Soltura automática? O que pode acontecer com presos se STF liberar
porte de drogas
Após oito anos, o Supremo Tribunal Federal (STF)
marcou para esta quarta-feira (2/8) a retomada de um julgamento que discute a
descriminalização do porte de drogas para consumo.
A ação não trata da venda de drogas, que continuará
ilegal qualquer que seja o resultado.
O crime de porte para consumo já não é punido com
pena de prisão no país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas.
Caso a descriminalização seja aprovada no STF, a
pessoa que portar entorpecentes para consumo próprio não poderá mais ser
submetida a outras punições atualmente em vigor, como prestação de serviços à
comunidade ou comparecimento a programa ou curso educativo, nem terá um
registro na sua ficha criminal.
Apesar disso, estudiosos do tema afirmam que esse
julgamento pode ter o impacto de reduzir o número de pessoas presas no país,
caso a decisão do STF permita libertar pessoas que estariam, ao seu ver,
erroneamente encarceradas por tráfico de drogas.
Para que isso ocorra, dizem, seria necessário que a
Corte estabelecesse parâmetros objetivos para diferenciar qual a quantidade de
drogas deve ser considerada voltada para consumo e qual deve ser enquadrada
como tráfico.
Defensores da medida, como a associação que
representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da
Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos
para que policiais, promotores e juízes diferenciem o consumo da venda faz com
que muitas pessoas detidas no país com pequenas quantidades de maconha ou
cocaína, por exemplo, acabem presas pelo crime de tráfico.
No entanto, há organizações que estão participando
do processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que
pessoas estejam sendo presas por tráfico equivocadamente.
Quando o julgamento foi iniciado, em 2015, três
ministros decidiram a favor da descriminalização do porte para consumo, mas
apenas Gilmar Mendes votou pela liberação para qualquer tipo de droga, enquanto
Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram para restringir a medida à maconha,
por considerarem uma droga mais leve.
Barroso foi o único que, até o momento, defendeu a
fixação de parâmetros de quantidade. Na sua visão, pode ser considerado usuário
quem estiver com até 25 gramas de maconha ou que cultivar até seis plantas
cannabis fêmeas para consumo próprio.
O ministro ressaltou, porém, que essas quantidades
são uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário,
mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante,
mesmo que tenha quantidade menor, desde que outros elementos corroborem o crime
de tráfico, como apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo.
• 'Não
haverá soltura automática de presos'
Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por
tráfico de drogas. A quantidade de presos que seria eventualmente beneficiada
por uma decisão neste julgamento dependerá de a maioria do STF concordar com a fixação
de parâmetros que diferenciem consumo e tráfico e de quais seriam os parâmetros
adotados.
No entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a
uma liberação automática de presos, explica a subprocuradora-geral da República
Luiza Frischeisen à BBC News Brasil.
Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas
e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, teria que apresentar um
recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena.
“Se o
Supremo decidir que até determinada quantidade não é tráfico de drogas, o que
vai acontecer é que, nos casos em que houver pequena quantidade (de droga
apreendida), as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser
analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo”, afirma.
“O efeito mais imediato é que pessoas com pequenas
quantidades não seriam mais presas e processadas, se não estiverem presentes
outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de
contabilidade (da venda de drogas), a balança (usada para pesar a droga vendida),
o dinheiro, a arma, a munição”, acrescenta.
Uma fixação de parâmetros nas condições propostas
por Barroso é apoiada também pela associação que representa os peritos da
Polícia Federal (APCF).
A instituição não se posiciona a favor ou contra a
descriminalização do porte para consumo, mas defende que, independentemente do
que for decidido nesse ponto, o Supremo estabeleça parâmetros para diferenciar
o usuário do traficante.
Segundo Davi Ory, advogado que representa a
associação, a APCF avalia que “o principal fator para o aumento do
encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que
transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria
usuário e traficante tendo por base ‘as circunstâncias sociais e pessoais’, bem
como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação’”.
Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas,
principalmente, de pessoas negras e pobres.
Já o advogado Cid Vieira, que representa a
Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do julgamento
na redução dos presos.
A organização, que atua como apoio e orientação aos
familiares de dependentes químicos, foi uma das instituições aceitas pelo
Supremo para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que
detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao
resultado).
“Eu não tenho notícia que dependente químico esteja
preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles
que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma
colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais
lotadas ou não”, afirmou Vieira, que conversou em maio com a BBC News Brasil.
