quarta-feira, 2 de agosto de 2023

El Niño pode causar colapso na produção de castanha-do-pará

A possível ocorrência de um forte El Niño neste ano pode comprometer um dos principais produtos da bioeconomia da Amazônia: a castanha-do-pará. A preocupação parte de produtores e pesquisadores que viram um colapso na produção da última vez que o fenômeno, que traz seca para a floresta, se formou no planeta. O El Niño que ocorreu entre 2015 e 2016, o mais intenso dos últimos 50 anos, causou o declínio de 37% da produção do fruto na safra seguinte, em 2017, em comparação à média observada no período de 2010 a 2019.

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são válidos para a Amazônia brasileira, mas o aumento da temperatura e a diminuição das chuvas também afetaram a produção nos outros países por onde a floresta se estende, como Bolívia e Peru. A redução drástica na oferta chegou a motivar roubos do fruto.

Um grupo de cientistas observou de perto essa dinâmica na reserva extrativista do Rio Cajari, no sul do Amapá. O local possui os maiores castanhais conhecidos e monitorados da região e já havia uma parceria estabelecida com a comunidade de coletores. Os pesquisadores, coordenados por Marcelino Guedes, engenheiro florestal da Embrapa-AP, analisaram dados meteorológicos de 2007 a 2018, assim como a produção de castanhas em duas porções de nove hectares da reserva nesse mesmo período.

A ideia era investigar se as alterações climáticas trazidas pelo El Niño – o aquecimento acentuado e periódico das águas do Oceano Pacífico – poderiam ser a causa da queda na produção de castanhas. Logo eles perceberam que as variações anuais na temperatura e na quantidade de chuva afetavam a frutificação no ano seguinte, mas a chegada do fenômeno elevou os impactos a outro patamar.

“Já havia previsões pela comunidade científica de que o El Niño de 2015 e 2016 seria bem forte, mas não imaginávamos que poderia causar algum tipo de efeito na produção da castanha. A Embrapa-AP realiza o monitoramento de frutos da espécie desde 2007 e nunca tinha sido visualizada uma queda tão brusca na produção quanto a que ocorreu em 2017”, explica Dayane Pastana, da Universidade Federal de Lavras, primeira autora do estudo.

A ocorrência do El Niño provocou o aumento de 2 ºC na temperatura máxima das áreas analisadas, e o chamado verão amazônico, época de estiagem que ocorre habitualmente ao longo de três meses, entre setembro e novembro, se estendeu por seis meses em 2015, segundo dados de uma estação do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) localizada a 121 quilômetros da reserva extrativista. “Em Macapá, na capital, a gente passou mais de 100 dias sem ter uma gota de chuva”, lembra Guedes.

O pesquisador explica que a combinação da baixa precipitação com aumento da temperatura derrubou a produção de castanha-do-pará na safra seguinte, em 2017, uma vez que o processo de maturação dos frutos dura em torno de 15 meses. Na reserva do Rio Cajari, a produção de castanhas por árvore foi oito vezes mais baixa que em 2015 e duas vezes menor que a média geral, de acordo com os cálculos do estudo. Os resultados foram publicados no ano passado na revista Acta Amazonica, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

As castanheiras são árvores de grande porte e suas copas atingem alturas mais elevadas que o dossel da floresta, por isso estão mais sujeitas a insolação. As altas temperaturas registradas no topo das árvores naquele período provocaram a chamada seca fisiológica – quando as raízes não conseguem absorver a água do solo e transportá-la para as copas –, que causou a seca das polpas das castanheiras e até mesmo a morte de alguns indivíduos arbóreos.

As perturbações climáticas do El Niño também aumentaram a mortalidade das abelhas, que são as principais polinizadoras da espécie, prejudicando o desenvolvimento das flores e dos frutos.

Neste ano, com a confirmação do retorno do fenômeno e o registro de recordes de calor no planeta, assim como a elevação da temperatura dos oceanos, aumentam as preocupações com as comunidades da Amazônia que dependem da coleta das castanhas para seu sustento. Para Guedes, o cenário não é nada animador. “A próxima safra deve ser bastante afetada, ainda mais se as previsões que apontam para um El Niño forte se confirmarem.”

