quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Por trás dos antidireitos na América Latina

O que têm em comum uma evangélica negra feminista chamada de "demônio" no Brasil, uma adolescente trans que sofre discriminação na escola da Colômbia e uma mulher trans presa numa "clínica de conversão" contra a sua vontade no Equador? O que une essas três histórias é a proliferação do discurso de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIAP+, algo que tem avançado nos últimos anos na América Latina. Uma forma de discriminação sistemática, online e offline, com um impacto profundo na vida de pessoas reais, como as histórias desta série de reportagens. 

Entidades como as Nações Unidas definem o discurso de ódio como "discurso ofensivo dirigido a um grupo de indivíduos, que se baseia em características inerentes, como raça, religião ou gênero, e que pode pôr em perigo a paz social". Para a Unesco, o discurso de ódio pode "estereotipar, estigmatizar e utilizar linguagem depreciativa". Por causa da expansão das redes sociais, esse tipo de discurso se intensificou e compreende hoje também conteúdos ofensivos online. Isso gera um debate sobre a forma de combater essas violências sem limitar ou proibir a liberdade de expressão. 

Este trabalho jornalístico identificou estratégias narrativas comuns no Brasil, na Colômbia e no Equador, de discriminação contra mulheres e populações diversas e seus direitos fundamentais. Analisamos as redes sociais de perfis representativos de grupos que disseminam o ódio. Eles recorrem a narrativas que colocam crianças como “vítimas de sexualização” ou “doutrinação”, usando hashtags como #ConMisHijosNoTeMetas (não mexa com meus filhos), semelhante ao movimento Escola Sem Partido, no Brasil.

Personalidades públicas e associações religiosas contrárias aos direitos das mulheres ou pessoas LGBTQIAP+ atribuem os avanços que ocorrem em diversidade e justiça sexual e reprodutiva à famigerada "ideologia de gênero". E equiparam o aborto à morte, ao assassinato e/ou ao genocídio, incitando à proibição total da interrupção da gravidez. Nos três países, constatamos a presença de material pedagógico contra o aborto baseado em preceitos cristãos. 

·         "Cidadãos de bem" poderosos

São utilizadas figuras constantes de pais de família para justificar os discursos antigênero. Em Colômbia, Brasil e Equador, ocorre uma autoidentificação desses grupos como "pessoas de bem", provocando uma desproporção com pessoas que são "diferentes" do padrão heteronormativo que defendem. 

Os atuais porta-vozes de grupos antidireitos apresentam argumentos que falam da vida e da liberdade religiosa como direitos fundamentais, bem como alegações biologicistas com uma suposta defesa das mulheres. Se reúnem em associacões com nomes como pró-vida, pró-familia, unidos pela vida... 

Essas pessoas são convidadas para conferências, nacionais e internacionais, e até mesmo para a mídia, para apresentar suas posições. Não apenas têm presença religiosa no seu país, mas muitos são ou têm claros aliados políticos em diferentes instâncias de poder: congresso, conselhos, prefeituras, presidência, ministérios, entre outros.

·         Perseguição sem fronteiras 

Estratégias comuns dos grupos antidireitos identificadas no Brasil, na Colômbia e Equador:

  • Uso da lei - por meio de ações judiciais coordenadas, silenciam agendas feministas e ativistas que lutam pelos direitos das mulheres e das diversidades;
  • O papel das escolas - organização de famílias e pais buscam banir a educação sexual e de gênero, transformando as escolas em campos de disputa política. A exemplo na Colômbia e Equador do movimento Con Mi Hijos No Te Metas; no Brasil, Escola Sem Partido; 
  • Clínicas e redes antiaborto - com bases religiosas, organizações tentam mudar a opinião de mulheres que decidem abortar, ou promovem 'terapia de conversão' sexual. Também estimulam a objeção de consciência dos prestadores de serviços de saúde e o constrangimento de mulheres que abortam nas unidades de atendimento; 
  • Vozes femininas - mulheres religiosas e políticas como Mamela Fiallo no Equador, María Fernanda Cabal na Colômbia e Ana Campagnolo no Brasil, se posicionam como porta-vozes de um discurso que demoniza o feminismo, o aborto e a luta pela identidade de gênero.
  • Influência política - deputados, senadores e vereadores representam grupos antidireitos nos espaços legislativos, propõem projetos de lei com argumentos biologicistas, que na verdade vão prejudicar mulheres; e se esforçam para tirar a palavra gênero de todas as políticas públicas.

