Um
programa para a agricultura familiar brasileira
Desenvolvimento Agrário promete apostar na
agroecologia para a produção de alimentos. Mas será preciso um programa que
articule produtores e universidades. Formação, crédito, seguro-safra e compras
públicas serão essenciais.
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1. Introdução
Tomei conhecimento da demanda do novo MDA,
solicitando à sociedade civil contribuições para o programa de assistência
técnica e extensão rural (ATER) do governo. Embora atrasado na minha
contribuição, quero dar algumas ideias a partir de 40 anos de experiência como
diretor e técnico de uma ONG de promoção do desenvolvimento agroecológico da
agricultura familiar, a AS-PTA, e como participante do CONDRAF ao longo dos 14
anos de sua existência. Neste período, fiz parte do processo de formulação e de
aplicação das duas políticas mais significativas (pela sua amplitude) que
incidiram sobre as formas de produção adotadas pelos agricultores familiares: a
de crédito e a de ATER.
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2. Uma questão de método
Fiquei surpreso com a falta de uma avaliação da
aplicação destas (e de outras) políticas por parte do governo. Isto não
aconteceu nem antes das eleições, na formulação das propostas do candidato
popular, nem no processo da transição, que se concentrou na formulação de
propostas genéricas, nem agora, com o novo MDA em ação. Pedir propostas de
programa de ATER, sem uma visão do impacto do conjunto das políticas adotadas e
uma avaliação dos acertos e erros de cada uma delas, me parece um convite para
a repetição de problemas já vividos no passado.
O MDA deveria ter chamado um ou mais seminários
abordando os aspectos mais gerais e mais específicos apontados acima. Destes
seminários deveriam participar desde os que, nos governos de Lula e de Dilma,
formularam e executaram estas políticas, além das organizações dos agricultores
que viveram os impactos destas políticas, das organizações da sociedade civil
que contribuíram neste processo e dos especialistas das academias que estudaram
o que ocorreu.
Sem esse esforço estamos navegando às cegas.
Na equipe de transição afirmou-se, com muita ênfase,
o princípio da adoção da agroecologia como o modelo produtivo a ser promovido
pelo governo, no que concerne à agricultura familiar. Será que esta proposição
corresponde a uma autocrítica implícita sobre a orientação das políticas
públicas aplicadas no passado?
A ênfase atual na opção agroecológica representa um
avanço sobre os conceitos dominantes nas equipes governamentais nos governos de
Lula e de Dilma, que viam a agroecologia como uma prática dirigida a um nicho
de produtores e não como um modelo a ser generalizado. Por outro lado, sem uma
avaliação das políticas postas em prática no passado, especificamente no pouco
que se fez na promoção da agroecologia, fica ainda mais precária a discussão de
como levar a agroecologia para o conjunto da agricultura familiar.
E, desde logo, fica-se sem saber se esta meta maior
(levar a agroecologia para o conjunto da agricultura familiar) é viável no
prazo dos quatro anos deste governo. A meu ver, ela não é viável e, não o
sendo, torna-se necessário discutir metas adequadas para favorecer a transição
agroecológica. Torna-se necessário, também, refletir sobre o que propor para a
parcela da agricultura familiar que não poderá ser integrada nesta
transição.
A meu ver, existe uma adesão política à proposta da
agroecologia, o que muito me alegra, mas pouca noção sobre as implicações desta
decisão. Como fazer a promoção do desenvolvimento agroecológico não é
algo que esteja dominado nem pelos técnicos do governo nem pela maioria das
organizações dos agricultores e das entidades que se voltam para apoiar a
agricultura familiar, sejam elas estatais sejam elas da sociedade civil.
Neste ponto aproveito para lembrar de uma
experiência recente de promoção massiva da transição agroecológica, tentada nos
dois primeiros anos de um governo progressista no Sri-Lanka. Vivendo os mesmos
limitantes que estamos enfrentando, o governo deste país asiático fracassou
redondamente e teve que abandonar a política, inclusive por pressões dos próprios
agricultores familiares. É um alerta importante para que evitemos todo
voluntarismo ideológico ao formular e executar políticas de promoção do
desenvolvimento agroecológico.
