terça-feira, 16 de abril de 2024

Os últimos pacientes do maior hospital do Haiti, transformado em QG das gangues que desestabilizam o país

O emblemático Hospital da Universidade Estadual do Haiti (HUEH), conhecido popularmente como Hospital Geral, é o maior centro médico público do país.

Mas, no momento, ele não tem nenhum paciente.

Referência médica para milhões de haitianos desde sua construção, durante a ocupação americana na década de 1920, o HUEH é, desde 1º de abril, o centro de comando das gangues que controlam o Haiti.

E virou um símbolo da violência que atinge o país, especialmente a capital, Porto Príncipe.

O hospital fica num local considerado estratégico, próximo ao Campo de Marte, a principal praça da cidade, onde estão instituições como o Palácio Nacional.

E a transformação de um ícone de saúde em um campo de batalha deixou milhares sem acesso a cuidados médicos urgentes, enquanto a cidade enfrenta uma onda de violência sem precedentes.

"Nem a saúde pública nem a privada são boas neste país, mas para aqueles que não tinham a privada como opção, nos encontramos agora completamente desamparados", diz Pierre Laouard, um paciente de câncer de 62 anos, à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Laouard vive a dois quarteirões do Hospital Geral. Ele se mudou para perto do centro médico em janeiro para poder realizar seu tratamento com mais conforto.

E foi um dos três últimos pacientes a deixar o hospital antes de ele ser transformado, em 1º de abril, no centro de comando da coalizão de gangues "Viv Ansanm", liderada pelo ex-policial Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue".

Pacientes e equipe médica foram forçados a fugir diante do temor de acabarem no fogo cruzado após os enfrentamentos se agravarem em 29 de fevereiro.

A escalada da violência fez com que os grupos criminosos tomassem o poder, levando a um êxodo da capital.

Semanas após o primeiro-ministro renunciar ao cargo, ainda não se sabe como será o conselho presidencial de transição que deve tentar retomar o controle do país.

"Há dois meses que não posso fazer a minha quimioterapia porque a equipe médica não conseguia chegar ao hospital", lamenta Laouard.

"Estou muito mal, não há médicos, meus parentes não podem vir me visitar por causa da violência que há na cidade, os suprimentos médicos são escassos. Não há nada neste país para tratar uma pessoa com o meu diagnóstico."

Ele foi o último a deixar a instalação antes de a gerência do hospital anunciar uma pausa nas operações devido à preocupação crescente com a segurança na capital e arredores.

O hospital é fundamental para que milhares de pessoas recebam cuidados médicos essenciais.

"As pessoas com deficiência não conseguiam sair, outras pessoas vieram ajudar a retirá-las. No meu caso, não posso ir para minha casa porque ela foi tomada pelas gangues", diz Laouard.

O hospital manteve suas portas abertas durante diversos períodos de dificuldade do país, incluindo fases de turbulência política, dando um mínimo de segurança para pacientes e profissionais de saúde.

Não mais. Ele foi tomado pelas gangues em uma operação eficaz que abriu uma espécie de túnel em uma rua próxima, perfurando as paredes das 15 farmácias, uma ao lado da outra, que ladeavam o hospital.

·        'Um hospital abandonado'

"É impossível a retomada das atividades hospitalares dada a instabilidade atual. Solicito um corredor humanitário para garantir o atendimento aos pacientes", pediu Evelyne Fremont, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde do HUEH.

A ONU (Organização das Nações Unidas) diz que seis em cada dez hospitais do país não estão funcionando e atualmente há apenas dois centros cirúrgicos em uso em Porto Príncipe.

De acordo com o Escritório de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (Enucah), o Haiti sofre atualmente uma escassez de medicamentos e doações de sangue.

Faltam ainda equipes de saúde, equipamentos médicos e camas para tratar os feridos por armas de fogo.

Antes da crise de violência que assola o país desde o final de fevereiro, quem ocupava as instalações do HUEH eram pacientes com dificuldades de locomoção, além de deslocados internos, acolhidos após terem suas casas queimadas por gangues, diz Jude Milcé, diretor executivo do HUEH, à BBC News Mundo.

"Todas as redes de funcionamento foram interrompidas. A maioria dos responsáveis, como médicos, residentes e internos, se foram. É um hospital abandonado", lamenta o médico, que acrescenta que nenhuma autoridade governamental os contactou.

"Nós normalmente recebemos entre 4 mil e 5 mil consultas por mês. Tratamos entre 40 e 50 casos de emergência por dia, bem como 10 a 30 intervenções, como cesarianas, cirurgias ortopédicas e outros", relata Milcé.

"Sem dúvida alguma, nos últimos meses, recebemos diariamente pelo menos 15 feridos por balas perdidas durante confrontos entre gangues", acrescenta.

"O HUEH oferece serviços que só ele pode fornecer no país. Atendemos todas as camadas sociais", conclui o diretor executivo.

·        8 anos de promessas

O terremoto de 12 de janeiro de 2010 deixou uma marca profunda no Haiti, afetando tanto as pessoas quanto a infraestrutura do país.

Mais de 50 hospitais e centros de saúde foram destruídos ou ficaram inutilizáveis.

Quase metade da população de Porto Príncipe teve que procurar refúgio em locais temporários, vivendo em condições sanitárias precárias.

Antes do terremoto de 2010, o HUEH tinha 700 leitos e atendia mais de 10 mil novos pacientes por mês.

O terremoto causou danos significativos nas instalações, forçando os serviços a operar em condições precárias, como tendas e abrigos temporários.

