quarta-feira, 17 de abril de 2024

“Cash back”: Salomão expõe o escandaloso esquema de “recirculação de valores” criado pela Lava Jato

Na decisão em que afastou a juíza Gabriela Hardt de suas funções a partir desta segunda (15), o ministro Luís Felipe Salomão, corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), usou o termo “cash back” para explicar o escandaloso esquema de “recirculação de valores” criado no seio da Operação Lava Jato.

Segundo Salomão, o esquema consistiu em direcionar para a Petrobras parte dos recursos obtidos pela Lava Jato a partir de multas determinadas pelos procuradores às empresas ou pessoas físicas, em seus acordos de leniência ou delação premiada.

Na visão de Salomão, em posse dos recursos “devolvidos” pela Lava Jato, a Petrobras poderia fazer frente à tentativa dos procuradores, então liderados por Deltan Dallagnol, de criar, por exemplo, uma fundação privada turbinada com os recursos públicos decorrentes das multas.

•                 O exemplo da Fundação Lava Jato

Salomão ilustrou o esquema citando a famigerada Fundação Lava Jato. Naquele caso, os procuradores de Curitiba tentaram criar uma fundação privada usando parte da multa bilionária que a Petrobras aceitou pagar nos Estados Unidos para se livrar de ações em solo estrangeiro. O GGN expôs o escândalo e divulgou em primeira mão  os documentos dos acordos assinados com os americanos.

O acordo homologado por Gabriela Hardt para criar a fundação privada sob a batuta de Dallagnol e seus colegas do MPF previa a injeção de mais de 2 bilhões de reais, oriundos da devolução parcial da multa aplicada à Petrobras pelos EUA.

Nos demais casos, Salomão observou que desde os tempos em que Sergio Moro era o juiz da 13ª Vara Federal em Curitiba, ficou estabelecido pela Lava Jato que a Petrobras seria beneficiária única das verbas angariadas pelos procuradores a partir dos acordos de delação e leniência, ignorando o papel da União, que é a maior acionista da petroleira.

“No entanto, constatou-se – com enorme frustração – que, em dado momento, tal como apurado no curso dos trabalhos [da correição extraordinária na 13ª Vara], a ideia de combate a corrupção foi transformada em uma espécie de ‘cash back’ para interesses privados, ao que tudo indica com a chancela e participação dos ora reclamados”, destacou Salomão.

Ao falar em “recirculação de valores”, Salomão descreveu: “Tal procedimento caracterizou-se pelo atípico direcionamento dos recursos obtidos a partir da homologação de acordos de colaboração e de leniência exclusivamente para a Petrobras – classificada como vítima universal, desprezando a União e terceiros prejudicados pelo sistema de corrupção – com a finalidade de se obter o retorno dos valores na forma de pagamento de multa pela Petrobras às autoridades americanas, a partir de acordo sui generis de assunção de compromisso para destinação do dinheiro formalmente e originariamente prometido ao Estado Brasileiro – ou seja, dinheiro público – para fins privados e interesses particulares (fundação a ser gerida a favor dos interesses dos mesmos), sem qualquer participação da União.”

Os detalhes da correição ainda serão expostos ao plenário do CNJ nesta terça (16), mas Salomão já adiantou que Sergio Moro teve papel crucial no esquema, ao instaurar um procedimento ultra sigiloso para dar cabo do dinheiro angariado pela Lava Jato.

•                 Moro criou processo para movimentar o dinheiro

Salomão falou em “diversas irregularidades e ilegalidades ocorridas nos fluxos de trabalho desenvolvidos durante diversas investigações e ações penais” da Lava Jato, “especialmente no que se refere aos mecanismos de controle e prestação de contas nos autos da representação criminal nº 5025605-98.2016.4.04.7000/PR, procedimento instaurado de ofício e com grau máximo de sigilo – só com acesso do juiz e Ministério Público-, referentes aos repasses de valores depositados em contas judiciais à Petrobras, decorrentes dos acordos de colaboração premiada e de leniência homologados pelo juízo da 13ª Vara”.

O ministro identificou relação de “correspondência com a subsequente homologação [do acordo da Fundação Lava Jato], em janeiro de 2019, (…) entre força-tarefa e a companhia”.

