terça-feira, 16 de abril de 2024

Na Guatemala, indígenas barram movimento golpista enquanto lutam por reparação

Em fevereiro, um julgamento histórico ocorreu na Guatemala, país da América Central onde cerca de 44% dos quase 15 milhões de habitantes se identificam como indígenas. Um tribunal na capital condenou a sete anos e dez meses de prisão seis militares envolvidos no massacre de cinco civis indígenas da etnia maia k’iche, alvejados em 2012 enquanto protestavam por melhorias sociais em uma rodovia, na região oeste do país. 

A condenação simbólica marca a disputa dos indígenas contra a impunidade do Estado em uma série de violações que, no seu auge, ficaram conhecidas como o “Holocausto Silencioso”. O termo é usado para descrever a matança de civis, em sua maioria indígenas Maias, durante a violenta Guerra Civil do país ocorrida entre 1960 e 1996.

As condenações, contudo, também foram percebidas como uma derrota para o movimento indígena. Isso porque os juízes absolveram, no mesmo julgamento, um coronel e um soldado que respondiam por crimes de “execução extrajudicial”. O delito pode gerar penas de até 30 anos de prisão, segundo o Código Penal da Guatemala.

Em anos anteriores, o alto militar absolvido, Juan Chiroy, chegou a ser formalmente responsabilizado pelo Ministério Público do país por ordenar que agentes disparassem contra os manifestantes. A decisão de fevereiro é vista como uma reviravolta judicial, já que o tribunal entendeu que não há provas suficientes para condenar o coronel.

“É uma forma de racismo”, descreveu Edin Rafael Tzul, presidente dos 48 Cantões de Totonicapán, influente entidade de quase 500 anos que integra comunidades k’iche e conta com representantes em diferentes níveis distritais e municipais da região.

Mesmo com esse longo histórico de violência sofrida, como em países latino-americanos como a Bolívia e o Equador, a Guatemala vê organizações originárias como os “48 Cantões” exercerem um papel de destaque em diferentes acontecimentos da vida política. 

Um dos exemplos mais importantes aconteceu em 2023, quando, sob a liderança do grupo de Totonicapán, diferentes entidades originárias tomaram as ruas da capital para protestar a favor de Bernardo Arévalo, o atual presidente de centro-esquerda do país e dono de uma agenda que promete a inclusão de grupos marginalizados. 

Empossado no cargo em 14 de janeiro deste ano, Arévalo passou todos os meses de transição desde sua vitória no segundo turno, em agosto passado, sob forte ameaça: seu partido, o progressista Semilla, chegou a ser suspenso após acusações não comprovadas de ter cometido irregularidades de registro eleitoral. Todas essas ações, criticadas por juristas e por diferentes entidades internacionais, foram movidas pelo Ministério Público da Guatemala. 

Esse mesmo MP, cuja alta cúpula é vista como aliada a setores políticos da direita, é alvo de críticas desde antes da vitória de Arévalo: em 2021, o órgão já era citado entre “atores corruptos e antidemocráticos”, conforme consta em relatórios de 2021 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Arévalo, ao lado da Organização dos Estados Americanos (OEA), sempre classificou as manobras contra si de “uma tentativa de golpe de Estado”, enquanto as organizações indígenas prometiam que ocupariam as ruas até que a cerimônia de posse fosse realizada, e que o novo governo de esquerda iniciasse sua gestão. 

Apesar das pressões vindas de diversos setores civis e políticos de dentro e fora da Guatemala, a procuradora-geral Consuelo Porras – considerada por analistas o pivô da crise judicial e alvo de sanções internacionais por liderar ações que “minam a democracia e o Estado de direito” – nega todas as acusações. Segundo a procuradora, as investigações contra o Semilla de Arévalo ocorrem dentro da legalidade e todas as denúncias contra sua gestão à frente do Ministério Público são fruto de “campanhas de desprestígio e desinformação”. Ela tomou posse como procuradora geral em 2018.

·        O caminho do holocausto indígena na Guatemala

Muito antes do julgamento recente, o processo político que faria eclodir o genocídio de indígenas na Guatemala, especialmente entre 1981 e 1983, não se limita ao início do conflito civil, datado, oficialmente, a partir da década de 1960. 

“De meados do século 16 até 1944, a população indígena foi forçada a trabalhar gratuitamente em infraestruturas públicas e em fazendas privadas de café. Dentro das fazendas, esses grupos viviam sob as regras locais, e não as estatais, com episódios frequentes de violência, estupro de mulheres, entre outros elementos”, descreve o historiador guatemalteco Rodrigo Véliz Estrada, que estuda a dinâmica do autoritarismo centro-americano e é pesquisador do tema na Universidade Livre de Berlim.

Ele entende que a violência histórica é “parte do processo de invasão espanhola” nas Américas, iniciado no final do século 15, e que submeteu o território maia ao domínio colonial até 1821, quando os atuais países latino-americanos começaram a conquistar a independência. Apesar de se tornar uma nação soberana e livre da Espanha desde aquele período, a Guatemala viu a lógica de dominação e violência se transferir aos círculos de poder econômico durante todo o século 20.

O ano de 1944, citado por Estrada, é considerado um ponto de virada na história da Guatemala, e seria futuramente usado como o pretexto para o aumento da repressão a grupos étnicos originários. Foi nesse ano que se iniciou a chamada “Revolução de Outubro”, um movimento cívico-militar que reuniu demandas de diversos grupos sociais, movimentos de trabalhadores e militares com visão reformista para derrubar o governo golpista do general conservador e pró-EUA Federico Ponce Vaides.