À época, França e Estados Unidos ofereceram uma ajuda de US$ 25 milhões (R$ 130 milhões ao câmbio atual) cada para reconstruir o HUEH.

O Haiti contribuiu com US$ 33 milhões.

No total, US$ 83 milhões foram destinados à iniciativa.

A reconstrução começou em junho de 2014 e terminou mais de oito anos depois, em janeiro.

Embora o ex-primeiro-ministro Jacques Guy Lafontant tenha estabelecido 2017 como prazo, os governos seguintes não deram continuidade ao projeto.

O setor de saúde haitiano, tanto público como privado, já havia sido negligenciado por governos anteriores com investimentos escassos e falta de prioridade no orçamento nacional.

Além do projeto de reconstrução do HUEH, a obra do hospital Simbi continental, financiada pelo Fundo Petrocaribe desde 2014, continua estagnada, assim como diversos outros projetos.

Os últimos pacientes do HUEH, como Pierre Laouard, não têm para onde ir agora.

Eles vivem nas ruas ou em tendas montadas pela ONU após o terremoto de 2010, sem cuidados para suas doenças e expostos à violência descontrolada do centro da capital do Haiti.

 

Ø  O desespero dos haitianos sem perspectivas para fim da violência

 

"Porto Príncipe está em pânico", escreveu um amigo em uma mensagem de texto enviada da capital haitiana, Porto Príncipe.

Os moradores de Petionville, uma área mais rica da cidade, estão em choque depois do dia mais violento até agora na crescente crise de segurança do país.

Mais de uma dúzia de corpos baleados foram visto nas ruas – as vítimas do mais recente ataque de gangues.

Além da onda de assassinatos, a casa de um juiz também foi atacada, no que foi visto como uma mensagem clara para as elites do país que disputam o poder.

Tudo isso ocorreu naquela que é supostamente a parte segura da cidade.

A diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Catherine Russell, chamou a situação no Haiti de "horrível" e comparou a criminalidade ao filme pós-apocalíptico Mad Max.

A onda mais recente de violência em Porto Príncipe é certamente um lembrete — se é que um lembrete seria necessário — de que o Haiti segue mais próximo da anarquia do que da estabilidade.

Nesse cenário, a ONU também estimou que, devido ao fechamento de tantos hospitais na capital, cerca de 3 mil mulheres grávidas corriam o risco de ter de dar à luz sem cuidados médicos.

Visitamos a maternidade do hospital público do Cabo Haitiano. Os primeiros choros do bebê Woodley, de apenas um dia de vida, tinham motivações iguais aos de bebês recém-nascidos em qualquer lugar: por comida e por conforto.

No entanto, como acontece com a maioria das crianças que nascem lá, ela crescerá e descobrirá que esses itens essenciais estão longe de ser garantidos no Haiti.

Deitada em uma cama próxima, Markinson Joseph estava se recuperando do parto de um menino, há dois dias. Por meio de um intérprete, ela me disse que mudaria com seu bebê do país se tivesse oportunidade.

"Mas eu e meu marido não temos dinheiro para fugir", disse ela.

·        Gangues controlam estradas

A obstetra do hospital, Mardoche Clervil, mostrou à reportagem as enfermarias escuras e vazias e disse que o controle das gangues nas estradas que dão acesso à Porto Príncipe estava dificultando o fornecimento de combustível suficiente para manter as luzes acesas, ou os ventiladores de teto em funcionamento.

Mais importante ainda, a situação também afetou o fornecimento de medicamentos e o equipamento médico necessário.

Ela disse que as mulheres grávidas viajaram de Porto Príncipe para dar à luz na relativa segurança do Cabo Haitiano.

"Como você pode ver, temos leitos e pessoal suficiente", disse, apontando para a equipe de enfermeiras e estagiários atrás dela. "Mas muitas vezes os pacientes simplesmente não conseguem chegar até nós, seja por causa dos seus problemas socioeconômicos ou por causa da violência."

Para algumas pacientes, as consequências foram terríveis.

Louisemanie estava grávida de oito meses e meio quando deu entrada no hospital. A essa altura, ela tinha pressão arterial alta e perdeu o bebê.

É possível tratar pré-eclâmpsia se ela tiver sido devidamente monitorada ou se o bebê tiver nascido precocemente. Louisemanie estava perfeitamente consciente de que sua perda era evitável.

"Eles me medicaram desde o início de janeiro, mas fui transferida entre três hospitais diferentes", disse ela, o que significa que sua gravidez, com complicações, foi deixada ao acaso.

Em todo o país, as necessidades humanitárias são agora críticas e a resposta da ajuda até o momento tem sido dolorosamente lenta.

Itens essenciais como comida, água e abrigo seguro são cada vez mais difíceis de encontrar para milhões de pessoas.

Em Porto Príncipe, Farah Oxima e os seus nove filhos foram forçados a abandonar a casa onde viviam, num bairro violento controlado por gangues, e ir para outra parte da cidade. Eles são apenas algumas das mais de 360 ​​mil pessoas deslocadas internamente no conflito.

Enquanto enchia galões de plástico com água de um cano na rua, a mulher de 39 anos disse que estava com dificuldade para ter acesso à comida e à água para seus filhos pequenos.

"Não sei o que fazer, estou vendo o país entrar em colapso", disse.

Para ela, a ideia de que um conselho de transição possa impor alguma forma de ordem ou segurança no curto prazo parece completamente impossível.

"Só Deus pode mudar este lugar porque de onde estou sentada não consigo ver de onde virá qualquer outra mudança."

 

Fonte: BBC News Mundo em Porto Príncipe, Haiti

 

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