Por trás dos antidireitos na América Latina
O que têm em comum uma evangélica negra feminista
chamada de "demônio" no Brasil, uma adolescente trans que sofre
discriminação na escola da Colômbia e uma mulher trans presa numa "clínica
de conversão" contra a sua vontade no Equador? O que une essas três
histórias é a proliferação
do discurso de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIAP+, algo que tem avançado nos últimos anos na América Latina. Uma forma
de discriminação sistemática, online e offline, com um impacto profundo na vida
de pessoas reais, como as histórias desta série de reportagens.
Entidades como as Nações Unidas definem o discurso
de ódio como "discurso ofensivo dirigido a um grupo de indivíduos, que se
baseia em características inerentes, como raça, religião ou gênero, e que pode
pôr em perigo a paz social". Para a Unesco, o discurso de ódio pode
"estereotipar, estigmatizar e utilizar linguagem depreciativa". Por
causa da expansão das redes sociais, esse tipo de discurso se intensificou e
compreende hoje também conteúdos ofensivos online. Isso gera um debate sobre a
forma de combater essas violências sem limitar ou proibir a liberdade de
expressão.
Este trabalho jornalístico identificou estratégias
narrativas comuns no Brasil, na Colômbia e no Equador, de discriminação contra
mulheres e populações diversas e seus direitos fundamentais. Analisamos as
redes sociais de perfis representativos de grupos que disseminam o ódio. Eles
recorrem a narrativas que colocam crianças como “vítimas de sexualização” ou
“doutrinação”, usando hashtags como #ConMisHijosNoTeMetas (não mexa com meus
filhos), semelhante ao movimento Escola Sem Partido, no Brasil.
Personalidades públicas e associações religiosas
contrárias aos direitos das mulheres ou pessoas LGBTQIAP+ atribuem os avanços
que ocorrem em diversidade e justiça sexual e reprodutiva à famigerada "ideologia
de gênero". E equiparam o aborto à morte, ao
assassinato e/ou ao genocídio, incitando à proibição total da interrupção da
gravidez. Nos três países, constatamos a presença de material pedagógico contra
o aborto baseado em preceitos cristãos.
·
"Cidadãos de bem"
poderosos
São utilizadas figuras constantes de pais de
família para justificar os discursos antigênero. Em Colômbia, Brasil e Equador,
ocorre uma autoidentificação desses grupos como "pessoas de bem",
provocando uma desproporção com pessoas que são "diferentes" do
padrão heteronormativo que defendem.
Os atuais porta-vozes de grupos antidireitos apresentam
argumentos que falam da vida e da liberdade religiosa como direitos
fundamentais, bem como alegações biologicistas com uma suposta defesa das
mulheres. Se reúnem em associacões com nomes como pró-vida, pró-familia, unidos
pela vida...
Essas pessoas são convidadas para conferências,
nacionais e internacionais, e até mesmo para a mídia, para apresentar suas
posições. Não apenas têm presença religiosa no seu país, mas muitos são ou têm
claros aliados políticos em diferentes instâncias de poder: congresso,
conselhos, prefeituras, presidência, ministérios, entre outros.
·
Perseguição sem
fronteiras
Estratégias comuns dos grupos antidireitos
identificadas no Brasil, na Colômbia e Equador:
- Uso da lei - por meio de
ações judiciais coordenadas, silenciam agendas feministas e ativistas que
lutam pelos direitos das mulheres e das diversidades;
- O papel das escolas -
organização de famílias e pais buscam banir a educação sexual e de gênero,
transformando as escolas em campos de disputa política. A exemplo na Colômbia
e Equador do movimento Con Mi Hijos No Te Metas; no Brasil, Escola Sem
Partido;
- Clínicas e redes antiaborto - com
bases religiosas, organizações tentam mudar a opinião de mulheres que
decidem abortar, ou promovem 'terapia de conversão' sexual. Também estimulam
a objeção de consciência dos prestadores de serviços de saúde e o
constrangimento de mulheres que abortam nas unidades de atendimento;
- Vozes femininas -
mulheres religiosas e políticas como Mamela Fiallo no Equador, María
Fernanda Cabal na Colômbia e Ana Campagnolo no Brasil, se posicionam como
porta-vozes de um discurso que demoniza o feminismo, o aborto e a luta
pela identidade de gênero.