A iniciativa do DATER/MDA, ao convocar propostas
sobre um programa de assistência técnica agroecológica, comete o erro de achar
que isto poderá se fazer sem que se ajustem as políticas de crédito, de seguro
da produção, de mercado, entre outras. Além disso, comete-se o erro de não
rever os modos de se fazer a promoção do desenvolvimento agroecológico,
derrapando, na prática, para a adoção de uma abordagem que funciona bem para um
modelo de desenvolvimento convencional, de tipo agroquímico e motomecanizado.
Neste modelo, as políticas que facilitam o desenvolvimento são operadas separadamente.
As soluções técnicas são formuladas por empresas de pesquisa, como a EMBRAPA ou
as estaduais; estas soluções são levadas aos agricultores pela assistência
técnica; os bancos entregam créditos para financiar a adoção destas práticas; o
mercado ou o governo compra os produtos. São operações separadas, embora
integradas conceitualmente em um modelo compartilhado pelos diferentes
atores.
A prática da promoção da agroecologia aponta para a
necessidade de se integrar todas estas políticas em programas dirigidos para
grupos de agricultores familiares, definidos em espaços territoriais e sociais
com alguma unidade física, organizacional e de agroecossistema produtivo. Ao
invés de se aplicarem políticas separadas e de forma universal, o governo
deveria oferecer recursos para projetos integrados de
desenvolvimento, colocando-os em um mesmo orçamento a ser gerido pela entidade
que assume a promoção do desenvolvimento de um conjunto de beneficiários bem
definido. Crédito, pesquisa aplicada, fomento para a experimentação camponesa,
assistência técnica, beneficiamento e mercado deveriam fazer parte de um mesmo
pacote de recursos.
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3. Como oferecer projetos integrados?
Não existe modo de entregar recursos para projetos
integrados no presente momento. Seria necessário criar um fundo de
promoção do desenvolvimento com uma dotação robusta e licitar projetos a
serem apresentados por entidades ou conjuntos de entidades, incluindo
(idealmente) organizações dos agricultores, de ATER, de pesquisa, de mercado e
de crédito. Formular o modelo destes projetos vai cobrar a contribuição de quem
tem experiência nos diferentes aspectos que envolve a promoção do
desenvolvimento. Vai ser um exercício complexo, até porque não existe um modelo
único de abordagem de desenvolvimento adotado por todos os que hoje se empenham
neste objetivo. Vai ser necessário modular a proposta de forma a que ela
contemple diferentes abordagens, ao mesmo tempo em que o governo deve procurar
ir propiciando intercâmbios entre os projetos locais de forma a que as melhores
metodologias sejam aproveitadas, com o tempo, por todos os agentes.
Há experiências parciais de integração de diferentes
políticas, em particular no programa Ecoforte, do BNDES/FBB. No entanto, esta
experiência não inclui o crédito, um elemento chave para os projetos
integrados.
Vai ser preciso ajustar o programa a limitantes
legais. As práticas de crédito de maior sucesso entre as organizações da
sociedade civil são os Fundos Rotativos, onde existe um financiamento não
bancário dos agricultores. No entanto, se os recursos dos projetos integrados
são definidos como doações para as entidades promotoras, não pode haver
devolução por parte dos agricultores, mesmo que estes recursos fiquem nas
comunidades dos beneficiários. É um dos impasses a ser superado.
Como não existe uma adesão maciça dos agricultores
familiares para a adoção da agroecologia, não só este modelo aqui proposto
deverá ter condições muito atraentes para o público, como vai ser preciso
pensar em outras políticas dirigidas para os que não aderirem a ele.
A dimensão de um programa deste tipo, gerido por um
Fundo de Desenvolvimento Agroecológico da Agricultura Familiar, fica na
dependência de vários fatores: a quantidade de adesões entre os agricultores
familiares; a existência de entidades de apoio de vários tipos (como já
sinalizado acima) capacitadas para este fim; a existência de técnicos formados
nas práticas e nas metodologias da promoção da agroecologia. Na minha
experiência estes fatores limitarão a demanda inicial e/ou a capacidade
operacional das entidades de apoio deste programa e deste Fundo. Vai ser
necessário inventariar esta demanda e a capacidade instalada para atendê-la
para dimensionar o tamanho do programa. Um exercício de avaliação dos custos
destes projetos deverá ser feito, respeitando a diversidade de situações
existentes no país. Entidades envolvidas na promoção da agroecologia em
distintos biomas e regiões deverão ser chamadas a contribuir nesta formulação.
