Planejamento do uso da terra: o caso do
Brasil
A regulamentação da
posse da terra não é o único poder disponível ao Estado para influenciar a
forma como as pessoas utilizam a terra. O planejamento e o zoneamento do
uso da terra são dois mecanismos intimamente relacionados que as nações
pan-amazônicas utilizam para promover o desenvolvimento sustentável em suas
fronteiras florestais e agrícolas. Assim como as políticas que regem a
infraestrutura, a agricultura e a posse da terra, esses programas técnicos
evoluíram em resposta às mudanças nas forças econômicas e sociais dos países,
bem como às prescrições de agências multilaterais e grupos da sociedade civil
que buscam proteger a biodiversidade da Floresta Amazônica.
Nas décadas de 1970 e
1980, a maioria dos programas de planejamento do uso da terra usava uma
metodologia desenvolvida pelo Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos (USDA) que identifica o uso ideal da terra com base no clima e no
solo e que estratifica regiões e paisagens em categorias que vão da proteção
total à agricultura intensiva. Conhecida nos Estados Unidos como Land
Capability Classification (Classificação da Capacidade da Terra), na América
Latina ela foi promovida pela USAID como Capacidad de Uso Mayor de la Tierra
(CUMAT).
Um sistema semelhante
desenvolvido pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
(IICA) e patrocinado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação (FAO) era conhecido como Zonificación Agroecológica (ZAE). Os
detalhes técnicos e os resultados desses estudos eram de altíssima qualidade,
mas sofriam de um defeito fundamental: não incluíam um processo participativo,
o que os levava a ignorar as tendências econômicas já em andamento e os usos
tradicionais que poderiam não coincidir com a melhor opção tecnológica para o
uso da terra.
Essas limitações logo
se tornaram aparentes, e a estrutura da ZAE foi modificada e renomeada
como Zonificación Ecológica Económica (ZEE), que usa a análise técnica como
linha de base, mas incorpora critérios sociais e econômicos adicionais. Mais
importante ainda, incluiu um processo participativo para garantir que as
aspirações de diferentes grupos de partes interessadas fossem consideradas,
incluindo comunidades indígenas e tradicionais, mas também pequenos
agricultores e a agroindústria. Todos os países da Pan-Amazônia adotaram
alguma variante da metodologia do ZEE e a incorporaram em seus processos
regulatórios para reger o planejamento do uso da terra (recomendações) e
as estruturas normativas (zoneamento).
A eficácia desses
estudos é decididamente mista. Os colonos e os fazendeiros corporativos
usaram os componentes técnicos para orientar seus investimentos, mas a maior
parte do desmatamento é impulsionada pelo desenvolvimento da infraestrutura,
pela demanda por commodities e pela especulação de terras. Apesar disso, o
processo do ZEE coincidiu com programas de criação de sistemas de áreas
protegidas e apoiou reivindicações territoriais de comunidades indígenas.
Governos, ONGs e instituições multilaterais continuam investindo nesses
estudos, argumentando que eles são essenciais para descobrir um caminho para o
desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
·
O ZEE na Amazônia brasileira
A história do ZEE no
Brasil começou em 1981, quando o Congresso aprovou a Lei de Política Nacional
do Meio Ambiente, que reconheceu o “zoneamento ambiental” como uma ferramenta
reguladora para promover o uso racional do solo e a proteção dos ecossistemas.
Em 1990, houve a formação de um grupo de trabalho para analisar as diferentes
metodologias e estabelecer uma abordagem padrão para a Amazônia Legal. A
responsabilidade foi transferida para os estados em 1994 e incorporada como um
componente-chave do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais
(PPG7). A metodologia foi formalizada como um procedimento normativo por meio
de decreto presidencial em 2002, quando o governo estabeleceu uma comissão
federal para coordenar o processo (Comissão Coordenadora do Zoneamento
Ecológico-Econômico do Território Nacional – CCZEE) e convocou um grupo de
trabalho para acelerar sua implementação (Consórcio ZEE Brasil). Em 2000, o ZEE
foi incorporado ao processo de planejamento estratégico quadrienal em nível
estadual (Plano Plurianual – PPA).
Em 2010, o Ministério
do Meio Ambiente publicou um Macro ZEE (1:1.000.000) da Amazônia Legal derivado
de estudos preliminares a nível estadual que forneceram a primeira visão
oficial do futuro da Amazônia Legal. O Código Florestal de 2012 reforçou a
importância do ZEE ao estipular seu uso para a implementação das principais
disposições e obrigou o estado a produzir uma versão mais
detalhada (1:250.000).