<<< Desinformação estratégica

Há uma dinâmica transversal do discurso de ódio digital nesses países latinos: desinformação sistemática para deslegitimar direitos como o acesso ao aborto e atacar populações divergentes. Um exemplo concreto disso nos três países são as ofensivas e mentiras contra cartilhas de "educação sexual". 

As redes sociais tornaram a desinformação e a sua rápida disseminação online um dos principais instrumentos de propagação e consolidação do discurso de ódio. E vai além de uma informação imprecisa: busca enganar e disseminar, com o objetivo de causar efeitos concretos. 

Organizações que defendem a liberdade de imprensa, como a Fundación para la Libertad de Prensa (FLIP) da Colômbia, afirmam que as estratégias de desinformação e o volume do discurso de ódio "geram riscos especialmente contra mulheres, pessoas transgênero e outras identidades de gênero e diversidade sexual, comunidades afro e indígenas que estão expostas à violência e ao assédio nas redes". 

·         Ideologia de gênero: um avanço contra direitos

Em cada um dos países analisados, a "ideologia de gênero" possui a sua própria história. O sociólogo e pesquisador brasileiro Rogério Junqueira afirma em seu artigo que essa expressão se opõe à legalização do aborto e do casamento igualitário e também criminaliza a homotransfobia. Se baseia na ideia de uma "família natural" (heterossexual) que está ameaçada. 

Mas nem todas as pessoas pertencentes a grupos religiosos se alinham com essa visão. A evangélica Simony dos Anjos - protagonista da história do Brasil - apoia o direito ao aborto e, por isso, é alvo de acusações infundadas e agressões que já a levaram a se afastar da vida pública. 

No Equador, o termo "ideologia de gênero" ganhou força nos anos de 2010. Uma década mais tarde, cresceu com a ajuda de setores antidireitos, que reuniam católicos, evangélicos e outros atores antigos. Com a desinformação espalhada, em 2020, a legislatura equatoriana vetou o Código de Saúde Orgânica, que proibia clinicas e terapias para modificar a orientação sexual ou a identidade de gênero no país. Karlina Quiroz, uma mulher trans equatoriana - cuja história contamos nesta série -, acabou confinada à força em uma dessas "clínicas de conversão". 

A Colômbia viveu sua batalha frontal contra os direitos das mulheres e a diversidade sexual e de gênero em 2016, durante a campanha do plebiscito sobre os acordos de paz entre o governo e as antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Os evangélicos, cristãos e pentecostais foram as principais forças a fazer campanha contra os acordos de paz. E o motivo era a "ideologia do gênero". 

"Já não será (...) imposta às nossas crianças, através de uma cartilha, mas estará na Constituição. O governo e as FARC estão tentando fazer da ideologia de gênero uma norma constitucional", afirmava conservadores como o antigo procurador do país Alejandro Ordóñez. Essa visão continua a permear as escolas do país hoje, assim como no Brasil e Equador, onde se faz oposição à educação sexual. Meninas transgênero como a colombiana Luna - narrada pela reportagem -, sofreu violência no ambiente escolar devido à sua identidade de gênero.

Descubra como esses discursos de ódio avançaram, afetando as vidas de Luna, Simony e Karlina, lendo as reportagens de cada país. 

 

Ø  Catar teria centro de conversão para pessoas LGBTQIA+, segundo revista

 

Segundo a revista norte-americana Newsweek, o Catar, país sede da Copa do Mundo 2022, está mantendo um centro secreto com terapias de conversão para pessoas LGBTQIA+, conhecidas como "cura gay". O centro ficaria próximo ao Lusail Stadium, onde foi realizado a final entre Argentina e França, de acordo com a revista.

