O
negro no Brasil é um lugar móvel
O novo livro de Muniz Sodré O fascismo da cor (Vozes, 280 páginas)
coloca holofotes no racismo brasileiro pós-abolicionista, que está atrelado à
emergência do fascismo europeu e com a vigência de uma “forma social escravista” nativa, em que
status e brancura tomam o lugar das antigas formas de segregação. A obra
apresenta quatro premissas.
- A primeira é que, diferentemente do apartheid norte-americano, o racismo não escravagista no Brasil coincide de modo significativo, na
passagem do século 19 para o 20, com a emergência das ideias fascistas na Europa, as
quais, no início, não aportam em termos políticos, mas principalmente por
meio do eugenismo e do eurocentrismo das elites.
- A segunda, o irônico conceito de “nacional-racismo”, que substitui a
antiga segregação colonial por formas novas de exclusão.
- A terceira abraça a hipótese de que a prática do racismo excludente, de
consequências sociais e econômicas para a maioria populacional do país, se
dá também pelas interações cognitivas e sensíveis da diversidade de fontes
e saberes do que pelas determinações conceituais internas de uma ou mais
disciplinas do pensamento social (Economia, Sociologia, etc.).
- A quarta, o conceito de “forma social escravista” pretende mostrar como o regime anterior de dominação modula-se
socioculturalmente para subsistir a abolição econômica, jurídica e
política da servidão colonial. É a versão brasileira da
fórmula lampedusiana: “Mudar para não
mudar”. Sodré conversou com o Extra Classe por
telefone em uma tarde de abril e aprofundou os principais temas do seu
livro.
Muniz Sodré
de Araújo Cabral, baiano, de 81 anos, é pesquisador no campo da
Comunicação e do Jornalismo. Publicou quase uma centena de livros e artigos na
área da Comunicação (jornalismo em especial), mas também livros de
ficção e um romance. Algumas obras tornaram-no mais conhecido,
como Monopólio da Fala e Comunicação do Grotesco. É um teórico
brasileiro que tem circulação e respeitabilidade no exterior, sendo professor e
palestrante em diversas instituições em países
como Suécia, França, Estados Unidos, Espanha, Portugal, Colômbia, Bolívia, Uruguai, Peru,
entre outros.
<<<< Eis a entrevista.
·
Uma das questões que mais tem se destacado após o
lançamento do seu novo livro O fascismo da cor é o debate em torno do racismo
estrutural e sistêmico. O senhor poderia explicar essa distinção?
A noção de estrutura para mim é a noção de um
sistema mais ou menos fechado. Mais ou menos, porque a estrutura pode ter
internamente a base, mas é também uma noção de uma interdependência de
elementos e de patamares. Concretamente, o Estado é uma estrutura que articula
elementos jurídicos, políticos e econômicos. Então, é preciso haver
correspondência estrutural entre os sistemas econômico, político, jurídico e psicossocial.
Sendo assim, a estrutura tem uma coerência interna, apesar de a base ter
contradições, a estrutura é uma totalidade. O que eu digo é que
o racismo foi estrutural durante o período da escravidão. Foi estrutural na
pós-escravidão nos Estados Unidos e na África do Sul, para citar
dois exemplos conhecidos. Já no Brasil, a estrutura escravista, que
incluía os sistemas jurídico, econômico e político, acabou na abolição. O racismo era
parte dessa estrutura. Era a ideologia dessa estrutura. Mas
o racismo não tinha de ser tão defendido naquela época, nem tão
explicitado, a não ser em círculos intelectuais, porque não precisava.
O racismo já tinha os sistemas político, jurídico e econômico
sustentando a escravidão, o racismo era natural. Aquele sujeito
trabalhava de graça porque era inferior. Então, é a partir da abolição que
começa efetivamente o racismo (fora da estrutura), o racismo
institucional.
·
De que forma?
Ele, o racismo, passa a se dar em nível institucional. As instituições são
núcleos-base da sociedade e da sociabilidade. São exemplos a família, a
religião, a escola, o exército. Ou seja, instituições como mecanismos de
constituição da cidadania por aprendizagem. Uma instituição é uma produção de
saber. E é importante fazer distinção
entre organizações e instituições. As organizações são
as empresas, que produzem para atender às necessidades sociais e visam ao lucro
(empresa, produtividade e lucro). Ao mesmo tempo, existem organizações do
Estado que não visam ao lucro, mas são provisórias, como o bolsa-família,
por exemplo. Dito isso, o racismo pós-abolição não é mais transmitido
pela estrutura social, mas pelas instituições: família, religião, escola,
exército, grupos de vizinhança. É aí que o racismo se perpetua.
