Como exportação de drogas tornou a Baixada Santista ponto estratégico
para o PCC
Policiais militares mataram 16 pessoas em uma
operação na cidade de Guarujá, na Baixada Santista, litoral de São Paulo.
Iniciada após a morte do policial da Rota (tropa de
elite paulista) Patrick Bastos Reis, de 30 anos, a ação é justificada pela
Secretaria da Segurança Pública como uma ferramenta para sufocar o tráfico de
drogas e retirar armas de circulação na região.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), afirmou que a operação está prevista para durar ao menos 30
dias. Ao ser questionado sobre as mortes causadas pelos policiais, ele afirmou
que “não existe combate ao crime sem efeito colateral”. Depois, falou a
jornalistas que “se houver excesso, vamos punir os responsáveis”.
Na terça (1º/8), dois policiais ficaram feridos
após serem atingidos por disparos durante a operação em Santos. Ao menos um dos
tiros foi feito por um fuzil, arma considerada de grosso calibre e usada em
operações militares por ser capaz de atingir alvos a longas distâncias.
Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública
(SSP) informou que esse ataque contra policiais "comprova a necessidade de
manter em curso a Operação Escudo na região, para sufocar o tráfico de drogas e
desarticular o crime organizado.” Também afirma que “o Estado de São Paulo não
terá nenhuma região dominada pela criminalidade".
A SSP informou ainda que "todas as ocorrências
com morte durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optaram pelo
confronto, colocando em risco tanto vítimas quanto os participantes da
ação".
"Por determinação da própria SSP, todos os
casos desse tipo são minuciosamente investigados pela Divisão Especializada de
Investigações Criminais (DEIC) de Santos e pela Polícia Militar, por meio de
Inquérito Policial Militar (IPM). As imagens das câmeras corporais serão
anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita
pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM",
continua a nota.
A reportagem da BBC News Brasil conversou com
especialistas em segurança pública e policiais que atuam na região para
entender por que o local é palco de tantos conflitos e se tornou um ponto
estratégico da facção PCC (Primeiro Comando da Capital).
Segundo os entrevistados, o principal atrativo é o
Porto de Santos, usado para escoar cocaína em larga escala, principalmente para
países da Europa, África e América do Norte.
• Tráfico
internacional
Maior da América Latina em movimentação de cargas,
o Porto de Santos envia mercadorias para mais de 200 países, em 600 destinos
diferentes. E em meio às 162 milhões de toneladas de produtos que são enviados
anualmente para o exterior pelo mar, a facção criminosa PCC aproveita para
exportar seu produto mais lucrativo: a cocaína.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o
crime organizado possui um time que atua no porto para colocar as drogas dentro
de containers, negociar “vistas grossas” com a fiscalização e despachar os
navios sem problemas.
A facção paulista ainda possui, segundo as fontes,
estrutura semelhante nos países de destino, principalmente na Itália, para que
a carga chegue ao destino sem complicações.
O cientista político e ex-subsecretário nacional de
Segurança Pública Guaracy Mingardi afirma que dois pontos tornam a região da
Baixada Santista relevante para as finanças do PCC: a venda local de drogas na
alta temporada de verão e a exportação de entorpecentes.
“A partir de outubro, a região recebe muitos
turistas e vende muito mais droga, inclusive cocaína. A população triplica e
vai com dinheiro para comprá-las. A outra questão é o porto que exporta
cocaína”, diz Mingardi.
Também membro do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, Mingardi conta como funciona a rede de pessoas que atuam para que essa
droga, produzida em sua maioria na Bolívia, chegue a Santos e depois cruze o
Atlântico.
Segundo ele, o Partido do Crime, como também é
conhecido o PCC, é especialista em corromper policiais, fiscais e tem uma
logística completamente estruturada.
“Toda essa rede é controlada por gente do PCC, mas
não pela facção em si. As pessoas confundem como se o PCC fosse uma empresa sem
rosto, como as gigantes varejistas. Na verdade, esse grupo é um amontoado de
criminosos, muitos com cargos importantes na facção, mas cada um na sua função.
Juntos, eles fazem a droga chegar até o porto de Gioia Tauro, na região da
Calábria, no sul da Itália”, conta.
Segundo o especialista, a grande maioria da droga
enviada para a Europa é cocaína, já que a maconha é facilmente encontrada no
continente por diferentes meios.