- Influência política -
deputados, senadores e vereadores representam grupos antidireitos nos
espaços legislativos, propõem projetos de lei com argumentos
biologicistas, que na verdade vão prejudicar mulheres; e se esforçam para
tirar a palavra gênero de todas as políticas públicas.
<<< Desinformação estratégica
Há uma dinâmica transversal do discurso de ódio digital
nesses países latinos: desinformação sistemática para deslegitimar direitos
como o acesso ao aborto e atacar populações divergentes. Um exemplo concreto
disso nos três países são as ofensivas e mentiras contra cartilhas de
"educação sexual".
As redes sociais tornaram a desinformação e a sua
rápida disseminação online um dos principais instrumentos de propagação e
consolidação do discurso de ódio. E vai além de uma informação imprecisa: busca
enganar e disseminar, com o objetivo de causar efeitos concretos.
Organizações que defendem a liberdade de imprensa,
como a Fundación para la Libertad de Prensa (FLIP) da Colômbia, afirmam que as
estratégias de desinformação e o volume do discurso de ódio "geram riscos
especialmente contra mulheres, pessoas transgênero e outras identidades de
gênero e diversidade sexual, comunidades afro e indígenas que estão expostas à
violência e ao assédio nas redes".
·
Ideologia de gênero: um
avanço contra direitos
Em cada um dos países analisados, a "ideologia
de gênero" possui a sua própria história. O sociólogo e pesquisador
brasileiro Rogério Junqueira afirma em seu artigo que essa expressão se opõe à
legalização do aborto e do casamento igualitário e também criminaliza a
homotransfobia. Se baseia na ideia de uma "família natural"
(heterossexual) que está ameaçada.
Mas nem todas as pessoas pertencentes a grupos
religiosos se alinham com essa visão. A evangélica Simony dos Anjos -
protagonista da história do Brasil - apoia o direito ao aborto e, por isso, é
alvo de acusações infundadas e agressões que já a levaram a se afastar da vida
pública.
No Equador, o termo "ideologia de gênero"
ganhou força nos anos de 2010. Uma década mais tarde, cresceu com a ajuda de
setores antidireitos, que reuniam católicos, evangélicos e outros atores
antigos. Com a desinformação espalhada, em 2020, a legislatura equatoriana
vetou o Código de Saúde Orgânica, que proibia clinicas e terapias para
modificar a orientação sexual ou a identidade de gênero no país. Karlina
Quiroz, uma mulher trans equatoriana - cuja história contamos nesta série -,
acabou confinada à força em uma dessas "clínicas de conversão".
A Colômbia viveu sua batalha frontal contra os
direitos das mulheres e a diversidade sexual e de gênero em 2016, durante a
campanha do plebiscito sobre os acordos de paz entre o governo e as antigas
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Os evangélicos, cristãos e
pentecostais foram as principais forças a fazer campanha contra os acordos de
paz. E o motivo era a "ideologia do gênero".
"Já não será (...) imposta às nossas crianças,
através de uma cartilha, mas estará na Constituição. O governo e as FARC estão
tentando fazer da ideologia de gênero uma norma constitucional", afirmava
conservadores como o antigo procurador do país Alejandro Ordóñez. Essa visão
continua a permear as escolas do país hoje, assim como no Brasil e Equador,
onde se faz oposição à educação sexual. Meninas transgênero como a colombiana
Luna - narrada pela reportagem -, sofreu violência no ambiente escolar devido à
sua identidade de gênero.
Descubra como esses discursos de ódio avançaram,
afetando as vidas de Luna, Simony e Karlina, lendo as reportagens de cada
país.