·
Por isso ele é sistêmico?
Por isso ele é sistemático, diria. Ou seja, ele está
em toda parte onde a instituição atua.
·
Qual é a importância para a luta antirracista em
definir com precisão essa questão entre racismo estrutural e sistêmico, saindo
um pouco do debate acadêmico e levando para o dia a dia?
A primeira coisa, se o racismo brasileiro fosse
realmente estrutural, não haveria nada que se pudesse fazer a não ser
aceitá-lo. Ou então travar uma luta civil, o que não é o caso. Este foi o caso
dos Estados Unidos, da África do Sul. Essa fórmula que se deu nesses
lugares não encontra condições no Brasil.
·
Por que nos EUA o racismo ainda é estrutural?
Existem leis racistas em estados do Sul.
·
A tese do racismo estrutural foi importada dos EUA?
Olha, quem popularizou esse termo
no Brasil foi o Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e
Cidadania. Eu li o livro dele e não vi nenhuma citação da noção de estrutura.
Não sei se ele faz essa distinção. Mas, sem dúvida nenhuma, essa noção não
é brasileira. Por outro lado, não sou especialista em racismo no mundo.
Mas, no caso dos EUA, da África do Sul, certamente se enquadra. Ou então, um estado como
a Somália, em que a diferença entre grupos étnicos é estrutural e o Estado
se configura dessa forma. No Brasil, quando se instituíram as cotas
raciais, a argumentação da imprensa e das universidades era
de que, dentro de 10 anos, teríamos guerra racial no Brasil, porque se
dizia que preto era preto, branco era branco e se tentava dar alguma vantagem
aos negros. Ora, já se passaram 20 anos e não houve guerra nenhuma. Aqui
o racismo funciona por ambiguidade, em nível institucional,
na subjetividade. O principal mecanismo do racismo brasileiro não é o
cacete armado. Não é a lei que exclui, não é a empresa que não emprega negro. O
principal mecanismo é a negação. E que tipo de negação? A que exclui o
negro como pessoa igual ao branco no comportamento, no pensamento, na emoção. E
essa negação atinge tanto o racista quanto o objeto do racismo.
Nenhum racista, a não ser os de grupos neofascistas, admite que é racista.
É, mas diz que não é. A negação é um mecanismo ao mesmo tempo excludente e ao
mesmo tempo defensivo. Isso só é possível fora de uma estrutura. Isso não faz
sentido dentro de uma estrutura. Dentro de uma estrutura, você sabe quem é
negro e quem é branco. Aqui no Brasil essas escalas são móveis, tanto
que as pessoas mudam de cor em registro de nascimento, em declaração do censo
nas políticas de cotas ou por autodeclaração de políticos. Tem o exemplo gritante
do que aconteceu no Congresso Nacional, onde 80 pessoas, entre deputados e
senadores, mudaram de cor. Se autodeclararam pardos, negros ou indígenas para
preencher as cotas partidárias. O ACM Neto foi outro caso nessa
linha. O que quero dizer com isso? Que no Brasil o negro é um lugar
móvel.
·
Por que o negro é um lugar?
Em topologia, o lugar não é físico, mas uma posição
ocupada matematicamente dentro de um espaço. Por isso, é possível que um branco
ocupe o lugar de um negro. Ele pode fazer isso quando compõe, quando sente.
Você pega o Paulo Vanzolini – compositor de ‘Ronda’, ‘Volta por Cima’
e ‘Na Boca da Noite’ – por exemplo, o sambista. As músicas
do Vanzolini são músicas de preto. Ele escrevia e compunha como um
autor negro e ele era um descendente de italianos, branco e cientista
do Butantã até morrer. Mas, olhando para as composições, a gente
diria que era negro, porque o negro é uma posição.
·
E o senhor?
Concretamente, em relação a mim, eu me declaro
negro. Sou mestiço, mulato. Nos EUA eu sou negro, sem dúvida.
No Brasil, é ambíguo. Eu tenho negro por parte de pai, a mãe do meu pai
era escrava africana, por parte de mãe indígena, por conta do meu avô materno.
E a mãe da minha mãe era cigana. Então eu sou muito perto de negro, indígena e
cigano. Por uma escolha pessoal e pertencimento cultural, me declaro negro.
·
Chamam de miscigenação. É correto esse conceito?
