares (TIAN) de 22 de janeiro de 2021 entra em
vigor, tornando as armas nucleares ilegais pelo
direito internacional. Esse é um evento histórico e uma vitória para a
humanidade.
Em 2 de julho de 2022, 86 estados assinaram e 66
estados ratificaram o tratado, incluindo o Vaticano. Um sucesso para a
sociedade civil e a diplomacia.
Não surpreende o fato que as
principais potências nucleares, incluindo a França, tenham rejeitado
o tratado. Elas pensam - erroneamente - que o medo da destruição recíproca
traga a paz.
Em 6 de agosto, no final da tarde, Théodore
Monod e cerca de 50 militantes se reuniram silenciosamente em frente às
portas do PC nuclear de Taverny, perto de Paris. Era o
momento em que os militares e civis saíam. Theodore carregava uma
grande placa que chegava até seus pés. Ele havia escrito estas palavras que
gostava de repetir: "A preparação de um crime é um crime".
Sussurro no ouvido de Théodore: "Você não
acha que parecemos ridículos aos olhos deles?" Ele respondeu sem hesitar:
"O pouco que podemos fazer, devemos fazê-lo." Depois acrescentou:
“Mas sem ilusões!”.
Ainda haverá um longo caminho a percorrer para
deixar um planeta sem armas nucleares para as gerações futuras.
Fonte: Entrevista com Carlos Umaña, para Jairo
Vargas Martín, publicada por Público. Tradução do Cepat, para IHU
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