Em outubro de 2021,
Acre, Pará e Rondônia haviam concluído as versões finais que foram aprovadas
pelas autoridades federais, enquanto Maranhão, Tocantins e Roraima tinham
versões preliminares em análise. Amazonas e Amapá concluíram estudos para
sub-regiões selecionadas que estão mais expostas a mudanças no uso da terra e
grilagem de terras. Os critérios de classificação geralmente se enquadram
em uma das três categorias: (1) consolidação de paisagens de produção
existentes; (2) uso sustentável de recursos naturais; e (3) áreas protegidas e
terras indígenas.
A primeira categoria
sempre inclui paisagens em que predominam a agricultura e a pecuária em larga
escala, mas pode incluir fazendas de pequena escala (Maranhão, Rondônia e Pará)
ou meios de subsistência baseados em florestas próximas às principais rodovias
(Acre e Amazonas). A segunda categoria normalmente contém paisagens que apoiam
meios de subsistência baseados na floresta, incluindo aquelas dentro de
assentamentos do INCRA do tipo PAAD, mas também propriedades florestais
privadas (Amazonas e Roraima) e comunidades de pequenas propriedades (Mato
Grosso). A terceira categoria inclui unidades de conservação em todas as
jurisdições, inclusive aquelas que apoiam meios de subsistência sustentados na
floresta e, em alguns casos, a criação de gado.
Várias versões também
reconhecem áreas frágeis que requerem um manejo especial (Mato Grosso,
Amazonas) e preveem um processo acelerado para analisar e resolver questões
relacionadas à posse da terra (Acre, Roraima). As diferenças refletem as
peculiaridades de cada estado e a heterogeneidade social e econômica da
Amazônia brasileira.
O processo do ZEE é
visto com bons olhos no Brasil, onde tem impacto no planejamento federal e
estadual, como o processo de investimento do PPA e a análise ambiental
supervisionada pela agência de proteção ambiental. A primeira edição do ZEE
coincidiu com um esforço paralelo para proteger grandes áreas da Amazônia e
forneceu critérios técnicos e suporte legal para a criação de dezenas de
unidades de conservação e territórios indígenas. Por exemplo, quatorze unidades
de conservação e territórios indígenas foram criados no Acre após a conclusão
de seu ZEE preliminar, enquanto no Pará foram reservadas 44 unidades desse
tipo.
As iniciativas de
conservação teriam ocorrido de forma independente, mas, ao integrá-las em uma
análise multissetorial com considerações explícitas sobre usos alternativos da
terra, o Estado brasileiro evitou muitos conflitos futuros.
Os documentos do ZEE
apoiam os esforços para interromper ou desacelerar o desmatamento, fornecendo
maior clareza geográfica sobre quais paisagens estão fora dos limites para o
desenvolvimento agrícola e, ao mesmo tempo, agindo como uma referência legal que
reduz as oportunidades de grilagem de terras. As entidades financeiras do
setor público, como o Banco do Brasil, são obrigadas a analisar os projetos de
investimento e garantir que eles estejam em conformidade com as disposições do
ZEE regional. Esses planos têm amplo apoio público porque – exceto no estado do
Mato Grosso – a consulta pública incorporou as aspirações das partes
interessadas.
A secretaria ambiental
de Mato Grosso concluiu um ZEE detalhado em 2008, mas suas disposições foram
veementemente contestadas pelo agronegócio. O lançamento do ZEE coincidiu com
boicotes internacionais que visavam o estado por seus sistemas de produção ligados
ao desmatamento. O plano de zoneamento teria complicado ainda mais a imagem do
setor ao rotular as fazendas estabelecidas na década anterior como
insustentáveis, especialmente aquelas na bacia hidrográfica superior do rio
Xingu. Também teria restringido a futura expansão do modelo de produção de soja
e milho para pastagens anteriormente desmatadas na faixa norte dos municípios e
no vale do Araguaia, próximo à fronteira com o Pará.
A legislatura estadual
encomendou um estudo alternativo e aprovou uma versão radicalmente diferente em
2011. No entanto, o estudo revisado não aderiu às diretrizes federais. Ele foi
contestado no tribunal pelo promotor público e rejeitado pelo CCZEE em 2012. O
governo estadual, que é obrigado por lei a promulgar um ZEE, iniciou outro
estudo que produziu uma terceira versão em 2018, a qual basicamente dividia a
diferença entre as duas versões anteriores.
A terceira versão foi
rejeitada por instituições que representam agricultores, fazendeiros,
madeireiras e industriais. Segundo os críticos, as disposições de zoneamento
ameaçariam a subsistência de milhares de famílias rurais porque elas: (1)
rotulariam ~20% das terras agrícolas existentes como não sustentáveis; (2)
limitariam o potencial de ~69% das pastagens existentes a serem convertidas em
agricultura intensiva; e (3) criariam obstáculos ambientais para ~78% dos
sistemas de transporte a granel propostos. A legislatura estadual criou uma
comissão especial em junho de 2021 para analisar a proposta.
Fonte: Mongabay
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