A escola britânica centenária em que alunos decidem regras e o que
querem estudar
Ben não queria tirar o pijama. Há dias, ele dormia
e, depois, brincava no jardim, na cama elástica ou subia em árvores, com a
mesma roupa de dormir.
Ben havia acabado de entrar na escola Summerhill,
um centenário internato britânico que permite que as crianças estabeleçam suas
próprias normas. Por isso, ninguém podia obrigá-lo a tomar banho ou trocar de
roupa.
Os dias passavam e Ben ficava cada vez mais sujo.
Até que seus colegas chegaram ao limite. Eles levaram o caso à assembleia
semanal, que decide democraticamente tudo o que acontece na escola.
A assembleia decidiu que Ben não poderia continuar
assim. Surgiu então uma nova regra que seria acrescentada às cerca de 400
normas que regem o internato: a regra do pijama.
Ben podia passar o dia todo de pijama? A assembleia
decidiu que sim. Mas, à noite, ele precisaria trocar de roupa e vestir outro
pijama.
Assim é Summerhill, a escola onde as crianças têm a
liberdade de estabelecer suas próprias normas e não é obrigatório assistir às
aulas.
Fundada em 1921 pelo educador escocês Alexander
Sutherland Neill (1883-1973), Summerhill baseia-se na premissa "freedom
but not licence" ("liberdade, mas não licença", em inglês). E,
cem anos depois, muitos ainda consideram que esta filosofia é um experimento
radical.
Segundo ela, as crianças devem ter liberdade para
fazer o que desejarem, desde que não interfira na liberdade dos demais. Isso
inclui a liberdade de aprender o que quiserem, quando e como quiserem.
São 10h30 da manhã de uma sexta-feira de junho. As
crianças da Classe 2, que recebe estudantes com 10 a 12 anos, são uma boa
amostra dessa independência.
Está na hora da oficina de redação, que tem nove
crianças inscritas, mas só há uma aluna em aula com a professora. Outros três
estudantes jogam Banco Imobiliário na sala comum e uma quarta, confortavelmente
instalada em uma poltrona e imersa em um livro, apenas levanta os olhos quando
os visitantes entram no salão.
No lado de fora, o sol brilha pela primeira vez em
muitos meses. As crianças logo trocam as cartas do jogo por saltos e piruetas
na cama elástica no jardim.
"No início do trimestre, você indica as aulas
de que gosta, mas depois é livre para ir ou não", explica Latisha, há nove
anos no colégio. Ela entrou com sete anos.
Ela e seu irmão são a segunda geração de estudantes
de Summerhill da mesma família. Seu pai, Adrian, também passou a infância na
escola. Ele gostou tanto que matriculou seus filhos.
"Depois, ele foi para a universidade e se
dedicou aos negócios", conta a menina, que quer seguir os passos do pai.
"Muita gente pensa que todos nós de Summerhill
queremos nos dedicar a atividades artísticas, mas não é verdade. Eu mesma, na
verdade, não tenho muito jeito", confessa Latisha.
• Ambiente
internacional
Latisha — ou Tisha, como todos a chamam — faz parte
do grupo de 60 estudantes de Summerhill. Eles têm entre 5 e 17 anos.
Um cartaz na entrada da escola — uma mansão
vitoriana de tijolos vermelhos, revestida de pedra — recebe os visitantes com a
mensagem "Beware! Children playing!" ("Atenção! Crianças brincando!", em
inglês).
Ao lado de diversas construções anexas que servem
de dormitórios e oficinas, a escola se estende por quase cinco hectares de
jardins e bosques, na região de Suffolk, no leste da Inglaterra.
Todos os alunos convivem em regime de internato,
exceto as crianças menores. A escola custa entre 10 mil e 23 mil libras (cerca
de R$ 60 mil a R$ 140 mil) por ano. São valores impeditivos para muitas
famílias, mas bem abaixo de muitos internatos britânicos.
Atualmente, mais de um terço dos estudantes vem do
exterior. Eles são de países como China, Japão, Polônia ou, no caso de Tisha,
Alemanha.
A escola não obedece ao currículo nacional e as
crianças não são divididas em cursos, como nas escolas britânicas
convencionais.
Também não há exames em Summerhill, mas a escola
prepara os alunos com 15 e 16 anos que desejarem prestar as provas para o
Certificado Geral de Educação Secundária (GCSE, na sigla em inglês), exigido no
Reino Unido para ingressar na educação superior.