• Geografia
e herança do Comando Vermelho
Policiais que atuam na Baixada Santista disseram à
reportagem que há uma grande diferença entre atuar na capital paulista e na
Baixada, tanto pela geografia quanto pelo armamento usado pelos criminosos.
Um policial militar que pediu para não ser
identificado disse que a equipe dele, que atua principalmente na capital, foi
recebida a tiros de grosso calibre quando participou de uma operação no Guarujá
em anos anteriores. O PM disse que a área “é complicada” por conta da
ostensividade dos criminosos, mas que as equipes de segurança “respondem à
altura” quando são alvejadas.
Guaracy Mingardi diz que essas ações contra
policiais ocorrem principalmente porque a geografia da região favorece a fuga
dos bandidos.
“Ao contrário de São Paulo, na Baixada você tem
morros que dificultam a ação policial. Você está próximo à mata na Serra do
Mar, com montanhas e florestas. Essa vegetação facilita o esconderijo dos
criminosos”, afirmou.
O professor ainda explica que o armamento pesado
usado pelos criminosos da Baixada é herança de uma guerra que o PCC travou com
o Comando Vermelho para evitar que a facção carioca dominasse a região.
“Em São Paulo, os criminosos não usam armamento
pesado para defender boca de fumo como no Rio, mas apenas para cometer roubos.
Em Santos, houve uma guerra para dominar o tráfico. Faz tempo que o PCC é
hegemônico na região, mas o armamento pesado é uma herança disso”, explica.
Camila Nunes Dias, autora do livro Guerra: A
Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil (Ed. Todavia) afirma, no entanto,
que o armamento de grosso calibre usado pelo crime organizado na Baixada
Santista está ligado ao grau de defesa que eles consideram necessário para se
proteger.
“Quando você tem um ambiente com armas ostensivas,
é porque há uma situação mais tensa e não tão estável envolvendo a polícia e
outros atores criminais”, explica.
Para ela, que também é professora da UFABC
(Universidade Federal do ABC), a Baixada Santista não é semelhante ao Rio de
Janeiro apenas por conta de sua geografia, com praia e forte ocupação dos
morros. Ela afirma que uma “cultura criminal” também tem influência do Estado
vizinho.
“Nos anos 1990 e 2000, houve uma integração e
atuação de proximidade [entre essas regiões]. Essa ainda é uma história que
precisa ser contada, pois precisamos nos aprofundar mais nisso para entender.
Mas penso que esse tráfico de varejo na comunidade tem esse ponto de contato
histórico com o Rio de Janeiro, com uma maior frequência de uso de armamento
mais pesado. Isso não existe em São Paulo, na capital ou interior”, diz.
Ela afirma que, assim como no Rio, o litoral
paulista também tem um histórico de atuação de grupos de extermínio envolvendo
policiais. Outra característica semelhante entre as duas regiões, de acordo com
a pesquisadora, são conflitos entre o próprio crime organizado e contra a polícia.
“Em São Paulo, há poucos confrontos envolvendo o
comércio de drogas. Na Baixada, não é como no Rio, onde isso ocorre muito
regularmente, mas há muito mais incursões policiais que resultam em violência
do que em São Paulo [capital ou interior]”, afirma.
• Escalada
na violência
O secretário da Segurança Pública, Guilherme
Derrite (de camisa branca); o delegado geral da Polícia Civil, Artur Dian (com
uma arma), e o comandante geral da PM, Coronel Cássio, conversam durante a
Operação Escudo no Guarujá
Para Rafael Rocha, coordenador de projetos do
instituto Sou da Paz, o PCC tem uma presença muito forte na Baixada Santista
que precisa ser combatida pela polícia, mas com inteligência e ações
duradouras, e menos operações.
“A gente sabe que essa região é um ponto central
para o PCC por causa do Porto de Santos. Essa operação não vai desmantelar o
PCC porque é apenas uma vingança, com uma entrada massiva e matança
indiscriminada para dar recado. Isso pode provocar um revide, um contra-ataque
como já vimos antes. Isso não é bom para a polícia nem para a população. Houve
uma morte condenável de um policial, mas a resposta foi desmedida”, afirma
Rocha.
