CONDENADAS SEM JULGAMENTO
A cada dois dias, pelo menos uma mulher é denunciada no Brasil por fazer
aborto. O que os números não mostram é que, mesmo não havendo condenação, mais
da metade delas recebem algum tipo de pena. Para afastar o risco da prisão e
manter a condição de ré primária, elas aceitam um acordo temporário que pode
incluir proibição de saída noturna, pagamento de multa, comparecimento
periódico em juízo e prestação de serviços à comunidade.
Em alguns casos, o juiz
impõe uma punição ampla. Relatórios que retratam esses casos trazem inúmeras
histórias. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Ana, moradora de Hortolândia,
no interior paulista, entre 2015 e 2017. Delatada à polícia pelo médico que a
atendeu no pronto-socorro após complicações pela ingestão de um medicamento
abortivo comprado pela internet, ela ficou dois anos proibida de “frequentar
bares, boates, salões de baile, casas de jogo e de prostituição”. Também
precisou comparecer em juízo a cada dois meses para “informar e justificar suas
atividades” e pedir autorização para se ausentar da cidade por mais de oito
dias.
Por se tratar de um crime
contra a vida, o aborto deve ser julgado pelo Tribunal do Júri. As Defensorias
Públicas de São Paulo e do Rio informam que não têm notícia de um processo
levado até essa instância no Brasil. Levantamentos das instituições mostram que
em mais de 60% dos casos as ações foram suspensas mediante o cumprimento de
requisitos estabelecidos pela Justiça.
Aplicável em crimes nos
quais a pena mínima seja igual ou inferior a um ano – como no caso da prática
do autoaborto, cuja detenção prevista é de 1 a 3 anos –, o benefício da
suspensão condicional do processo impede a realização do julgamento. Caso a
mulher aceite a determinação do instituto, a ação permanece suspensa por dois a
quatro anos. Depois desse período, e se cumpridas as condições previamente
estabelecidas no chamado período de prova, ela é extinta.
“Na prática, esses
requisitos funcionam como uma condenação porque a pessoa fica submetida a essas
regras por ao menos dois anos”, diz Nálida Coelho Monte, do Núcleo
Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da
Defensoria Pública de São Paulo.
De 36 ações penais
analisadas pelo núcleo em estudo publicado em setembro, 22 foram suspensas de
forma condicional pela Justiça paulista. Todas essas mulheres foram obrigadas a
comparecer em juízo de forma periódica, e dezenove delas foram proibidas de
frequentar “locais de reputação duvidosa”, como no caso de Ana.
Com exceção de apenas uma
das rés, elas também passaram a ter de comunicar viagens. “Essas condições
recaem sobre a vida da mulher, com um impacto importante. Se ela trabalha em
horário comercial, por exemplo, vai precisar pedir autorização para se ausentar
e ir ao fórum se apresentar”, destaca a professora Ana Paula Sciammarella,
coordenadora do projeto Diálogos sobre Justiça Reprodutiva (Dijure), uma
iniciativa feita em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio), da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sciammarella chama a atenção para o fato de que as condições definidas
pela Justiça não estão estabelecidas textualmente em lei nem seguem critérios
educativos. “Veja que nenhuma das regras está relacionada a planejamento
familiar ou atendimento psicológico. Elas não têm um caráter educativo, mas
punitivo.” Para quem as cumpre, a sensação é de uma pena condicional, que,
assim como foi ofertada, pode ser retirada.
Vera* chegou a ter um
mandado de prisão expedido pela Justiça do Rio por descumprir as condições da
suspensão de seu processo. Ela só não foi levada pelos policiais porque
defensoras públicas a localizaram antes e explicaram ao juiz o motivo das
faltas. “Depois do susposto aborto, ela ficou grávida de gêmeos e resolveu se
mudar do Rio para São Gonçalo. Como não tinha dinheiro para a passagem nem com
quem deixar os bebês, não pôde se apresentar ao fórum”, explica Ana Paula.
A antropóloga Debora
Diniz cita o filósofo Michel Foucault para definir o mecanismo da suspensão
condicional do processo em casos de aborto. “A mulher é forçada diante da lei a
enfrentar esse texto de que errou e que, portanto, precisa se lembrar disso. É
a força moralizadora da vigilância, do acompanhamento e do julgamento final.
Foucault tem essa expressão, sobre as práticas do Judiciário: ‘Você está
arrependida? Então me mostra, me mostra que você mudou!’.”
Professora da
Universidade de Brasília, Diniz afirma que o instrumento traz uma marca da lei
sobre algo que sequer deveria ser julgado. E, de acordo com um estudo do Nudem,
esse julgamento social começa já nos serviços de saúde.
“Em 64,86% dos casos que
levantamos houve quebra de sigilo médico, com entrega de relatório do
atendimento ou prontuário médico às autoridades policiais sem o consentimento
da paciente”, diz Nálida. “Na nossa avaliação essa oferta da suspensão é mais
problemática ainda tendo em vista que ela é resultado de denúncias feitas com
provas ilícitas ou com ausência de materialidade. Há casos nos quais não se
comprovou sequer que a mulher estava grávida ou qual foi o método abortivo”,
afirma a defensora.
Somente neste ano, pelo
menos duas decisões do Superior Tribunal de Justiça apontaram para a
ilegalidade de acusações baseadas em depoimentos de médicos, enfermeiros e
demais profissionais da área da saúde. A quebra do sigilo profissional
entre médico e paciente gerou nulidade de provas e consequente extinção dos
processos.
