CÂMERA LENTA PARA REDUZIR MORTES CAUSADAS POR POLICIAIS
No terceiro andar do Centro de Comando e Controle da Polícia Militar do
Rio de Janeiro, uma sala no fundo de um dos corredores tem uma de suas paredes
ocupadas por um painel eletrônico com o mapa do Rio de Janeiro. Ali é feito o
monitoramento diário dos policiais equipados que trabalham com câmeras nos
uniformes, a chamada COP (câmera operacional portátil). Às 15h45 do último dia
19, uma quarta-feira, o painel exibia 2050 pontinhos luminosos verdes. Cada
pontinho é um policial, monitorado em tempo real e marcado por um símbolo que
representa o seu RG. “Esse é um dos horários em que mais tem PMs na rua”, conta
o major Agdan Miranda Fernandes, o responsável pelas câmeras na PM. De súbito,
um dos símbolos verdes no mapa fica vermelho: um PM do 21º Batalhão, em São
João de Meriti, na Baixada Fluminense, sinaliza que parte em direção a uma
ocorrência de violação de domicílio. Imediatamente, um dos agentes que trabalha
no monitoramento dá um duplo clique no emblema daquele policial no mapa,
abre-se uma grande tela à direita, mostrando ao vivo e em boa definição o
registro ao vivo da ação.
Essa rotina acontece desde janeiro de 2022, quando
começou o monitoramento por câmera de vídeo das ações da PM fluminense. O
primeiro teste foi na virada do ano, no Réveillon de Copacabana, evento que
tradicionalmente atrai milhões de cariocas e turistas. O 19º Batalhão de
Polícia Militar foi o primeiro local do Rio a receber uma doca, como é chamada
a plataforma onde as câmeras são armazenadas e carregadas, e teve os primeiros
agentes a circular com a COP no peito do uniforme. Hoje o batalhão de
Copacabana, localizado na praça do metrô Siqueira Campos, abriga a doca com o
maior número de câmeras da PM, com 300 unidades ativas. Em todo o estado, são
9524 câmeras operacionais para os policiais militares em serviço de todos os 39
Batalhões de Área, mais a II Companhia Independente de Paraty e a Companhia
Independente que atende o Palácio Guanabara, sede do governo estadual. O
equipamento também está em operação em outras unidades não convencionais –
Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (Bepe), Comando de
Policiamento Ambiental (CPAM), Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas
(BPTur) e em parte da tropa do Comando de Polícia Pacificadora (CPP). A meta é
chegar próximo de 13 mil câmeras até dezembro.
Apesar da rotina fervilhante do Centro de
Operações, na prática o Rio está atrasado para cumprir a determinação do STF
para que os efetivos da Polícia Civil e da Polícia Militar utilizem câmeras
corporais em suas operações. Estão sem câmeras, por exemplo, as tropas de elite
da PM, como o COE (Comando e Operações Especiais), que inclui o Batalhão de
Choque e o Bope (Batalhão de Operações Especiais) – que fez hoje nova operação
no Complexo da Penha (Zona Norte), deixando 10 mortos e 3 feridos. Na Polícia
Civil também não há câmeras, bem como na maioria das Unidades de Polícia
Pacificadora, outra unidade estratégica e de muita ação em operações policiais.
Apenas duas UPPs estão equipadas com câmeras – a do Jacarezinho, na Zona Norte,
e a do Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul. No dia 14 de julho, completaram-se dez
anos da morte do pedreiro Amarildo de Souza, que foi sequestrado e morto por
policiais militares da UPP da Rocinha, favela da Zona Sul do Rio. Seu corpo
nunca foi encontrado e até hoje nenhum familiar foi indenizado. Em nota, a
Polícia Civil informou que está em processo de instalação das cem primeiras
câmeras, com prioridade para as equipes das delegacias de homicídios e das
delegacias de atendimento à mulher.
O Rio de Janeiro tem a terceira polícia mais letal
do país: em 2022, registrou 8,3 mortes decorrentes de intervenção policial a
cada 100 mil habitantes, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
2023. O estado fica atrás apenas de Amapá e Bahia. Estudo do Grupo de Estudos
dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), em parceria com o Instituto Fogo Cruzado,
mostrou que, de 2020 a
2022, 35% das mortes violentas na região metropolitana do Rio foram de
responsabilidade policial.