Finalmente, vai ser preciso enfrentar o problema legal
da forma de relação entre o governo e os executores destes projetos. No
passado, tanto o modelo de convênios como o de contratos mostraram-se
problemáticos. O jurídico do MDA terá que se debruçar sobre estes problemas e
buscar a melhor solução para eles. É mais uma das razões que me levam a
considerar que uma avalição das políticas previamente aplicadas é mais do que
necessária.
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4. O que fazer com os agricultores familiares que
não quererão ou não poderão ser beneficiários deste programa?
Acredito que esta parcela da agricultura familiar
será a mais numerosa ao longo deste governo. Se o programa de apoio a projetos
integrados de desenvolvimento agroecológico chegar a contemplar 10% dos
agricultores familiares, algo como 380 mil famílias, já será um tremendo salto
qualitativo no avanço da agroecologia. E o que fazer com os cerca de 3,5
milhões de outros?
Devemos lembrar que existem cerca de 2 milhões de
agricultores familiares classificados como minifundistas, isto é, com
áreas disponíveis menores do que o módulo fiscal de cada município. Embora o
módulo varie muito de lugar para lugar, a grande maioria desta categoria tem
menos de 2 hectares de terra, sendo que nem toda ela pode ser plantada, por
várias razões. Estes produtores são candidatos natos a programas de reforma
agrária, mas não vejo as condições econômicas e políticas para um amplo
processo de aumentar o acesso deste público a novas terras. A melhor proposta
possível para estes agricultores é a criação de um programa de melhoria da
qualidade alimentar/nutricional das famílias, incrementando a produção de
hortaliças e frutas, a criação de animais de pequeno porte (porcos, galinhas,
ovelhas, cabras, abelhas, peixes, outros) e alimentos básicos como feijão,
milho, mandioca, trigo, centeio, arroz, dependendo da região. Serão sistemas
intensivos no uso do espaço e dependentes, sobretudo no semiárido, mas não só,
de infraestruturas de captação, depósito e distribuição de água de chuva. São
muitas, sobretudo no Nordeste, as experiências deste tipo e que podem ainda
gerar pequenos ganhos financeiros com o comércio de curta distância, além da
melhoria alimentar e nutricional das famílias.
Pode parecer contraditório indicar que existem
poucos técnicos em práticas e métodos da agroecologia, assinalar que um
programa agroecológico terá limites por causa disso e propor um programa de
autoabastecimento alimentar agroecológico envolvendo 2 milhões de famílias. A
meu ver os projetos técnicos para este fim serão muito menos complexos e
demandadores de tempo e investimentos de todo tipo para se viabilizarem. E a
formação de técnicos com base nas experiências existentes, bastante mais
simples também. A meu ver este programa deveria ser dirigido prioritariamente
para as mulheres camponesas, como já é o caso nas experiências citadas. Devido
à situação de pobreza deste público não deve haver recurso de crédito, mas
doações para a construção de infraestruturas hídricas (ver o programa que já
existiu, “Uma Terra e Duas Águas”), para construção de cercas e abrigos para animais,
compra de animais, de sementes e de mudas de árvores frutíferas ou para outros
fins, de esterco para adubação, de insumos para a produção de caldas de
controle de pragas e doenças.
Como técnicos com experiência nestas práticas não
abundam, o governo terá que financiar um programa de formação específico,
usando o apoio de universidades e da EMBRAPA.
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5. O que propor para os agricultores familiares que
não estarão contemplados nas duas propostas acima apresentadas?
Estamos falando de 1,4 milhão de agricultores. Uma
minoria se incorporou ao modelo agroquímico promovido pelos governos de FHC,
Lula e Dilma, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. Outros são agricultores
tradicionais ou produtores adotando sistemas híbridos, com práticas
tradicionais e convencionais.