Quando os estudantes completam 12 ou 13 anos, um
orientador os ajuda a formar o caminho a ser percorrido depois que eles saírem
de Summerhill.
"Se uma criança quiser ser, por exemplo,
cientista espacial quando for maior de idade, nós nos asseguramos de oferecer
todas as opções e bases para que ela possa seguir este caminho", afirma o
subdiretor da escola, Henry Readhead, à BBC News Mundo (o serviço em espanhol
da BBC). "Por isso, para nós, é muito importante ter as
qualificações."
Edie, Joe e Iris — esta, vestida com um enorme
roupão de pelúcia rosa — estão se preparando para o exame de Matemática em uma
das aulas, com música ao fundo. Os três alunos têm 16 anos e precisam passar no
GCSE de matemática para os estudos que querem cursar posteriormente.
"Vocês gostam?", pergunta a reportagem.
"Mmm...", os três se entreolham e caem na
risada.
Benji tem 10 anos e também está escrito em
Matemática. "Às vezes, vou à aula", confessa ele.
Sua grande paixão é a oficina de carpintaria, onde
está construindo uma vassoura voadora. Ele já conseguiu esculpir e envernizar o
cabo, que exibe com orgulho. Depois, irá colocar as cerdas.
Ele ainda não pensou em como irá fazer a vassoura
voar, mas diz que terá alguma ideia a respeito.
Benji chegou a Summerhill há poucos meses. Ele veio
de uma escola convencional onde, segundo ele, algumas crianças riam dele
porque, às vezes, gagueja.
"Aqui, sinto que posso me expressar melhor e,
além disso, ninguém me força a aprender, faço o que mais gosto", explica
Benji. Ele mostra uma varinha mágica que acabou de colar e está secando na
janela.
Na aula de Música, Sure toca no baixo uma canção
que ele próprio compôs com seu pai, Warabe, que canta e toca guitarra. Warabe
também foi aluno da escola nos anos 1980. Os dois formaram um grupo, chamado
Peasoup.
As estantes da sala misturam discos de Bach com The
Cure. É um dos locais favoritos de Sure.
Warabe trabalha no setor de informática, mas a
Música, que ele descobriu em Summerhill, é sua paixão até hoje. De vez em
quando, ele passa algumas semanas na escola.
A poucos metros dali, o professor Steven lê em voz alta
um trecho do romance Holes ("Buracos", Ed. Martins Fontes), do
escritor americano Louis Sachar. Sua voz profunda e pausada tem efeito sedante
sobre as crianças da Classe 3, que o ouvem com atenção.
Steven foi diretor de uma escola estatal por 30
anos. Apaixonado pelo magistério, ele entrou em Summerhill quando se aposentou.
• Pedagogia
livre
Diferentemente de outros métodos pedagógicos
alternativos, como Montessori ou Waldorf, o ensino em Summerhill, de alguma
forma, é convencional.
"Quando [os alunos] decidem finalmente
aprender e ir para a aula, eles vão com motivação, com entusiasmo e não
precisam que o professor facilite ou enfeite [a matéria]", conta o
subdiretor. “De fato, tivemos o caso de um professor que trouxe um método
alternativo e as crianças disseram: 'você pode simplesmente nos ensinar?'"
Readhead é neto do fundador da escola, Alexander
Sutherland Neill.
Entre o grande público, é possível que Summerhill
seja menos conhecida do que outros internatos britânicos famosos e mais
aristocráticos, como o Eton College, por exemplo.
Mas a aposta de A. S. Neill teve grande influência
sobre as chamadas pedagogias "livres", especialmente nas décadas de
1960 e 1970. E Summerhill também é pioneira no modelo de escola democrática.
Gerações de professores de todo o mundo estudaram
ou, pelo menos, ouviram falar de Summerhill — incluindo a professora mexicana
Montserrat Mejía Ortiz, que se apaixonou pela filosofia de A. S. Neill quando
era estudante de pedagogia.
Montse, como todos a chamam, chegou à escola em
2015. Ela explica que o modelo ensina as crianças "a serem responsáveis
pelo próprio aprendizado, pelos resultados e pela própria vida".
Ela conta que, aqui, as desculpas não funcionam —
"se fui reprovada, não foi porque o professor fez alguma coisa; fui reprovada
porque não estudei, porque não fui às aulas".