No Rio, o projeto do uso de câmeras pela polícia começou em 2009,
quando foi aprovada uma lei estadual determinando a instalação de câmeras de
vídeo internas e externas nas viaturas. Em 2013, o estado comprou 2 mil kits.
Um ano depois, em junho de 2014, três jovens, sob a suspeita de terem praticado
furtos no Centro da cidade, foram levados pelo cabo Fábio Magalhães e pelo cabo
Vinicius Lima para o Parque Nacional da Tijuca. “Se tiver correria vai morrer
aqui mesmo”, diz um dos cabos na gravação. As filmagens foram interrompidas. Um
dos jovens foi executado, outro se salvou por fingir sua morte depois de ter
sido baleado e o terceiro foi liberado. Levando de volta o rapaz liberado, o
cabo Magalhães alertou: “Se tiver alguma fofoca ali na Uruguaiana de que tu
veio aqui em cima com a gente, a gente vai atrás de tu. Escutou? Vai fingir que
nada aconteceu”. Em 2015, a corregedoria da Polícia Militar prendeu dez
policiais acusados de terem violado câmeras, e um ano depois o estado
deixou de fazer repasses à empresa que cuidava da manutenção dos equipamentos.
Só em 2017 Magalhães e Lima foram condenados a 36 anos de prisão.
Em 2019, dos 3.500 veículos da corporação, apenas
500 estavam equipados com as câmeras.
A batalha das câmeras recomeçou no mesmo ano, ainda
no governo de Wilson Witzel, aquele que disse que a polícia deveria “mirar
na cabecinha e… fogo!”. Em julho de 2019, Witzel entregou 2.500 viaturas à PM,
nenhuma equipada com câmera. Em setembro daquele ano, Ágatha Félix, uma
menina negra de 8 anos, morreu ao ser baleada nas costas por um PM que, segundo
a versão oficial, tentava atingir um suspeito no Complexo do Alemão. Em
outubro, o PSB, junto com ONGs e movimentos sociais, levou ao STF a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, conhecida
como ADPF das Favelas. Pedia a revisão da política de segurança pública do Rio
de Janeiro, o reconhecimento das violações de direitos humanos cometidas pelas
forças policiais nas favelas e a elaboração de um plano de redução da
letalidade policial. A instalação de câmeras e equipamentos de GPS nas viaturas
e uniformes dos agentes estava entre os pedidos. O Rio de Janeiro chegou ao fim
de 2019 com 1814 mortos pelas polícias e 75 chacinas policiais, os
patamares mais elevados de toda a série histórica contabilizada pelo Geni/UFF,
de 2007 a 2022.
Veio a pandemia, e as operações letais continuaram.
Em uma delas, em maio de 2020, João Pedro Pinto, um adolescente negro de 14
anos, foi morto por policiais civis que entraram atirando em sua casa, no
Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Em nota, à época, a Polícia Civil disse
que fazia busca por lideranças de facções criminosas. Em agosto daquele ano,
cinco meses depois da morte de João, o STF expediu liminar proibindo operações
nas favelas, a não ser em casos excepcionais. Witzel foi afastado por 180
dias e Cláudio Castro assumiu o governo. As mortes em ações policiais caíram
para 1245.
Em abril de 2021, Witzel foi afastado em
definitivo. Em maio, a Polícia Civil alegou excepcionalidade para
realizar a Operação
Exceptis, entrar na favela do Jacarezinho e matar 27. Além
deles, um policial morreu. Em junho, nova lei estadual, atualizando a de 2009,
determinou a instalação de câmeras nos carros e aeronaves policiais, bem como o
uso de câmeras corporais. Em setembro, os signatários da ADPF 635, entre eles a
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, pediram ao Supremo que obrigasse o
governo do estado a instalar as câmeras em até 180 dias.
