A normalização do discurso autoritário e da linguagem de violência
A violência e o autoritarismo tornaram-se uma
potente arma do neoliberalismo contra o diálogo civilizado no contexto político
contemporâneo e poderosas ferramentas de manipulação frente à crescente
necessidade de mudanças sociais. Inspirando-se nos Estados Unidos – onde Trump
e os seus seguidores inundam a cultura norte-americana com mentiras e fake news
–, os populistas de extrema direita no Brasil, Argentina, Peru e diversos
outros países da América Latina e do mundo utilizam falsas alegações sobre
fraude nas eleições para minar o poder do voto e da própria democracia,
instalando uma cultura política baseada no medo, intimidação e violência.
Como salientou a romancista e ativista dos direitos
civis Toni
Morrison em seu discurso vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, a retórica da violência é uma língua morta que resulta em sérias
consequências sociais. É uma linguagem que “frustra ativamente o intelecto,
paralisa a consciência, suprime o potencial humano… não pode formar ou tolerar
novas ideias, moldar outros pensamentos, contar outras histórias e nem
preencher silêncios desconcertantes”.
Esse é um discurso que emerge de cadáveres vivos,
cujas bocas estão cheias de sangue. É a linguagem do nacionalismo bélico, da intolerância
e do ódio, que frequentemente alimenta o desrespeito pelas ideias divergentes,
o desprezo por seres humanos que não se enquadram na tradição do padrão moral
conservador de uma sociedade ancorada no patriarcado escravocrata moderno.
Estamos testemunhando, um tanto quanto perplexos, a intensidade dessa linguagem
crescer rapidamente ao longo dessas três primeiras décadas do século XXI. E
seus adeptos nem mesmo tentam mais disfarçar, ao contrário, exibem-se com
arrogância e ousadia nas redes sociais, proliferando livremente agressões
contra pessoas negras, trans ou imigrantes.
Essa retórica tóxica de violência tem se
multiplicado livremente e revelado sua força e capilaridade na sociedade por
meio da ascensão de grupos neofascistas, neonazistas e neorracistas. Um exemplo
explícito no Canadá foi o movimento dos caminhoneiros que ocupou a capital do
país por diversos meses e se autodenominou “comboio
pela liberdade”, assim também como os ataques ocorridos este ano
contra as manifestações de orgulho LGBTQIA+. Enquanto os ataques visando esses
eventos adotam uma retórica cada vez mais violenta, que inclusive equipara
pessoas trans a pedófilos, temos visto um aumento exponencial da violência
contra a comunidade queer em toda América do Norte.
Também nos Estados Unidos, a linguagem autoritária
e violenta está em plena exibição pública. Como exemplo, podemos citar o
ex-presidente Donald Trump que, para desviar a atenção de seus crimes que estão
em julgamento e das sentenças que o condenam, tem apelado para uma
radicalização ainda maior de seu discurso de ódio, sugerindo o fuzilamento de
pessoas famintas que furtarem mercados e de imigrantes ilegais que atravessarem
a fronteira com o México. O perigo dessa linguagem violenta agravou-se ainda
mais quando recentemente declarou na mídia que “os
imigrantes estão envenenando o sangue do nosso país”. Esses foram os mesmos dispositivos acionados Hitler, que também usava
as palavras “veneno” e “sangue” para difundir a retórica tóxica de pureza
racial que legitimou o extermínio de milhares de seres humanos.
Por toda a América Latina a normalização dessa
linguagem de violência e autoritarismo também tem se disseminado livremente
pelas redes sociais. Também no Brasil, esses grupos de extrema direita estão se
multiplicando sem qualquer tipo de controle por parte do poder público. Embora
sejam crimes previstos no código penal, o racismo, a homofobia e a misoginia
são discursos que se multiplicam rapidamente na sociedade e que acabam por
alimentar a violência na vida cotidiana. São frequentes os ataques às
lideranças indígenas, negras e aos representantes de movimentos LGBTQIA+, e em
decorrência disso, crescem exponencialmente os casos de homicídios de travestis
e pessoas trans, bem como o assassinato de jovens negros moradores das favelas.