• Presos
por tráfico são mais de 25% da população carcerária
Estudos indicam, no entanto, que a atual Lei de
Drogas, sancionada em 2006 por Lula, contribuiu para o aumento do número de
pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários
e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o
número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo
Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça
naquela época.
“A impressão que se tinha é que isso ia
desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair (da
prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as
autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo
efeito absolutamente inverso”, disse em entrevista à BBC News Brasil em maio.
Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas
Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase 28% da
população carcerária no país está presa por crimes previstos na Lei de Drogas.
No caso das prisões estaduais, por exemplo, onde
havia um total de 659.351 pessoas detidas provisoriamente ou condenadas no
primeiro semestres de 2022 (dado mais recente), 182.958 estavam presas por esse
tipo de delito, 27,75% do total.
Um estudo recente do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra dos processos julgados na
primeira instância judicial de todo o país no primeiro semestre de 2019,
estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150
gramas. E apenas 11,1% levavam mais de dois quilos da droga.
Uma análise semelhante dos réus em processos por
tráfico de cocaína identificou que 62,3% dos processos se referem a 100 gramas
ou menos, enquanto 6,8% dos casos tratavam de apreensões de mais de um quilo.
• Limite
de 25 gramas poderia impactar 27% dos condenados por tráfico de maconha, estima
Ipea
Esse mesmo estudo estimou quantas pessoas
condenadas por tráfico de maconha ou cocaína poderiam ter sua pena revista caso
fossem fixadas quantidades máximas de porte para consumo dessas drogas.
Foram analisados processos de 5.121 réus por
tráfico de drogas julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre
de 2019, uma amostra representativa do total de pessoas presas por esse crime
no país.
A conclusão do estudo do Ipea foi que se o
parâmetro proposto por Barroso (25 gramas de maconha) fosse adotado, por
exemplo, 27% dos condenados por tráfico de maconha poderiam ter sua pena
revista.
Se fosse adotada uma quantidade de 40 gramas de
limite para consumo, 33% dos condenados poderiam ser impactados.
Por outro lado, se o parâmetro fosse fixado em 100
gramas, quase metade (48% dos condenados) poderia ter a revisão de pena.
Os cenários testados pelo Ipea levaram em conta
três opções de parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé,
de 2015, que analisou pesquisas sobre uso de drogas no Brasil e experiências
internacionais de fixação de quantidades para diferenciar tráfico e consumo.
No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos
poderiam ter sua pena revista caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para
consumo. Se a quantidade limite fosse de 15 gramas, o percentual subiria para
37%.
“Os cenários acima constituem um exercício
interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente
aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos
permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal”, ressalta o
estudo.
As conclusões desse estudo, no entanto, não
permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser soltos caso o STF
adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus
processados por tráfico de drogas são condenados a regime fechado ou
semiaberto, explicou a BBC News Brasil a coordenadora da pesquisa, Milena Karla
Soares.
“Estamos fazendo um novo estudo para analisar
especificamente qual seria o impacto no sistema prisional”, disse.
Soares ressalta que um elemento que dificulta essas
análises é a falta de padronização do registro das quantidades apreendidas nos
processos criminais.
Para identificar as quantidades apreendida com cada
réu, a equipe do Ipea pesquisou diversos documentos processuais, como laudos
periciais, denúncias do Ministério Pública e as sentenças dos juízes. Foi
selecionada, então, “a melhor informação disponível” nesses vários documentos,
em cada caso, para realizar o estudo.
Por isso, uma das recomendações da pesquisa é “o
estabelecimento de um protocolo nacional para padronização das informações de
natureza e de quantidade de drogas nos processos criminais”.
• Entenda
melhor a ação em julgamento
O STF está analisando um Recurso Extraordinário com
repercussão geral (cuja decisão valerá para todos os casos semelhantes) que
questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional.
Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou
transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa
finalidade.
Não há previsão de prisão para esse crime. As penas
previstas nesse caso são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação
de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de comparecimento a programa
ou curso educativo”.
O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São
Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da
droga, ele foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria
argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão
(direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo),
garantidos na Constituição Federal.
“Por ser praticamente inerente à natureza humana,
não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do
consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão.
Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei
Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou
mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de
substâncias entorpecentes”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar
no início do julgamento.
Já o então chefe do Ministério Público em São
Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a
descriminalização.
"O tráfico no Brasil apresenta índices
crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da
circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à
saúde ou programa efetivo de reinserção social", sustentou.
Fonte: BBC News Brasil
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