Em fevereiro de 2022, o STF determinou que o Rio
apresentasse em 90 dias um plano de controle das violações de direitos humanos
pelas forças de segurança. Em dezembro do mesmo ano, o ministro Edson Fachin
determinou que o governo do Rio de Janeiro apresentasse, em até cinco dias, o
cronograma para instalação de câmeras nos uniformes e nas viaturas de batalhões
especiais de polícia, com prioridade para as áreas com maiores índices de
letalidade policial. Também solicitou metas e cronogramas para a redução da
letalidade policial, além de um indicador de eficiência. Em síntese, Fachin
mandou que o governo comprasse e instalasse as câmeras, e apresentasse um
cronograma de trabalho.
O governo do Rio recorreu. Alegou que o Projeto
Estratégico de Câmeras Operacionais Portáteis estava em fase final de
implantação, mas havia questões de infraestrutura básica, como energização,
adequação com pequenos ajustes de obra civil, local adequado, e de viabilidade
técnica para a efetivação de equipamentos, componentes, peças e acessórios em
cada Unidade Policial Militar. No início deste ano, Cláudio Castro, já como
governador reeleito, discursou contra a instalação das câmeras nas tropas de
elite da PM e Civil. “Vamos recorrer até o fim, lutaremos judicialmente em
todas as instâncias para que essas câmeras não sejam colocadas”, afirmou o
governador.
O assunto passou a mobilizar outras instâncias. Em
fevereiro deste ano, chegou ao Centro de Mediação e Conciliação (CMC), criado
pelo STF para acompanhar a implementação da decisão de Fachin. Também chegou ao
Conselho Nacional de Justiça, em especial ao Grupo de Trabalho “Polícia Cidadã –
Redução da Letalidade Policial”, criado pelo órgão para acompanhar os
desdobramentos da ADPF das Favelas e sugerir medidas para reduzir a letalidade
em operações policiais.
Em audiência de conciliação realizada pelo STF em
16 de fevereiro, a Procuradoria-Geral da República ameaçou pedir intervenção
federal na segurança pública do Rio de Janeiro por conta do descumprimento da
instalação de câmeras nos uniformes dos policiais. O subprocurador Humberto
Jacques de Medeiros, representante da PGR, apontou
que o governo do RJ age no limiar do que poderia ser considerado má-fé e que,
nesse caso, a possibilidade de intervenção federal estava na mesa da PGR. Ele também citou a possibilidade de enquadrar o descumprimento pelas
autoridades do Rio como crime de desobediência.
No final de março deste ano, o GT Polícia Cidadã
concluiu o relatório acerca da letalidade policial no estado do Rio. O
relatório estabeleceu a meta de redução da letalidade policial em 70% no prazo
de um ano, usando como referência os dados de 2021. Entre as medidas
recomendadas estava a adoção de “critérios para a instalação das câmeras
corporais com atenção à redução da letalidade policial e a proteção da vida de
negros, pobres e residentes em favelas e periferias”. O sociólogo Daniel
Hirata, professor da UFF e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos
Ilegalismos (GENI-UFF), foi um dos autores. E alerta que, no Rio, as câmeras
não têm cumprido a função a que foram destinadas: “O governo do Estado do Rio
de Janeiro iniciou a implementação-piloto das câmeras em lugares onde não há
uma questão maior relativa à letalidade policial, mas a determinação do STF diz
respeito especificamente à utilização das câmeras para redução da letalidade
policial, ainda que as câmeras tenham outros efeitos benéficos.”
No CMC, começaram as audiências sobre o caso do
Rio. A primeira ocorreu no dia 27 de abril e a segunda no dia 4 de maio. As
partes interessadas na implementação das câmeras cobraram o atraso no
cronograma da Polícia Civil, o desrespeito à ordem de prioridade na implantação
nas unidades de maior letalidade e a forma de acesso às imagens. A Procuradoria
do Estado do Rio de Janeiro se posicionou tentando demonstrar o avanço no
cumprimento das medidas, mas reiterou: a instalação dos equipamentos
atrapalhava a execução de ações de inteligência e poderia colocar em risco a
vida de agentes de segurança e de moradores das comunidades.
Em 6 de junho deste ano, Fachin manteve a
determinação de instalação de câmeras nos uniformes, com ênfase nas equipes da
polícia especializada, e deu 30 dias para que o Estado do Rio adotasse medidas
para compartilhamento de informações e arquivos digitais das operações
policiais com o Ministério Público, a Defensoria e as famílias de vítimas. Não
havia mais recurso.