•        Roubos inéditos e impactos socioeconômicos

Em 2017, a escassez dos frutos na Amazônia fez disparar o preço do produto final. O valor da lata de 11 quilos de castanha, unidade padrão de comercialização, saltou de R$ 50 em 2016 para mais de R$ 120 no ano seguinte, alcançando a faixa de R$ 200 na região nordeste do bioma, segundo levantamento da Embrapa.

A supervalorização das castanhas abriu caminho para a ocorrência de crimes. “Vivenciamos coisas que nunca tinham acontecido antes, como roubo de castanhas dentro da reserva. Os castanheiros respeitam muito os seus limites de coleta, mas em 2017 houve roubo de sacas e até garimpeiros saíram do garimpo para ir atrás de castanhas”, conta Guedes.

Rondinele Quina, de 42 anos, ajuda os pais na coleta das castanhas desde os 10 anos na reserva extrativista do Rio Cajari e conta que a família toda sentiu os efeitos do El Niño. Seu irmão, por exemplo, teve os frutos roubados e precisou vender seu castanhal. “Ele não conseguiu mais encontrar castanhas por causa dos roubos. Não teve violência, mas foi um prejuízo grande, ele perdeu muitas castanhas.”

A família de Quina, assim como outras 300 que residem no Alto Cajari, depende da coleta dos frutos para se sustentar. Hoje, ele cursa graduação em engenharia florestal no Instituto Federal do Amapá e desenvolve projetos de recuperação e reflorestamento de castanhais, estudando formas de otimizar a frutificação de árvores plantadas em áreas degradadas.

Com o impacto do El Niño extremo na produção, os coletores precisaram buscar outras fontes de renda para suprir a falta do dinheiro arrecadado com a venda das castanhas. Guedes afirma que muitas vezes a colheita é o único momento em que as famílias conseguem juntar recursos para uma reserva financeira ou fazer melhorias nas casas. Com a baixa produção, acentuou-se a dependência da renda de fontes não produtivas, principalmente de previdências e outros auxílios governamentais.

“Famílias inteiras passaram a depender da aposentadoria de um avô, por exemplo, ou do Bolsa Família. Foi um processo de descaracterização da cultura do extrativismo da castanha. Em momentos de crise, os castanheiros têm que apelar para outras rendas ou sair da reserva para tentar trabalhar fora.”

•        Faltam políticas públicas e adaptação às mudanças climáticas

Os pesquisadores indicam ações que podem ser tomadas para minimizar os impactos às castanheiras e aos coletores de frutos provocados pelo El Niño ou por eventos extremos ligados ao aquecimento global.

Guedes explica que as árvores mais velhas são mais sensíveis às mudanças climáticas, principalmente ao aumento da temperatura máxima e à redução das chuvas. Nos castanhais monitorados pela Embrapa-AP, cerca de 90% são árvores mais velhas, e as jovens demoram em torno de 12 anos para começar a produzir. Mas, de acordo com Pastana, estudos têm gerado resultados promissores de redução no tempo de início da produção de frutos.

Assim, renovar os castanhais, com o plantio de árvores jovens, é uma estratégia que pode aliviar os impactos do El Niño, mas, segundo Guedes, faltam incentivos para emplacá-la. “Infelizmente tudo é muito demorado. Quando queremos realmente partir para a prática e fazer a renovação dos castanhais, dependemos muito de políticas públicas e isso foge um pouco do nosso alcance como pesquisadores”, afirma.

Pastana acrescenta que, a longo prazo, é importante desenvolver estudos voltados ao melhoramento genético das castanheiras, para selecionar as variedades mais resistentes ao clima adverso.

Para ela, os governantes precisam implementar políticas públicas para o fortalecimento da cadeia produtiva das castanheiras, de forma a garantir que os agroextrativistas tenham o suporte necessário para continuar com as atividades que contribuem para a conservação das florestas.