O resultado da correição extraordinária da Lava Jato será levado ao plenário do CNJ nesta terça-feira (16). Além do relatório, Salomão pediu a inserção na pauta de três reclamações disciplinares relacionadas à Lava Jato: uma contra Moro e Gabriela Hardt; outra contra os desembargadores do TRF-4 (Loraci Flores, Thompson Flores e Danilo Pereira) que desacataram o STF, e uma terceira contra o desembargador Marcelo Malucelli.

 

                Principal prova contra Hardt, confissão mostra pressão e omissão de Dallagnol; leia trechos do depoimento

 

Em depoimento ao ministro Luís Felipe Salomão, corregedor do Conselho Nacional de Justiça, a juíza Gabriela Hardt – que deu continuidade ao trabalho de Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba – revelou as circunstâncias nas quais ela decidiu homologar o acordo para criar a famigerada “Fundação Lava Jato” em 2019.

O acordo e seus efeitos foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal, mas sua homologação – entre outras possíveis ilicitudes na conduta de Hardt – motivaram o afastamento da juíza de suas funções pelo CNJ nesta segunda (15).

O depoimento de Hardt à Corregedoria do CNJ – cujos trechos são reproduzidos pelo GGN abaixo – é uma das principais provas usadas por Salomão para afastar Hardt da magistratura e defender abertura de processo administrativo.

Na confissão, a juíza admite que foi pressionada por Deltan Dallagnol e procuradores da Lava Jato a homologar o quanto antes o acordo para gerar a Fundação Lava Jato. Para conseguir tomar a decisão oficialmente dentro de dois dias, ela recebeu antes, pelo WhatsApp, cópia da minuta do acordo.

Salomão condenou a informalidade nas tratativas e os erros cometidos por Hardt no tramitar do caso. “(…) quem, em sã consciência, concordaria em destinar bilhões de reais de dinheiro público para uma fundação privada, de maneira sigilosa e sem nenhuma cautela”, questionou o ministro.

Hardt: da pressão e omissão ao defeso por holofotes

De acordo com a confissão da juíza Gabriela Hardt [leia trecho abaixo], Deltan Dallagnol e seus colegas procuradores procuraram a juíza para dizer que ela deveria homologar o acordo da Fundação Lava Jato, e que a decisão deveria sair com máxima urgência.

“(…) o Ministério Público dizendo que se eu não decidisse, a gente ia perder dois bilhões e meio, e o Brasil ia deixar esses dois bilhões e meio nos Estados Unidos“, reportou Hardt.

Segundo ela, os procuradores de Curitiba disseram também que iria ficar “muito feio” para o Brasil se todo o dinheiro da indenização paga pela Petrobras ficasse somente nos Estados Unidos.

Hardt, então, decidiu pedir informalmente cópia da minuta do acordo que ainda não havia sido protocolado na 13ª Vara para fazer uma análise prévia. Quando finalmente foi protocolado, Hardt homologou o acordo em menos de 24 horas.

“E eu lembro que conversei… com… doutor DELTAN lá… com os meninos da força-tarefa. Eu falei: ‘olha! O que eu quero de vocês: publicidade ampla. Eu vou homologar, vocês divulguem isso o máximo possível […]. Porque o que eu vou fazer é trazer esse dinheiro pro Brasil”, relatou Hard.

Deltan queria que o Judiciário participasse da Fundação

A juíza ainda revelou no depoimento ao CNJ que nos planos de Deltan Dallagnol e seus colegas de MPF, a fundação privada com recursos públicos também teria influência do Judiciário na destinação dos recursos.

“Eles até falaram, no projeto de fundação, que teria participação do Judiciário, eu falei não, não. O juiz não vai participar da fundação. É a sociedade civil, o Ministério Público, que nem uma fundação normal.”

Contudo, na visão do Supremo Tribunal Federal, a fundação Lava Jato seria uma aberração, fruto de um acordo inconstitucional homologado por juízo incompetente (a 13ª Vara é criminal, e o acordo era de natureza cível).

O corregedor ainda observou que os procuradores de Curitiba não apenas exerceram pressão e fizeram tratativas informais para a juíza homologar o acordo, mas também omitiram uma série de documentos que mostrariam que o dinheiro deveria ter sido repassado à União, e não ao MPF.