Durante toda a década seguinte, os chamados anos de “primavera” deram abertura para a criação de uma série de bases democráticas inéditas na Guatemala – entre os exemplos mais famosos estão a realização de eleições livres, avanços trabalhistas e até leis de reforma agrária que redistribuíram terras entre as classes mais desfavorecidas.

“A Revolução de Outubro foi uma resposta aos governos oligárquicos que estiveram no poder desde o final do século 19”, ressalta Estrada.

Essa etapa de progresso, no entanto, foi interrompida abruptamente pelo golpe de Estado de 1954, contra o então presidente Jacobo Árbenz, um militar reformista e o segundo de uma curta leva de presidentes progressistas. Segundo documentos desclassificados da CIA, o serviço de inteligência estadunidense, e informações disponíveis nos portais do Departamento de Estado dos EUA, o levante conservador contou com apoio bélico, estratégico e logístico do governo norte-americano.

O golpe também teve amparo financeiro da United Fruit Company, atual Chiquita Brands, companhia dos EUA que monopolizou a produção de frutas nas Américas naquele período – e ajudou a instalar governos de direita que não prejudicassem seus negócios com obrigações fiscais ou trabalhistas.

Ditadura levou a cabo matança de indígenas

No pós-golpe, o assassinato de indígenas correu indiscriminado. Em alguns casos, eles foram “confundidos” com guerrilheiros e dizimados por esquadrões da morte, formados por militares de extrema-direita. Embora alguns deles efetivamente tenham pegado em armas na época, milhares de outros se converteram em alvo de uma sistemática limpeza étnica, sob a acusação de estarem colaborando com os movimentos armados de viés socialista.

O ponto crítico da brutalidade aconteceu no início dos anos 1980, tempo em que governou o ditador Efraín Ríos Montt.

O general Montt foi alvo de repúdio internacional por suas ações: ele chegou a ser acusado e até mesmo condenado em 2013 por crime de genocídio, fato inédito para um governante na América Central e celebrado por organizações internacionais como a Human Rights Watch (HRW) como um marco legal.

Contudo, repetindo um histórico de impunidade de ditadores latino-americanos, o militar viu sua sentença ser anulada pela Corte Constitucional (CC) do país em 20 de maio de 2013, apenas dez dias depois de ser proferida.

Já em 2015, os tribunais decidiram que o autocrata deveria passar por um novo julgamento, enquanto a defesa argumentava que o réu não tinha condições de enfrentar o processo por sofrer de demência senil – alegação usada durante os processos contra o ditador chileno Augusto Pinochet, que foi apelidada de “síndrome de Pinochet”. 

O general guatemalteco morreria impune aos 91 anos, em 2018. 

Conforme consta na sentença proferida em 2013, uma estimativa levada em conta por entidades globais como a ONU e a Anistia Internacional, nos anos sob o ditador Ríos Montt (1982-1983), mais de 1,7 mil indígenas maias da comunidade de Ixil, que dentro do território guatemalteco se estende majoritariamente pelo departamento de Quiché, perto da divisa com o México, foram trucidados por forças da ultradireita.

O pretexto para os governos militares era que a área montanhosa serviria de base para a operação de movimentos guerrilheiros, dando ao Exército e a milícias pagas por grandes proprietários de terra a desculpa para agir com o máximo de violência, conforme ficou estabelecido pela verdade histórica e em relatórios e investigações sobre a Guerra Civil.

“Pode-se argumentar que esta mudança na forma de repressão contra a população indígena teve caráter racista e de genocídio étnico”, explica o pesquisador. Durante toda a Guerra Civil, dados da Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH), que atuou no papel de comissão da verdade sob supervisão da ONU, estimam que mais de 200 mil civis, em sua larga maioria pessoas de etnias originárias, foram mortos, torturados e desaparecidos por forças do Estado. Em resposta ao ‘Holocausto Silencioso’, a CEH publicou um relatório em 1999 revelando que o Estado guatemalteco foi responsável por 626 massacres contra civis durante o quase 4o anos de conflito.

Em 1992, Rigoberta Menchú, uma liderança indígena quiché que se destacou na defesa dos direitos humanos de seu povo, chegou a ganhar o Nobel da Paz. Menchú, de enorme reconhecimento internacional, até tentou chegar à Presidência duas vezes, em 2007 e 2011, sequer atingindo 4% dos votos em todo o país.

O ciclo de governos de direita só seria interrompido em 2023, com a eleição de Arévalo, apoiado por Menchú. 

A jornada do novo mandatário até a posse em janeiro também conta com um paralelo histórico: o atual presidente é filho de Juan José Arévalo, o primeiro da dupla de governantes reformistas a chefiar a Guatemala durante a “Revolução de Outubro”. Como Árbenz, após o golpe de 1954, Arévalo ‘pai’ também acabou no exílio – por essa razão, Arévalo, o filho, nasceu no Uruguai. 

Para Menchú, que classificou de “histórico” o novo ciclo político, a chegada do governo Arévalo pode abrir espaço para novas pautas e maior participação para grupos originários, algo que pouco se viu apesar do papel dessas entidades ao longo da história.

 

Fonte: Por Lucas Berti, da Agencia Pública 

 

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