A professora começou em Summerhill como
houseparent, uma função que ela descreve como "ser a mãe das crianças
internas. Em caso de emergência física ou emocional, você está ali para cuidar
delas."
Desta função, Mejía Ortiz passou a lecionar para a
Classe 1, que recebe crianças de cinco a nove anos. Ela também dá aulas de
espanhol para os alunos que querem aprender o idioma, como Catherine, de cinco
anos.
"Ela veio para mim depois de ver Encanto [o
desenho da Disney, de 2021]", conta a professora à BBC News Mundo.
O que mais a agrada em Summerhill é que a escola
não impõe às crianças expectativas sobre o que elas deveriam saber em cada
idade.
"Se, com oito anos, você não souber ler
perfeitamente, não acontece nada, logo você irá aprender", ela conta. "É
preciso deixá-los aprender no próprio ritmo."
Mas os inspetores de Educação do Reino Unido nem
sempre concordaram com esta visão. A escola esteve a ponto de ser fechada em
1999, quando a inspeção estatal quis forçar a escola a ter aulas obrigatórias.
E também afirmou que o internato deveria ter banheiros separados para meninos e
meninas.
O caso chegou à Justiça. Se fosse avaliada segundo
os mesmos padrões das escolas convencionais, Summerhill seria considerada um
desastre.
Mas a escola conseguiu convencer os juízes de que
as inspeções deveriam ser feitas considerando valores e filosofia própria. E,
desde então, o internato não enfrentou mais problemas.
"Meu avô acreditava que era importante criar
uma escola que se ajustasse às crianças e não fazer com que as crianças se
adaptassem à escola", explica Henry Readhead. "Ele acreditava que as
crianças têm direito a uma infância plena e feliz."
Segundo esta filosofia, é importante liberar as
crianças das expectativas impostas pela educação convencional, pelos pais ou
pela sociedade "para que elas possam seguir suas próprias motivações,
sejam autônomas e tomem suas decisões a respeito da comunidade em que vivem e
da educação que recebem", afirma o subdiretor.
Nico, por exemplo, é um menino espanhol com 17 anos
que cursa o colégio desde os 11 anos. Ele é apaixonado pelo trabalho de
ferreiro.
Na oficina, ele nos mostra uma faca que ele mesmo
fez. "A folha é de aço de Damasco e tem forma de pluma", explica ele,
com orgulho. É uma verdadeira obra de arte.
Ele quer se dedicar a este trabalho e já encontrou
uma escola para continuar sua formação.
"Nico terá as qualificações necessárias para
entrar no instituto, mas existem outras 99 qualificações que não são
necessárias", explica Readhead. "É um tempo que ele pode passar na
oficina, fazendo aquilo de que gosta."
Mas alguns veem problemas na ideia de que as
crianças escolham seu próprio currículo e estudem apenas o que elas quiserem.
É difícil saber se alguém gosta de algo sem ter
tido contato com aquilo "e, frequentemente, existem coisas de que não
gostamos porque não tivemos sucesso com elas, mais do que por qualquer outra
razão", afirma à BBC News Mundo o professor de educação e valores Nigel
Fancourt, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Segundo o acadêmico, existem certas coisas que
precisamos saber, gostemos ou não. "Precisamos também aprender a conseguir
fazer as coisas que não são fáceis para nós", acrescenta ele.
Nesta mesma linha, a doutora em educação e psicologia
Catherine L’Ecuyer defende que este tipo de pedagogia concentrada no interesse
das crianças pode acabar sendo uma trava para elas, já que, "ao limitar a
criança ao seu campo de conhecimento — que é praticamente nulo, pois a criança
nasce sem saber nada —, o que você está fazendo é eliminar oportunidades de
aprendizado".
• A
assembleia
São três horas da tarde — hora da assembleia, que é
o pilar que sustenta o modelo de convivência em Summerhill.
Nela, a voz de todos tem o mesmo peso. O voto de
uma criança de cinco anos tem o mesmo peso do voto da diretora.
A assembleia é o tribunal da escola. Nela, todos
são juízes.
É ali que se solicitará permissão, por exemplo,
para passar o fim de semana na casa de um parente ou para saltar na cama
elástica com uma amiga, como pede hoje uma menina de cerca de 12 anos. Em
Summerhill, apenas as crianças menores podem usar a cama elástica em grupo, por
questão de segurança.