Praticamente no vencimento do prazo determinado
pelo STF, no dia 4 de julho, foi publicado no Diário Oficial do Estado do Rio
de Janeiro um decreto determinando a instalação das câmeras nos uniformes das
tropas de elite das polícias Militar e Civil. O governo do estado afirma que os
equipamentos devem ser implementados até o fim do ano. Segundo a PM, a
expectativa é que, até lá, o estado do Rio de Janeiro tenha 255 docas (nome da
plataforma eletrônica que armazena as câmeras ). Hoje são 170.
Para o policial, a câmera funciona da seguinte maneira: no início do
expediente, ele vai até a doca de seu batalhão, retira um aparelho, que já sai
ligado e gravando, e coloca no uniforme. Durante todo o dia, o agente não mexe
no equipamento. A câmera é configurada para criar pequenos vídeos de 30 em 30
minutos, para que, no final do turno, não haja um arquivo muito pesado para ser
baixado e transferido. O único momento em que o policial precisa operar a
câmera é quando está em uma ocorrência. Nesse caso, o agente deve apertar um
pequeno botão na lateral da câmera para que se inicie uma gravação à parte, sem
tempo limite, separada daquelas geradas automaticamente. Quando a ocorrência
termina, o PM deve apertar o mesmo botão para encerrar a filmagem. Isso pode
ser repetido ao longo do dia quantas vezes forem necessárias. Esse processo faz
com que as gravações de ocorrência sigam para uma pasta diferente daquelas de
rotina. Ao final do expediente, as pequenas gravações de 30 minutos, as de
“rotina”, são enviadas para uma pasta e ficam armazenadas na nuvem por no
mínimo 60 dias. Já as gravações de ocorrências, aquelas marcadas pelos
policiais, vão para uma outra pasta e ficam na nuvem por no mínimo 12 meses, o
mesmo prazo para as gravações que registrarem letalidade.
Em conversa com a piauí numa sala do primeiro andar do Centro de Comando e
Controle, o major Agdan Fernandes, responsável pelas câmeras, detalhou a
complexidade do processo de instalação delas nos batalhões ou nas companhias.
“A infraestrutura elétrica das unidades que vão receber as câmeras, links de
internet, climatização do ambiente, chip de dados dentro das câmeras, toda esse
ferramental tem que ser pensado”, explica, com apoio de uma apresentação de
slides. No caso das UPPs, diz ele, esse processo seria mais difícil ainda: a
maioria não tem acesso à internet e, em muitas unidades, a estrutura é um
container alugado, e a polícia não tem autorização para fazer as furações
necessárias para a instalação das docas. A apresentação de Fernandes destaca os
principais objetivos da implementação das câmeras, segundo a PM: “Proteger os
policiais e agentes nos casos de falsa acusação” e “Aumentar a transparência e
a fiscalização das ações policiais e do uso proporcional da força”. Não
menciona a letalidade policial, cerne da decisão de Fachin.
O major segue em suas explicações. Diz que, para
que o processo das COP funcione de acordo com o planejado há a necessidade
primária de três sistemas estarem em funcionamento: autenticação de usuário
(todo agente precisa fazer um cadastro no sistema); visualização ao vivo e GPS
(localizar e visualizar as imagens ao vivo); e um software de gestão das
imagens, para armazenar os vídeos que são enviados. Fernandes ressaltou que
naquele momento havia mais de 8 milhões de vídeos na nuvem de
armazenamento.
O que acontece com os milhões de vídeos que registram ações policiais? A
visualização deles fica restrita à Secretaria de Estado da PM, mas as imagens
podem ser requisitadas pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público ou pela
Justiça. Oficiais militares, o Centro de Comunicação Social da PM (CCOMSOC), o
ISP (Instituto de Segurança Pública) e civis réus, por meio de seus advogados,
também podem solicitar as imagens. Fernandes mostrou um painel com as 560
requisições feitas pelo Judiciário, desde dezembro de 2021, quando o projeto
foi implantado. Esse total faz parte de todas as solicitações que ainda estão
em processo. Cada arquivo de vídeo se torna peça que vai instruir determinado
inquérito.