Ao não levar todos os documentos aos autos, os procuradores conseguiram omitir outros problemas no processo, como “as diligências americanas referentes ao pedido para realização de oitivas de testemunhas no Brasil, bem como a fixação do valor da indenização pelas autoridades americanas (já que a aferição de valores se deu sem que o MPF apurasse, no Brasil, a conduta da empresa por meio de inquérito civil público), [ações que] foram executadas sem observância da legislação brasileira (outro fato de extrema gravidade)”.

A urgência sustentada pelo time de Dallagnol tampouco fazia sentido, mas Hardt foi incapaz de observar que o pedido de homologar a Fundação Lava Jato só surgiu quatro meses após a Petrobras fechar acordo nos EUA.

•                 Desdobramentos para Hardt

A confissão de Gabriela Hardt, feita em depoimento dado em junho de 2023, foi descrito por Salomão como “a principal fonte de informação” para lastrear a representação contra a juíza.

Além do caso da Fundação Lava Jato, o CNJ apontou que Hardt deu continuidade ao método caótico e sigiloso de Sergio Moro de gerir os recursos da Lava Jato, angariados a partir de delações e acordos de leniência, sem prestação de contas nem transparência.

Para Salomão, os atos de Hardt configuram “desrespeito à coisa pública e incorreta prevalência do interesse privado sobre o interesse público, evidenciando a violação (…) dos princípios constitucionais da legalidade e da moralidade e, sobretudo, do princípio republicano, já que a homologação do acordo de assunção de competência pela reclamada autorizou o redirecionamento de recursos que eram inicialmente destinados ao Estado Brasileiro (conforme acordo firmado pela Petrobras com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América) para atender a interesses privados, especialmente do então Procurador da República Deltan Dallagnol.“

Além disso, os atos atribuídos à magistrada recaem em tipos penais como peculato, desvio, prevaricação, corrupção privilegiada ou corrupção passiva, além das “infrações administrativas graves”, que serão discutidas no plenário do CNJ a partir de terça (16).

•                 Sobre a Fundação Lava Jato

O acordo homologado indevidamente pela juíza Gabriela Hardt foi negociado em paralelo entre o Ministério Público Federal no Paraná e a Petrobras. O documento previa a destinação a mais de R$ 2 bilhões para a fundação privada que ganhou o apelido de Fundação Lava Jato. A verba bilionária era fruto da devolução parcial de uma multa que a Petrobras foi obrigada a pagar aos órgãos dos Estados Unidos para se livrar de processos criados justamente na esteira da Lava Jato.

No despacho desta segunda (15), Salomão usou a expressão “cash back” para falar desse método dos procuradores de Curitiba, que com suas denúncias ou colaboração com autoridades estrangeiras, faziam empresas investigadas responder a processo em outros países, que terminavam com aplicação de multas bilionárias e a premissa de que parte dos recursos deveriam retornar ao Brasil – sob a batuta dos procuradores, e não da União.

Quando fecharam acordos de não persecução com a Petrobras, os órgãos dos EUA sinalizaram que parte da multa deveria retornar ao Brasil em benefício das “as autoridades brasileiras”. Mas a equipe de Deltan Dallagnol decidiu traçar um destino diferente, na tentativa de impedir que os recursos públicos fossem parar no cofre da União.

>>>> Confira, abaixo, os trechos já liberados pelo CNJ do depoimento da juíza Gabriela Hardt:

“Os procuradores da força-tarefa vieram conversar comigo sobre esse caso. Primeiro informalmente, para me notificar: “olha, vai vir nos próximos dias um pedido nosso para homologar um acordo que a gente tá celebrando com a Petrobras, porque a Petrobras, lá nos Estados Unidos, fez um acordo [trecho inaudível] e a gente conversou com as autoridades americanas” … assim, isso é o que me lembro, vai ter coisas que não vou lembrar os detalhes… “que ia ficar muito feio para o Brasil todo o dinheiro da indenização ir para os Estados Unidos. A gente entende que parte desse valor tem que ser revertido no Brasil” [prossegue expondo a explicação dada pelos procuradores]. (…).