A assembleia também trata das brigas entre os
colegas e define os planos para a próxima festa da escola.
Alba, por exemplo, tem nove anos. Ela conta que
pretende levar à assembleia suas amigas Bee e Catherine. Ela afirma que as
meninas "riram da forma como me visto".
Alba é charmosa e gosta de usar delineador nos
cílios e brilho labial. Hoje, ela está usando uma camiseta curta. "Gosto
de me vestir assim e não me importa o que os outros pensam", ela conta.
Tisha explica que a assembleia oferece às crianças
a confiança necessária para dizer o que pensam e fazer valer suas opiniões.
Ela não lembra exatamente qual foi o primeiro
assunto que levou à assembleia, quando entrou no colégio, com sete anos.
"Não era nada grave, mas para mim parecia importante", ela conta.
Mas Tisha se lembra bem de como se sentiu.
"Apesar de ser tão pequena, senti que tinha toda a comunidade me apoiando,
foi uma sensação incrível", relembra ela.
Como em qualquer outra escola, Summerhill não está
livre dos casos de assédio escolar, embora eles não sejam muito frequentes em
uma comunidade tão pequena e restrita.
Mas o que talvez seja um diferencial em relação aos
outros centros é que, aqui, todos os integrantes do colégio — alunos,
professores e administradores — participam de cada assunto e procuram soluções.
Na assembleia de hoje, não é discutido nenhum caso
de assédio, mas Nico apresenta à reunião o caso de uma colega que, muitas
vezes, fica preguiçosamente na cama na hora de levantar-se pela manhã.
Existe muita liberdade em Summerhill, mas também há
certos horários que devem ser respeitados porque foram definidos em assembleia.
O café da manhã, por exemplo, vai das 8h às 8h45 da
manhã. Às 8h30, todos devem estar vestidos. Caso contrário, os beddies officers
— "policiais da cama", crianças maiores que cuidam para que todos se
deitem e se levantem nos horários definidos — podem impor uma multa.
A punição pode ser, por exemplo, 10% do pagamento
semanal (cada criança recebe aos sábados uma quantia que varia em função da
idade) ou uma multa em forma de trabalho — talvez um período de tarefas
comunitárias na escola, como ajudar o jardineiro ou recolher o lixo.
Na assembleia de hoje, muitos levantam a mão para
opinar sobre o caso da colega dorminhoca e decidir em conjunto qual será o seu
castigo.
Um propõe que ela deva lavar os pratos de uma
refeição. Outro, que precise levantar-se no dia seguinte às sete horas da manhã
para dar um passeio.
"Mas amanhã é sábado", lembra outra
criança. "Se ela se levantar às sete, vai acordar os demais."
Por fim, todos votam e decidem que o castigo mais
justo é uma "multa média de trabalho": 40 minutos de tarefas
comunitárias.
E, é claro, a assembleia também decidiu pelo voto —
mesmo com a discordância de vários professores — que a cama elástica é mais
divertida quando saltamos com a nossa melhor amiga. De forma que, sim, o pedido
está aprovado!
Para Henry Readhead, é fundamental que as crianças
vivam em um ambiente igualitário com os adultos à sua volta.
"Mais do que perguntar por que os votos de
todos têm o mesmo valor, a pergunta deveria ser: 'por que não?'", defende
ele. "As crianças deveriam ter os mesmos direitos que nós na hora de tomar
este tipo de decisão."
A autorregulamentação fez, por exemplo, com que
eles próprios decidissem proibir o uso de telas — incluindo as redes sociais
dos celulares dos adolescentes — antes das quatro horas da tarde.
Mejía Ortiz explica que, por algum tempo, foi
permitido que as crianças jogassem videogame ou usassem as telas no horário e
pelo tempo que desejassem.
Até que um menino de nove anos acabou levando a
questão para a assembleia, depois de perceber que precisava que alguém lhe
dissesse quando deveria parar. Ele ficava o tempo todo em frente ao computador
e se esquecia até de comer.
"Isso ter vindo deles é o máximo, é um assunto
que discutimos muito durante a assembleia", comenta a professora.
A assembleia termina e o jardim está novamente
repleto de crianças brincando.
"Aqui, queremos celebrar a infância como um
período essencial para os seres humanos", resume Readhead. "E não é
só uma ideia de A. S. Neill, é uma ideia para a humanidade."
Fonte: BBC News Mundo
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