Um deles envolvia uma
moradora de Birigui, no interior paulista, que chegou a ser presa durante o
socorro médico prestado por funcionários da Santa Casa, tendo seu nome e
história expostos de forma pejorativa na cidade. Ao declarar seu voto a favor
do trancamento da ação, o ministro relator, Antonio Saldanha, da 6ª turma,
afirmou que o hospital deve ser um local de acolhimento para a saúde. A corte
também decidiu por encaminhar o caso ao Conselho Regional de Medicina de São
Paulo diante do descumprimento da lei por parte do profissional.
Nas instâncias inferiores,
no entanto, estereótipos morais e de gênero avançam. É o que mostra o
estudo Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na
Criminalização de Mulheres, produzido por professores e estudantes da
Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto. Nele, os autores citam um caso
paulista no qual o Ministério Público foi contra a concessão da suspensão
condicional, tendo em vista que a ré foi “desumana, insensível, torpe e cruel
contra um ‘ser totalmente inofensivo'”.
“Embora o número de
processos contra o aborto seja baixo em geral – em comparação com outras
infrações ou levando em conta o elevado número de abortos no Brasil –, as
decisões e os casos analisados tornam claro que a reprovabilidade social do
aborto no Brasil também pode afetar os julgamentos e a conduta de juízes e
juízas”, conclui o trabalho.
Pouco antes de ter seu
processo extinto em função do cumprimento das medidas relativas à suspensão
condicional, Ana teve um pedido de habeas corpus negado pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi em 2017. No acórdão, o magistrado (o hoje
desembargador Airton Vieira, candidato de Alexandre de Moraes para uma vaga no
STJ) afirmou que “o direito à vida, intra ou extrauterina, tal como ocorre
com o nascituro, deve prevalecer quando sopesado com qualquer outro direito
fundamental da gestante, como o direito sexual, reprodutivo ou mesmo o direito
de sua integridade física e psíquica. E finalizou seu voto declarando que
“nascemos para morrer; não para sermos mortos. Assassinados”.
Em 2015, no Rio, uma
vendedora de 19 anos teve o processo suspenso mediante uma condição extra e
pouco usual. Além de não poder se ausentar do estado onde reside por mais de
dez dias sem autorização, ter de comparecer mensalmente ao fórum para prestar
contas de suas atividades e manter seu domicílio atualizado, ela foi obrigada a
prestar oito horas mensais de serviço a crianças institucionalizadas ou
hospitalizadas.
O caso foi um dos
analisados pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, da
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2017. Comandado pela diretora do
órgão, Carolina Haber, o relatório Entre a morte e a prisão mostrou
a situação de vulnerabilidade das mulheres criminalizadas pela prática do
aborto, que não encontram no sistema de saúde a estrutura adequada para
atendê-las no caso de um aborto malsucedido. “Pelo contrário, sabendo que sua
conduta é ilícita, essas mulheres adiam ao máximo a decisão, apesar de não
demonstrarem em seus depoimentos que iriam desistir por esse motivo, agravando
o risco ao realizarem um aborto num estágio avançado da gravidez”, diz o
estudo.
De acordo com a última edição da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA),
de 2021, uma a cada sete mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto na
vida. O levantamento foi realizado em novembro de 2021 e ouviu 2 mil mulheres
em 125 municípios, sob coordenação da professora Debora Diniz.
Do grupo criminalizado, a
maioria delas são mulheres negras, pobres, de baixa escolaridade, têm até 29
anos e já são mães. Em São Paulo, como mostra o relatório do Nudem, são
solteiras e possuem as mais diversas profissões, como atendentes, balconistas,
operadoras de caixa, ajudantes de cozinha, feirantes, manicures, vendedoras,
professoras.
“A gente não tá falando
de mulheres criminosas típicas, porque para você poder se valer desse benefício
processual da suspensão você tem que cumprir alguns requisitos: ser ré
primária, ter endereço fixo… Isso já mostra pra gente o perfil dessas mulheres
que estão sendo incriminadas. Muitas delas têm trabalho fixo, inclusive”,
destaca Ana Paula Sciammarella.
A análise dos processos
paulistas, segundo o Nudem, mostra que as mulheres criminalizadas pelo
autoaborto estão em uma encruzilhada entre a prisão e o cemitério. “Verifica-se
que o cenário posto é de transformação de espaços de cuidado em espaços de
investigação, fato que torna ainda mais dramática a criminalização do aborto no
Brasil. Condicionar o atendimento médico de mulheres à confissão de crimes é
prática assemelhada à tortura”, menciona o relatório.
Antes de se aposentar, a
ex-ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, revelou ter o mesmo
entendimento. Em 22 de setembro, ao liberar seu voto no sistema eletrônico pela
descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, a magistrada destacou
que a Constituição reconhece a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não
discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade e a
proibição de tortura.
Relatora da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, apresentada pelo Psol em
2017, Rosa quis fazer valer seu voto antes de deixar a Corte. A estratégia
suscitou o debate, mas o julgamento segue sem data marcada depois que o atual
presidente, Luís Roberto Barroso, decidiu levar o caso ao plenário. Hoje o
aborto é permitido em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à
vida da gestante e diagnóstico de anencefalia do feto.
Enquanto teses a favor e
contrárias à descriminalização opõem a sociedade brasileira, as regras atuais
não impedem que milhares de mulheres optem pela interrupção clandestina da
gestação todos os anos. A criminalização da prática, portanto, não elimina
o procedimento, somente restringe o acesso ao aborto seguro e resulta na
acusação de mulheres de baixa renda que dependem de serviços de saúde pública.
“A suspensão condicional
do processo não é o vilão da história. Ela é, na verdade, uma alternativa que
dá à acusada uma opção menos gravosa. O problema aqui é a subjetividade na
aplicação dessa medida. Em razão de convicções pessoais sobre aborto, acaba-se
por impor condições que não têm relação com o crime praticado”, diz a advogada
criminalista Luiza Oliver.
*Nomes fictícios
Fonte: Revista Piauí
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