Estas categorias são as que mais contribuem,
atualmente, para a produção de alimentos de base para o mercado interno. A
parcela, estimada em cerca de 500 mil, adotando as práticas convencionais, vai
necessitar da manutenção das políticas universais consagradas pelos governos
citados acima: crédito, preços mínimos, seguro, compras governamentais e
assistência técnica convencional.
Chamo de políticas universais aquelas que se
dirigem, indiferenciadamente, a todos os interessados, que as acessam individualmente.
Ou seja, o produtor se dirige à Emater local para assistência na formulação de
um projeto de crédito e o apresenta nas agências dos bancos públicos que
executam o Plano de Safra. Se este produtor ambiciona vender seus produtos ao
governo, ele deverá formular um projeto e apresentá-lo à CONAB, seja para
suprir a demanda da PNAE, a do PAA ou a formação de estoques reguladores. Este
processo é totalmente distinto do descrito na proposta de projetos integrados
de desenvolvimento agroecológico, ou os projetos de autosuficiência alimentar
apresentados acima. Nestes casos as políticas são integradas em programas e o
acesso é coletivo e dirigido a grupos organizados de produtores em territórios
bem definidos.
Apesar de não haver condições para levar este
público a adotar a produção agroecológica, é possível promover alguns avanços
na direção da produção de alimentos mais saudáveis. Mesmo uma assistência
técnica convencional sabe como lidar (ou pode se informar a respeito nos
centros de pesquisa) com sistemas de manejo integrado de pragas, invasoras e
doenças, reduzindo o volume e a toxidade dos produtos químicos de controle.
Entretanto, vai ser preciso fazer um exercício de formação das gerências dos
bancos públicos, de forma a que contribuam e não inibam o uso destas práticas
ao receberem projetos de crédito dos agricultores.
Dado o fato de que uma parcela significativa deste
público estar integrada nos circuitos de produção e comercialização de commodities,
vai ser preciso criar políticas de preços mínimos para produtos alimentares
muito atraente, além de crédito facilitado, combinadas com uma forte demanda
das compras governamentais para atrair mais agricultores familiares a se
converterem em produtores de alimentos. E a cobertura de um seguro safra robusto.
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6. Iniciativas em apoio aos programas de promoção da
agroecologia
A promoção da agroecologia já acumulou muita
experiência em todo o país nos últimos 40 anos, mas as abordagens, métodos e
práticas não foram sistematizadas e difundidas. Seria da maior importância que
o governo promovesse um amplo processo de sistematização e avaliação destas
experiências, visando a socialização dos melhores resultados entre os
praticantes, sejam eles as entidades de apoio ou as entidades dos agricultores.
A produção de materiais didáticos em forma de manuais e vídeos educativos
permitiria ampliar o número de técnicos capazes de assumir novos programas
integrados. O diálogo com as universidades e centros de pesquisa teria papel
fundamental nesta iniciativa.
Por outro lado, não vai ser possível atrair uma
ampla parcela de produtores, sobretudo aqueles já integrados no circuito
de commodities, sem que se adote uma política que elimine ou, pelo
menos, alivie a concorrência desleal que favorece os que adotam o modelo do agronegócio.
A suspensão de subsídios, a cobrança de impostos e a inibição de práticas
predatórias ao meio ambiente teria um papel gigantesco para favorecer a ênfase
no esforço de promover a autossuficiência na produção alimentar no Brasil. E
entre os que usam práticas agroquímicas na produção de alimentos, a ANVISA
deveria pôr em prática um sistema de controle da contaminação por agrotóxicos
dos produtos que se dirigem à mesa dos brasileiros.
Finalmente, cabe ao governo (incluindo o MEC e o
MDA) abrir um debate voltado para a redefinição dos currículos das
universidades e escolas técnicas rurais, procurando criar uma formação voltada
para a agroecologia desde o ciclo básico. Até agora, apesar dos progressos, os
centros de ensino rural estão orientados para uma formação convencional,
agroquímica, e oferecem apenas uma ou outra cadeira que introduz o tema da
agroecologia. No nível de pós-graduação existem mestrados e doutorados com
abordagem agroecológica, sempre dificultados pela contradição entre a formação de
base convencional e um currículo agroecológico em total contradição.
Fonte: Por Jean Marc von der Weid, em Outras
Palavras
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