Rondinele Quina se queixa dessa falta de apoio. “Para nós que somos extrativistas, a época da castanha é quando mais ganhamos dinheiro. No período entressafras, não temos uma ajuda de custo como o governo federal faz para quem pesca ou pratica outras atividades. Eu acho que nenhum castanheiro está preparado para a chegada do El Niño”, diz.

Carina Pimenta, secretária de Bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, afirmou à Agência Pública que os impactos climáticos sobre os produtos da bioeconomia são uma preocupação do governo, mas reconheceu que ainda não há uma política pública específica que contemple esses riscos. “Estamos começando a trabalhar em um programa de sociobioeconomia que deverá considerar contornos climáticos como o El Niño e o aquecimento global”, disse.

Ela explica que um primeiro passo de apoio a comunidades extrativistas foi dado neste ano com o aumento de estímulos em uma linha de microcrédito do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), do Plano Safra. Castanheiros, por exemplo, podem agora conseguir um financiamento de até R$ 10 mil, com taxa de juros de 0,75% e mecanismo de rebatimento que para a Amazônia passou a ser de 40%. Até o ano passado o valor máximo era R$ 6 mil, com rebatimento de apenas 25%.

“Ainda é só uma sementinha, vai ser preciso vir com assistência técnica, mas pelo menos eles poderão investir na organização produtiva, abrir trilhas, melhorar infraestrutura”, complementa.

•        Ameaça à bioeconomia e à conservação dos castanhais

A reserva extrativista do Rio Cajari é uma unidade de conservação de uso sustentável criada em 1990 pelo decreto federal nº 99.145. Além da castanha-do-pará, o cultivo de açaí também se sobressai na região.

“A castanheira é um símbolo da conservação da Amazônia. É um exemplo de que a melhor forma para defender o bioma é a conservação pelo uso, e não a proteção integral tirando as pessoas da floresta. O caminho é o manejo racional, usando as técnicas de engenharia florestal, as experiências dos povos e os conhecimentos tradicionais de quem convive com a natureza há séculos”, diz Guedes.

O engenheiro florestal afirma que a força da pesquisa vem de uma relação de troca de saberes e respeito pelos extrativistas. “Estamos sempre buscando trabalhar para melhorar a produção deles, nos preocupamos em atender aos interesses dos coletores e fazer com que todo esse conhecimento seja aplicável para gerar desenvolvimento.”

Ele avalia que as iniciativas que caminham no sentido de estimular a bioeconomia na Amazônia estão ameaçadas pelas mudanças do clima. Os pesquisadores continuam a monitorar os castanhais, de modo que será possível medir o impacto do El Niño no futuro. “Mas não existe cenário otimista, a crise climática está afetando toda a biodiversidade e coloca em risco a onda da bioeconomia e a possibilidade de ter renda com esses produtos.”

 

       Sem energia, não haverá prosperidade na Amazônia profunda. Por Valcléia Solidade

 

Quem vive em grandes cidades no Sul e Sudeste do país raramente passa pela experiência de não ter acesso à energia para atividades cotidianas como carregar o celular, ou ligar o aquecedor elétrico em dias frios ou ar-condicionado em dias quentes. Essa, entretanto, não é a realidade de grande parte da Amazônia brasileira. Em centros urbanos como Manaus e Belém, as quedas de energia são frequentes – ainda assim, o acesso da maioria da população é garantido. Já em comunidades ribeirinhas e indígenas da maior floresta tropical do mundo, a situação muda drasticamente.

Segundo dados do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), de 2019, quase 1 milhão de pessoas na Amazônia não têm acesso à energia elétrica. Pará e Amazonas são os Estados com maior déficit, sendo o primeiro com 409.593 e o segundo com 159.915 pessoas sem acesso à eletricidade. Os números demonstram a distante realidade da região Norte do país.

No Amazonas, atualmente, a maior parte das comunidades do interior tem acesso esporádico à energia por meio de geradores abastecidos por combustível e tem, em média, duração de 4 horas diárias. Fazendo o recorte dos números divulgados pelo IEMA, podemos utilizar também dados da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). O monitoramento da fundação aponta que, de 582 comunidades em que a FAS atua no Amazonas, 313 não contam com acesso à energia de forma integral, 24 horas. 810 famílias dependem ainda somente de lamparinas, lampião e velas. 