Os estados de Santa Catarina e São Paulo são
referências na implementação das câmeras nos uniformes policiais. Em São Paulo,
a adoção das câmeras foi parte da implementação do programa Olho Vivo,
capitaneado pela própria Polícia Militar, em intercâmbio com forças de
segurança de vários países. O uso das câmeras já vinha sendo estudado desde
2014; em 2018 foi criado um grupo para tratar do assunto, e as câmeras entraram
em funcionamento em 2020. Pelos dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro
semestre de 2022 a letalidade policial caiu 71,7% em relação ao primeiro
semestre de 2020; as 697 mortes registradas em 2019 caíram para 260 em 2022.
Nos batalhões que adotaram câmeras, a queda foi de 76,2% entre 2019 e 2022;
naqueles onde o dispositivo não era utilizado (73 batalhões), a redução foi de
33,3%.
O secretário-geral da OAB-RJ, Álvaro Quintão,
presidiu a Comissão de Direitos Humanos da entidade e acompanhou de perto o
debate sobre as câmeras. “Em São Paulo, em 2022, o número de mortes de
adolescentes por confrontos policiais caiu mais de 40%. A polícia passou a ter
uma atuação diferente, que beneficia a sociedade e o próprio policial militar.”
Em Santa Catarina, relata, o número de registros de feminicídio e violência
doméstica subiu mais de 50%. Segundo ele, muitos casos de violência doméstica
eram subnotificados e “resolvidos” pelo policial sem registro formal da
ocorrência. “Diziam: ‘Ah é briga de casal, vamos resolver na conversa, tomar um
café”, conta. Com as câmeras gravando, os policiais fazem o registro completo,
como manda o protocolo, e os números sobem.
No Rio, um ponto de conflito a respeito das
câmeras, além da resistência governamental, é a própria recepção dos
equipamentos pela polícia. “A implementação tem sido feita por base de decisões
judiciais, portanto é vista pelos policiais como uma imposição”, avalia Hirata,
do Geni-UFF. “Acrescente-se a isso o fato de que autoridades policiais e
políticas se posicionaram contra a instalação das câmeras, então a recepção
dessa tecnologia dentro das forças é a pior possível.” Para Quintão, as
corporações do Rio resistem às câmeras porque se veem vigiadas: “Acham que isso
veio para tomar conta do policial, vigiar a atuação do policial. Na verdade
veio para garantir que a situação seja corrigida, que as pessoas estejam agindo
corretamente.”
Renato Sérgio de Lima, professor da FGV-EAESP e
diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que o uso
das câmeras em São Paulo foi uma forma de reação a uma medida do Ministério
Público de São Paulo, que exigia medidas de controle da letalidade. A principal
diferença entre a situação do Rio de Janeiro e a de São Paulo é que a adoção do
programa Olho Vivo é marcada pela iniciativa da própria PM, diante da
necessidade de maior controle sobre o que o policial da ponta estava fazendo. O
projeto se instituiu como um programa voltado para o comando e o controle das
tropas, buscando reforçar a padronização da atividade dos policiais. Os efeitos
do combate à letalidade e à corrupção aparecem como consequência desse controle
maior sobre a prática policial. “O segredo do sucesso do programa é que ele não
foi pensado contra a instituição. É um programa da própria instituição que tem
um componente que responde à pressão do Ministério Público Estadual, mas que
reforça o traço institucional da cultura organizacional da polícia de São
Paulo”, avalia Lima.
No Rio de Janeiro, além de a adoção das câmeras ter
ocorrido por pressão do STF e das entidades, as características das tropas são
menos favoráveis para a implementação correta da tecnologia, avalia o diretor
do FBSP. Lima diz que as polícias fluminenses, ao invés de priorizar a
institucionalidade, valorizam a ação dos cabos e soldados, que estão na base da
hierarquia, são pouco transparentes e têm comandos que não se responsabilizam
pela ação do policial. O fato de que as câmeras podem eventualmente mostrar
procedimentos fora de conformidade – não só corrupção ou violência, mas o uso
inadequado de equipamentos, por exemplo – também serve de fator de resistência ao
videomonitoramento: “A instituição joga na conta do policial da ponta a
responsabilidade por apertar o gatilho, mas não dá condições para que ele faça
diferente.”