Wifaq Family Consulting Center é um centro financiado pelo governo do país que oferece orientação espiritual, baseada em princípios islâmicos e aconselhamento para questões familiares, mas ativistas dizem que o centro também tem serviços secretos de terapia de conversão.

Peter Tatchell, diretor da organização de direitos humanos Peter Tatchell Foundation, disse: "De acordo com os cataris, as pessoas LGBT+ podem ser detidas lá contra sua vontade e submetidas aos chamados tratamentos abusivos em uma tentativa de torná-las heterossexuais".

 

Ø  Entenda como é a criação uma criança sem gênero

 

No final de 2021, a cantora Aline Wirley jogou os holofotes um assunto até então pouco discutido: a crianção de crianças sem imposição de gênero. "Aqui em casa não existe ‘isso é para menino', 'isso é para menina’. A gente cria o Antônio para ele ter a liberdade de ser quem ele quer ser", explicou ela em uma entrevista para a revista Marie Claire.

Assim como Aline e Igor Rickli, pais de Antônio, outras celebridades como a cantora Adele e o ator Will Smith criam crianças sem gênero e falam abertamente sobre o tema. Mas, para muitas pessoas, fica a dúvida: como se dá essa criação?

·         O primeiro passo é a reflexão

Antes de falar sobre a criação sem gênero é importante refletir sobre o que é gênero. Perguntas como: "o que é ser mulher?" e "o que é ser homem?" devem ser feitas, sempre fazendo um exercicio de tempo, por exemplo: "Ser mulher hoje em dia é a mesma coisa que na época das minhas bisavós?".

Essa reflexão provalmente vai te levar a conclusão de que muito do que é ser homem ou mulher está ligado às definições da sociedade em um determinado tempo. Por exemplo, azul como cor de roupa para meninos e rosa para meninas é algo que só surgiu nos anos 1940, após o fim da Segunda Guerra Mundial. 

A partir dessas reflexões algumas pessoas estão criando crianças apenas como crianças e não meninos ou meninas. 

·         Como chamar?

Muitas vezes a decisão de criar uma criança sem gênero se dá logo na escolha de nome, quando os pais optam por um que é considerado neutro como Ariel, Kin ou Zuri

Outro ponto são os pronomes, ou seja, a palavra que substitui ou acompanha um substantivo (o nome da criança). No caso de crianças e pessoas não bináries, é comum o uso de pronomes neutros como o "elu", porém não é algo obrigatório. 

Uma opção é a escolha por um pronome, "ele" ou "ela", até a criança ter entendimento o suficiente para decidir qual deseja, ou ainda transitar entre pronomes usando tanto o "ele" quanto o "ela".

·         Cores, brinquedos e estímulos

Durante a primeira infância, que vai até os 6 anos de idade, a tendência é usar e estimular todas as cores e todos - ou nenhum - marcador de gênero. Um exemplo prático de distinção de marcador gênero é quando se usa lacinho rosa exclusivamente para meninas.

O mesmo vale para brinquedos. Cada um tem uma função: estimular cuidado, cognição, atenção, concentração e outras habilidades. É importante que a criança tenha acesso a todos eles, independente se é considerado "de menino" ou "de menina".

Por fim, temos as vestimentas: tem algo mais legal do que poder usar todas as roupas do mundo? Para crianças criadas sem gênero, essa é uma realidade. Não importa o modelo, a cor ou o tecido, elas podem usar todas.

·         Referências 

Pais que criam crianças sem gênero também contam que se dedicam bastante ao processo de criar referências para essas crianças, em uma sociedade dominada por imposição de gênero. Constantemente buscam desenhos, filmes e livros que abordem perspectivas similares à da criança, como por exemplo a animação da Netflix “Ridley Jones: A Guardiã do Museu”. 

 

Fonte: AzMina

 

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