Ø Catar teria centro de conversão para pessoas LGBTQIA+, segundo revista
Segundo a revista norte-americana Newsweek, o
Catar, país sede da Copa do Mundo 2022, está mantendo um centro
secreto com terapias de conversão para pessoas
LGBTQIA+, conhecidas como "cura gay". O centro ficaria
próximo ao Lusail Stadium, onde foi realizado a final entre Argentina e França,
de acordo com a revista.
Wifaq Family Consulting Center é um
centro financiado pelo governo do país que oferece orientação espiritual,
baseada em princípios islâmicos e aconselhamento para questões familiares, mas
ativistas dizem que o centro também tem serviços secretos de terapia de
conversão.
Peter Tatchell, diretor da organização de direitos
humanos Peter Tatchell Foundation, disse: "De acordo com os cataris, as
pessoas LGBT+ podem ser detidas lá contra sua vontade e submetidas aos chamados
tratamentos abusivos em uma tentativa de torná-las heterossexuais".
Ø Entenda como é a criação uma criança sem gênero
No final de 2021, a cantora Aline Wirley jogou os holofotes
um assunto até então pouco discutido: a crianção de crianças sem imposição de
gênero. "Aqui em casa não existe ‘isso é para menino', 'isso é para
menina’. A gente cria o Antônio para ele ter a liberdade de ser quem ele quer
ser", explicou ela em uma entrevista para a revista Marie Claire.
Assim como Aline e Igor Rickli, pais de Antônio, outras
celebridades como a cantora Adele e o ator Will Smith criam crianças sem
gênero e falam abertamente sobre o tema. Mas, para
muitas pessoas, fica a dúvida: como se dá essa criação?
·
O primeiro passo é a
reflexão
Antes de falar sobre a criação sem gênero é
importante refletir sobre o que é gênero. Perguntas como: "o que é
ser mulher?" e "o que é ser homem?" devem ser feitas,
sempre fazendo um exercicio de tempo, por exemplo: "Ser mulher hoje em
dia é a mesma coisa que na época das minhas bisavós?".
Essa reflexão provalmente vai te levar a conclusão
de que muito do que é ser homem ou mulher está ligado às definições da
sociedade em um determinado tempo. Por exemplo, azul como cor de roupa para
meninos e rosa para meninas é algo que só surgiu
nos anos 1940, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
A partir dessas reflexões algumas pessoas estão
criando crianças apenas como crianças e não meninos ou meninas.
·
Como chamar?
Muitas vezes a decisão de criar uma criança sem
gênero se dá logo na escolha de nome, quando os pais optam por um que
é considerado
neutro como Ariel, Kin ou Zuri.
Outro ponto são os pronomes, ou seja, a palavra que
substitui ou acompanha um substantivo (o nome da criança). No caso de crianças
e pessoas não bináries, é comum o uso de pronomes neutros como o
"elu", porém não é algo obrigatório.
Uma opção é a escolha por um
pronome, "ele" ou "ela", até a criança ter
entendimento o suficiente para decidir qual deseja, ou ainda transitar entre
pronomes usando tanto o "ele" quanto o "ela".
·
Cores, brinquedos e
estímulos
Durante a primeira infância, que vai até os 6 anos
de idade, a tendência é usar e estimular todas as cores e todos - ou nenhum -
marcador de gênero. Um exemplo prático de distinção de marcador gênero é quando
se usa lacinho rosa exclusivamente para meninas.
O mesmo vale para brinquedos. Cada um tem uma
função: estimular cuidado, cognição, atenção, concentração e outras
habilidades. É importante que a criança tenha acesso a todos eles, independente
se é considerado "de menino" ou "de menina".
Por fim, temos as vestimentas: tem algo mais legal
do que poder usar todas as roupas do mundo? Para crianças criadas sem gênero,
essa é uma realidade. Não importa o modelo, a cor ou o tecido, elas podem usar
todas.
·
Referências
Pais que criam crianças sem gênero também contam
que se dedicam bastante ao processo de criar referências para essas crianças,
em uma sociedade dominada por imposição de gênero. Constantemente buscam
desenhos, filmes e livros que abordem perspectivas similares à da criança, como
por exemplo a animação da Netflix “Ridley Jones: A Guardiã do
Museu”.
Fonte: AzMina
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