A Secretaria de Segurança Pública informou que, em
cinco dias de operação, "a polícia prendeu 58 suspeitos e apreendeu quase
400 kg de drogas e 18 armas, entre pistolas e fuzis".
'Vingança'
Camila Nunes Dias afirma que a Baixada Santista tem
dois tipos de tráfico de drogas. Um deles é o varejista e o segundo é o de
atacado, escoado pelo porto — e as pessoas que lideram essas frentes não são
necessariamente as mesmas.
Para ela, o discurso do governo de que essas ações
nas favelas da região são para combater o tráfico de drogas em grande escala
não faz sentido.
“É imensurável a distância de valor entre essas
duas atividades. Há um efeito de interação entre essas coisas, mas aqueles que
atuam nessas cargas não são moradores dos morros e de favelas. O dono da droga
pode ser o mesmo dono das biqueiras, mas esse dono não está no morro. Se a
polícia matou 20 pessoas, nenhuma delas é responsável pelo envio de drogas para
a Europa."
"Quando ela faz uma incursão para reagir à
terrível morte do policial, ela está buscando vingança e querendo mostrar ao
tráfico que não vale a pena tentar contra a vida de um policial, mas está
atingindo pessoas que não tem ligação com o crime”, diz a pesquisadora.
Camila Dias também defende que a polícia tenha uma
atuação mais investigativa do que ostensiva para sufocar o tráfico na região.
“Uma polícia verdadeiramente eficiente estaria
investigando essas redes, trabalhando com técnica, captação de diálogo e
análise de movimentação financeira para identificar essas pessoas. Não fazendo
incursão em favela matando preto e pobre. É necessário fazer essa distinção
para deslegitimar esse discurso (do governo) porque ele é mentiroso”, afirma.
'Uso excessivo de força'
Para o especialista em segurança pública Guaracy
Mingardi, a operação da Polícia Militar no Guarujá tem claros indícios de uso
excessivo da força.
“Essa quantidade absurda de mortos mostra que algo
está errado. Além disso, há relatos de tortura. Ou seja, ainda não sabemos o
que está acontecendo, mas não está seguindo como deveria ser. O Estado está
extrapolando lá, usando força demais, com vários casos com suspeita de execução
que só serão investigados depois”, afirmou.
Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Violência da USP (Universidade de São Paulo) Camila Nunes Dias, o PCC não teria
ligação com a morte do policial da Rota Patrick Bastos Reis, pois as operações
causadas por mortes assim atrapalham a atuação da facção.
“Não me parece razoável que alguém do PCC mande
atirar no carro da Rota com um fuzil. Essa é uma ação que causa um
desequilíbrio. As forças no Estado mantêm seu funcionamento rotineiro, cada um
em seu território com conflitos pontuais. Mas algumas ações detonam uma crise
como essa. O PCC mantém uma hegemonia que não é abalada e não faz o menor
sentido ele buscar situação de enorme conflito como esse. Nem faz sentido
pensar o que ele ganharia com um ataque e morte de um policial”, explica Dias.
Ela ainda faz um paralelo com os ataques em 2006,
quando mais de 400 pessoas foram mortas por policiais no Estado de São Paulo em
resposta ao assassinato de 59 agentes públicos.
“Desde aquele fato, a guerra com a polícia não vale
a pena. Ouvi de um entrevistado que tinha relação com o PCC que o conselho dele
era de que ninguém vence uma guerra contra o Estado e que ele considerava
bobagem essa guerra com ataques. À atuação do PCC interessa mais a
estabilidade, o funcionamento regular, não uma operação da PM”, diz.
Ela afirma que o mais provável é que a morte do
policial da Rota tenha sido resultado de um crime individual, com motivação
ainda desconhecida. E que, mesmo que as pessoas mortas tivessem envolvimento
com o crime, não justificaria que fossem executadas.
“A polícia não pode tomar a decisão de matar
pessoas. O PCC também não tem direito de ser um ator, de promover justiçamento.
Se os dois atuam dessa forma, estamos tratando de uma ação criminal feita por
grupos diferentes”, conclui Dias.
O governo de São Paulo nega o uso excessivo da
força na operação. A SSP reforçou que "todas as ocorrências com morte
durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optaram pelo
confronto".
O governador Tarcísio de Freitas afirmou que a
atuação policial seguiu todos os protocolos e que os oficiais não cometeram
excessos.