Vale destacar que as comunidades que possuem geradores à base de diesel, combustível fóssil, além de poluente, gera um alto custo financeiro, que por muitas vezes não é possível manter mensalmente. Obviamente, quem está lendo esse texto, tem acesso à energia e, provavelmente, em abundância. Pensemos então naquelas pessoas que não lerão o que escrevo, por não disporem de energia e internet. O que podemos fazer para mudar essa realidade?

Para além da insustentabilidade intrínseca do acesso energético por meio de combustíveis fósseis, grandes poluidores, pela abordagem sistêmica adotada pela FAS, antes de tudo, entendemos que não é possível a manutenção da floresta em pé caso não seja aprimorada a qualidade de vida das populações da floresta, os verdadeiros guardiões do bioma Amazônia. Para dar concretude a isso, a instituição promove ações de Saúde; Educação e Cidadania; Infraestrutura Comunitária; Renda e Empreendedorismo; Empoderamento; Pesquisa; Desenvolvimento e Inovação; Conservação Ambiental; e Gestão e Transparência.

Para materializar essas ações, é necessário fontes limpas renováveis de energia para as pessoas que vivem nas comunidades. A partir do momento em que a eletricidade chega nesses locais, é possível iniciar o processo de conectividade à internet e, assim, colaborar na geração de renda, por meio do turismo de base comunitária nas comunidades deslumbrantes da Amazônia, para citar apenas um exemplo. É preciso de energia para a recepção dos turistas, armazenamento de mantimentos e manutenção das atividades. É preciso de energia para se comunicar. Geração de renda demanda energia. 

Para implementação das atividades e ações em prol da qualidade de vida, a questão de energia tem lugar central. E ainda é um desafio grande. A FAS implementou um projeto-piloto de sucesso que pode servir como exemplo para replicabilidade em outros locais da Amazônia de energia limpa.

Na Comunidade Santa Helena do Inglês, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, município de Iranduba (AM), distante a 64 quilômetros de Manaus, a FAS, em parceria com a empresa Unicoba, instalou a energia solar fotovoltaica que utiliza baterias de lítio. A tecnologia é considerada inovadora e sustentável, além de adaptável à realidade de comunidades ribeirinhas. 

A comunidade já tinha acesso à energia, porém sofria com constantes quedas causadas, principalmente, pelas mudanças de clima. Quando chovia, toda a comunidade ficava sem eletricidade e isso atrapalhava, por exemplo as aulas noturnas. Ao todo, o sistema abrange 132 painéis solares, 54 baterias de lítio e nove inversores híbridos de última geração. Que sonho seria se todas as pessoas na Amazônia profunda conseguissem acesso a esse tipo de sistema de energia limpa.

Com a energia, além dos benefícios citados acima, partimos para outro ponto: a conservação da floresta. Podemos iniciar, com maior fervor e certos de que estamos fazendo a nossa parte em garantir serviços e direitos essenciais, o processo de conscientizar sobre a conservação do meio ambiente em que se vive. Isso poderá ser feito por meio da educação voltada para a sustentabilidade.

Sabemos que existem desafios a serem superados para que projetos como esses cheguem até lugares longínquos. Costumo citar três principais: logística, comunicação e energia. A logística para chegar até determinadas comunidades é muito difícil, algumas viagens levam dias, pelos gigantescos rios amazônicos. A comunicação é outro fator complicador, pois não há telefone. E ambas se unem à falta de energia, principal assunto discutido nesse texto. Esses três fatores precisam estar alinhados e funcionais para que seja possível levar dignidade, geração de renda, acesso à saúde e, por fim, assegurar a prosperidade social de ribeirinhas e ribeirinhos da Amazônia. Posso afirmar que onde não houver energia, não teremos prosperidade.

 

Fonte: Por Gabriel Gama, da Agencia Pública/((o))eco

 

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