A adesão desses políticos populistas autoritários
às mentiras e à violência tem produzido uma série implacável de choques e
conflitos no corpo social, enfraquecendo a política e os ideais democráticos.
Assim, a violência que antes era considerada inconcebível e relegada às margens
da sociedade, agora passa por algo normal. À medida que a retórica violenta se
acelera, aumentam os atos físicos de violência que permeiam a vida cotidiana,
afetando desde jornalistas e professores até os trabalhadores e empresários.
Essa linguagem agressiva é diretamente proporcional
ao aumento dos indicadores de homicídios, violências e conflitos sociais.
Também é desse mesmo modo, ou seja, por meio da normalização de uma retórica
desumanizadora, que militares e forças de segurança se sentem autorizados a
executar aqueles considerados criminosos, tratando-os como animais ferozes;
negam-lhes assim a humanidade para, em decorrência disso, exterminá-los. Isso
tem ocorrido nas periferias dos bairros negros dos Estados Unidos, dos bairros
de imigrantes no Canadá, nas favelas do Brasil, e agora também nas guerras
entre Israel e Palestina ou entre Rússia e Ucrânia.
O discurso de violência na política contemporânea
não serve para nada além de jogar mais lenha na fogueira do extremismo e da
guerra contra a democracia. Precisamos levar tudo isso mais a sério, pois à
medida que a linguagem da democracia é esvaziada pelo culto de líderes
autoritários, verificamos a força inexorável de um tempo histórico repleto de
ansiedade em massa e de catástrofes inimagináveis, produzidas por uma força
política de extrema direita, que é não só uma máquina autoritária e governada
por mentiras, mas que também tem um forte apelo à violência e ao medo,
agravando na sociedade uma sensação de crise perpétua. Desse modo, não há como
estabelecer um contrato social pacífico, não é possível promover um ambiente de
diálogo construtivo e jamais conseguiremos viver em paz, pois como afirma a
canção do Rappa, “Paz sem voz, não é paz, é medo”.
Se não conseguirmos, por meio de uma educação
crítica, fazer os nossos jovens compreenderem que a política é o melhor caminho
para negociar as disputas por poder e pactuar soluções consensuadas que
respeitem as diferentes vozes, culturas e modos de existência humana que
conformam nossa sociedade, então teremos que encarar as terríveis consequências
quando as sementes do autoritarismo enterrarem com cinzas a nossa democracia. E
tanto nos Estados Unidos durante o governo Trump; no Brasil do governo
Bolsonaro; e em Israel com o governo Netanyahu já não são poucas as tragédias
que se somam.
Para evitar catástrofes ainda piores, será preciso
ensinar que a história não está somente no passado, mas que também está se
refazendo a todo momento nas lutas do tempo presente. Se a resistência
democrática desistir de mobilizar a sociedade em torno da esperança por um
outro mundo possível, as flores de um futuro melhor irão murchar e aqueles com
a boca cheia de sangue e a língua repleta de ódio farão deles a nossa história,
e como já sabemos, ela será cheia de espinhos, com o mesmo cheiro pútrido do
genocídio Yanomami, repleta de sofrimento, dor e morte.
Sob tais circunstâncias, é crucial que estejamos
atentos à necessidade de combater cotidianamente a normalização de uma
linguagem que negue a esperança, e de condenar veementemente qualquer retórica
que siga difundindo o medo e a violência. É urgente que educadores, movimentos
sociais, lideranças comunitárias, intelectuais progressistas, trabalhadores e
políticos de esquerda convoquem a população para uma luta unificada contra a
contaminação virulenta da sociedade pelo discurso bizarro, autoritário,
violento. O tempo em que vivemos é demasiadamente perigoso para desistirmos da
luta. Para afastar esses pesadelos, precisamos ainda de muita coragem cívica,
educação crítica, e responsabilidade social, além do enorme desafio de
recuperar a linguagem de compaixão e respeito às diferenças, construindo
coletivamente novos sentidos para uma retórica contemporânea, capaz de
ressignificar não só a política, mas também a nossa própria existência enquanto
humanidade que habita o planeta.
Fonte: Por Henry Armand
Giroux e
Gustavo de Oliveira Figueiredo, no Le Monde
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