“A gente tem uma polícia extremamente profissional
que sabe usar exatamente a força na medida em que ela precisa ser utilizada.
Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que
resultou em prisões”, afirmou o governador.
Guarujá
é o novo Jacarezinho. Por Thomas Milz
Ainda não se sabe quantas pessoas morreram no final
de semana passado no Guarujá, durante a Operação Escudo. Depois do assassinato
de Patrick Bastos Reis, soldado da Rota, na quinta-feira (27/07), centenas de
policiais passaram os dias seguintes na cidade em busca dos responsáveis.
Mas, já na segunda-feira, havia uma pessoa bem
satisfeita com os resultados da intervenção policial: “Eu estou extremamente
satisfeito com a ação da polícia”, disse o governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, numa coletiva de imprensa em 31 de julho.
Naquela entrevista, Tarcísio falou de oito óbitos
durante a operação, que o governador chamou de “profissional”. Nas suas
palavras, “nós temos uma polícia treinada e que segue à risca a regra de
engajamento”.
A defesa das ações policiais pelo governador soava
absurdamente prematura, tendo em vista que a Ouvidoria da própria polícia tenha
ouvido vários relatos de abusos dos policiais, de torturas e de execuções. O
Ministério Público já está investigando os casos.
Como o governador podia, portanto, ter tanta
segurança de afirmar o profissionalismo da sua tropa? Como podia ter certeza de
que não havia “excessos”, sem conhecer os resultados das investigações?
Na terça-feira, Tarcísio já falava em 14 mortes,
enquanto o número de até 19 mortos circulava na imprensa. Parecia que Tarcísio
teve que recuar frente às alegações, pelo menos um pouco. “Se houver excessos,
vamos punir os responsáveis”, prometeu o governador. Mas logo acrescentou que
até agora não tinha chegado a ele nenhuma informação de que houve excessos.
Mas, sim, efeitos colaterais: “Não existe combate ao crime sem efeito
colateral”.
Tarcisio já soa como Cláudio Castro, o governador
do Rio de Janeiro, que chamou as 27 pessoas mortas pela polícia em maio de
2021, no Jacarezinho, de “vagabundos”. Como no Guarujá, a polícia entrou na
comunidade, naquele dia em 2021, depois de um policial ter sido morto por bandidos.
E, aparentemente, com sede de vingança.
É da natureza humana um sentimento de vingança pela
morte de um companheiro. Mas o estado e seus representantes não podem se deixar
levar por tais sentimentos. Eles precisam agir de forma cautelosa e respeitar o
direito de cada cidadão de ser considerado inocente até provar o contrário.
Sabemos que os policiais enfrentam, muitas vezes,
bandidos altamente armados, e que os policiais têm todo o direito de se
defender. Mas não são justiceiros, e sim profissionais, agentes do estado.
Precisam ser um exemplo de civilidade em meio ao caos que reina infelizmente em
muitos cantos deste país.
É ainda mais problemático que tanto Tarcísio como
Castro aparentemente festejam as mortes dos “suspeitos”. Igual ao ex-governador
Wilson Witzel, que em 2019 celebrava a morte de um sequestrador com pulos no
ar. Parecem torcedores da morte, esses homens que se apresentam como “quadros
técnicos” e tanto falam em Deus.
O caminho do combate ao crime organizado não pode
ser de se igualar ou até superar a brutalidade dos próprios bandidos. Mas de
agir com uso de procedimentos de inteligência. No caso de São Paulo, com o uso
das câmeras portáteis nos uniformes dos policiais, houve uma redução das mortes
causadas pela polícia entre 2019 e 2022, de 697 mortes para 260.
Até que Tarcísio de Freitas veio do Rio para São
Paulo com um discurso de tirar as câmeras novamente. Desde que ele assumiu o
governo paulista, em janeiro, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou,
de 123 pessoas no primeiro semestre de 2022 para 155 no primeiro semestre deste
ano.
Vamos torcer para que o carioca Tarcísio, que
costumava andar na garupa de Bolsonaro, não traga maiores índices de letalidade
policial para São Paulo. No Rio, a polícia matou, no ano passado, 1.327
pessoas. Em comparação, a letalidade policial no Rio tem sido 20 vezes maior
que em São Paulo.
Fonte: BBC News Brasil/DW
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