Daniel Sarmento, advogado da ADPF 635 e professor
de Direito Constitucional da UERJ, aponta que o estado, além de ter lutado
contra a instalação das câmeras, agora tem buscado subterfúgios para descumprir
a ordem do Supremo: “Um dos pedidos que Supremo concedeu é de que haja acesso
às gravações pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pelas vítimas
mediante solicitação. Até hoje a regulação do estado não permite o
encaminhamento para Defensoria, nem para as vítimas. A Defensoria Pública
relata que nunca conseguiu receber um vídeo.” Sarmento diz que a
inacessibilidade das gravações compromete a eficácia do uso das câmeras com
finalidade de proteção de direitos. Para o jurista, as dificuldades
encontradas para reduzir a letalidade policial são históricas. “A polícia do
Rio de Janeiro tem uma cultura muito entranhada de violência. É o legado da
ditadura e da escravidão”, afirma, “Mas a gente precisa enfrentar. A lógica da
Segurança Pública não é a lógica de guerra, uma favela não é um território
inimigo.”
Para os especialistas, outro fator associado à
baixa efetividade no Rio de Janeiro é a ausência de uma política pública que
oriente as forças policiais. A Secretaria de Estado de Segurança (SESEG) foi
extinta em 2019 pelo então governador Wilson Witzel, e cada polícia tem sua
própria secretaria, além de autonomia financeira e administrativa. Hirata
afirma que esse processo aponta para a autonomização das forças da Polícia
Civil e da Polícia Militar, enfraquecendo a possibilidade da mediação pública
política sobre as instituições. A extinção da SESEG, em sua avaliação, valoriza
a dimensão operacional e enfraquece a perspectiva de uma ação coordenada
integrada das forças. Aí se insere a queda de braço entre as polícias e o STF:
“As polícias reivindicam saber mais do que o Supremo sobre a operação policial,
mas o Supremo não está falando simplesmente da atividade policial, está falando
da segurança pública, e a segurança pública precisa prestar contas, a
transparência é fundamental.”
O secretário de Acesso à Justiça do Ministério da
Justiça, Marivaldo Pereira, disse que o governo federal está desenvolvendo
com a Polícia Rodoviária Federal um projeto piloto, o “bodycams”, a fim de
criar protocolos para o uso de câmeras em todo o país. Segundo Pereira, a ideia
é criar uma política de segurança pública em parceria com órgãos do governo
federal e dos governos estaduais. “Queremos que o modelo em estudo sirva de
parâmetro para a implementação de câmeras no fardamento em todo país e que a
iniciativa vire uma política de Estado de segurança pública. Estudos no mundo
todo e no Brasil apontam que a adoção de câmeras no fardamento leva à melhoria
da qualidade da segurança pública, reduzindo o número de mortes nas operações,
as reclamações sobre a atuação da polícia e melhorando a qualidade da instrução
dos processos judiciais.”
A sala do terceiro andar do Centro de Comando e Controle da PM, que
monitora os agentes com as câmeras, acumula histórias ilustrativas da ausência
de uma política pública sobre as câmeras. No canto, perto da janela, há uma
pequena doca com 8 equipamentos instalados e carregados. Todos estão
funcionando normalmente, mas servem apenas para demonstração. Enquanto simulava
a retirada de uma das câmeras, Fernandes riu ao lembrar um episódio que
aconteceu nos primeiros meses de implantação. “Um policial voltou pro batalhão
com a câmera descarregada com poucas horas de uso. Achamos estranho”, relembra
o major. Descobriram que o agente usara a entrada na lateral da câmera para
carregar o celular pessoal. Hoje essas entradas de carregador foram
desativadas. Sem um entendimento amplo da importância do equipamento, o risco é
esvaziar o uso da tecnologia, alerta Hirata: “As câmeras são eficientes quando
inseridas dentro de uma política mais ampla; senão, são só uma bugiganga.”
Fonte: Revista Piauí
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