Eu falei: mas então me dá um esboço, como é que é isso… se é tão urgente assim, que que eu vou fazer, não sei, nunca vi… e aí eles me mandaram um esboço do acordo, me pediram por favor para eu não mostrar para ninguém, que era sigiloso… e eu li aquilo [prossegue expondo o que havia de fundo similar: fundo de Mariana, fundo de dano ambiental da Petrobras]…

Conversei com os colegas antigos, o Josegrei, os outros colegas do crime que eram mais antigos e expliquei o que o Ministério Público queria de mim, porque foi naqueles quatro meses caóticos {refere-se a depoente a um período em que atuou como única magistrada na 13ªVara]… e o Ministério Público dizendo que se eu não decidisse a gente ia perder dois bilhões e meio e o Brasil ia deixar esses dois bilhões e meio nos Estados Unidos.

Conversei com os colegas mais antigos: “eu acho que é razoável”, “eu acho que é razoável”, daí veio o pedido formalmente no processo [prossegue a depoente expondo seu processo decisório]. E eu lembro que conversei… com… doutor DELTAN lá… com os meninos da força-tarefa. Eu falei: olha! O que eu quero de vocês: publicidade ampla. Eu vou homologar, vocês divulguem isso o máximo possível […]. Porque o que eu vou fazer é trazer esse dinheiro pro Brasil, (trecho inaudível)… que vocês estão falando, vou homologar.

Eles até falaram, no projeto de fundação, que teria participação do Judiciário, eu falei não, não. O juiz não vai participar da fundação. É a sociedade civil, o Ministério Público, que nem uma fundação normal […].

Troquei mensagem… poucas, eu acho que troquei. Eu acho que até esse esboço de fundação eu acho que veio por mensagem, tá? Nunca orientei… as mensagens que eu já vi da spoofing [refere-se a investigação que apurou o acesso indevido a mensagens de Telegram de pessoas com atuação na operação Lava Jato]… eu tenho acesso às mensagens, que já pediram minha suspeição na vara porque o DELTAN teria dito {tenta se recordar]… “a juíza tá cobrando que não veio as denúncias”[…].

[Ministro pergunta:] trocava mensagem com eles?

“Já troquei, ministro. Já troquei. Mas, assim, foi muito eventual. Eu pedi para não fazerem isso. Mas já troquei sim.”

[Ministro pergunta:] sobre processo?

- Não, assim, é… era esse da fundação Lava Jato, era um que me lembro… esse da fundação era um que eu me lembro. Acho que já veio mensagem “ah, acho que a gente precisa conversar sobre isso”, daí eu falava “agenda um horário”. Esse tipo de coisa, sim.

 

                Associação defende revogação de medida que afastou juízes federais

 

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defendeu, nesta segunda-feira (15),  a revogação da decisão do corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, que afastou das funções a juíza federal Gabriela Hardt, sucessora de Sergio Moro no comando da Operação Lava Jato, e de mais um juiz e dois desembargadores.

Em nota à imprensa, a Ajufe diz que recebeu a decisão com surpresa. Para a associação, a medida só poderia ser tomada pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

“O órgão com a competência natural para deliberar por tal afastamento é o plenário do Conselho Nacional de Justiça, tanto que [está] pautada a matéria para julgamento na sessão de amanhã, dia 16/04/2024, revelando-se inadequado o afastamento por decisão monocrática e na véspera de tal julgamento”, afirma a associação.

Além disso, a Ajufe também defende a atuação dos magistrados. “Os magistrados e magistrada afastados pela decisão monocrática acima referida possuem conduta ilibada e décadas de bons serviços prestados à magistratura nacional, sem qualquer mácula nos seus currículos, sendo absolutamente desarrazoados os seus afastamentos das funções jurisdicionais”, conclui a associação.

Para afastar a juíza, Luis Felipe Salomão afirmou que a Gabriela Hardt cometeu irregularidades em decisões que autorizaram o repasse de cerca de R$ 2 bilhões oriundos de acordos firmados com os investigados da Lava Jato, entre 2015 e 2019, para um fundo que seria gerido pela força-tarefa da operação. Os repasses foram suspensos em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A decisão também indica que Gabriela Hardt pode ter discutido os termos do acordo “fora dos autos” e por meio de aplicativo de mensagens WhatsApp.

A assessoria de imprensa da Justiça Federal em Curitiba informou que a juíza não vai se manifestar sobre o afastamento.

 

Fonte: Jornal GGN/IstoÉ

 

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