Vou responder com uma pergunta. Se um americano
branco e uma francesa branca se casam, eles são miscigenados? Não são
considerados miscigenados por serem brancos. Mas pela aplicação do conceito,
seriam. Ou um russo e um finlandês? Talvez o finlandês considere. Mas pela
aplicação do conceito, seriam. Então, certa vez estava na China com a
minha esposa. Em uma loja, eu estava falando um pouco de mandarim e uma moça
ficou irritada porque eu negociava preços. Ela disse, então, que eu deveria ser
mestiço de coreano com chinês. Esse conceito de miscigenação, portanto, é
um conceito racista. Quando se vê o outro como miscigenado, é sempre a partir de uma posição hegemônica e
superior. Geralmente, é referido como miscigenado o preto com branco ou índio
com branco, mas, na verdade, a ideia biológica de miscigenação é de uma
simbiose generalizada. O termo mestiço é a mesma coisa.
·
Quando o senhor diz que os EUA têm na sua guerra
civil um evento fundacional inesgotável de destruir para construir como
alavanca do capitalismo, ainda hoje a guerra como mola propulsora do capital é
uma ideia que se renova. Como isso se dá? E de que forma a apologia da guerra
interfere na organização humana no mundo e como isso reflete em estrutura e
sistemas de opressão?
O trabalho e a guerra são dois elementos
estruturantes da cultura e da vida norte-americana. Em 250 anos de democracia,
os Estados Unidos passaram apenas 16 anos sem participar de conflitos
internos ou externos. É uma nação guerreira cujo seu evento fundacional é um
conflito que matou entre 680 mil e 780 mil pessoas numa guerra civil colossal e
mortífera. Isso sem falar no extermínio dos indígenas, boa parte de fome
ao abaterem 50 milhões de búfalos que eram fonte de alimento das tribos. E
depois, no resto do mundo, impondo uma cultura que sai exterminando gente em
nome da democracia e dos direitos universais do homem. Houve casos
de limpeza racial praticada pelos norte-americanos fora dos EUA,
não só tentativas de exterminar negros. No começo do século 20, pelo menos 10%
da população filipina foi morta por norte-americanos (entre 250 mil e um milhão
de civis). Os Estados Unidos é um grande país do ponto de vista da cultura
universitária, do desenvolvimento de tecnologia, da música popular, do cinema.
Mas é um país de exterminadores, de guerreiros, de matadores. E esse sentimento
de fazer uma sociabilidade pela morte é muito pesado para o inconsciente
coletivo. Eu não encontro nenhuma explicação para esses crimes seriais e
massacres, senão a busca de uma sociabilidade para o perdedor por meio do
fundamento deles, que é a guerra. Aliás, uma guerra permanente e uma cultura
bélica.
·
A guerra permanente é reflexo de um estado paranoico
ou o estado paranoico produz a guerra permanente?
Eu diria que neste caso o Estado é paranoico no
sentido de o tempo inteiro ver no resto do mundo quem não é aliado como
inimigo. Se eu tivesse de fazer um livro que fosse uma extensão do
capítulo A paranoia americana, eu não buscaria nos livros de Antropologia
e Sociologia. Eu buscaria no romance popular norte-americano de espionagem, que
talvez seja para mim a maior fonte de informação. Toda literatura de espionagem
norte-americana que envolve o FBI, a CIA, as agências do Tesouro
norte-americano é uma literatura paranoide. É sempre uma literatura em que
os EUA está sendo ameaçado por um estrangeiro. Isso pode ser durante
a Guerra Fria, o narcotráfico, os árabes, a China,
a Venezuela. Sempre há um inimigo constituído que ameaça.
·
Essa paranoia faz o norte-americano branco ver o
norte-americano negro como um estrangeiro dentro do próprio país?
Não tanto como um estrangeiro, mas como um intruso. Como alguém que não deveria
estar ali. É um pouco pior do que um estrangeiro. Porque o estrangeiro pode ser
aquele que visita e até seja acolhido. Não é o caso. O intruso é aquele que
visita e quer ficar e participar. E esse intruso, portanto, com sua permanência
se torna monstruoso. O monstro não é o estrangeiro nem o desconhecido, mas um
conhecido que a gente desconhece. A gente pega a imagem do Frankenstein,
ele é um monstro. Mas, no entanto, ele tem toda a forma de um homem. No
entanto, ele é um conhecido, que é um homem, mas que se desconhece da forma
como ele se apresenta. Então passamos a ter medo desse conhecido que a gente
desconhece. Assim é o medo do negro.
·
Qual é a raiz bíblica e/ou mítico-religiosa do
racismo, que vai do antissemitismo à discriminação dos povos africanos?
Este mito está no Pentateuco. Um dos filhos
de Noé, Canaã, é amaldiçoado e gerador das pessoas da cor negra. Ele
desobedece a Noé e recebe esta maldição. E seria este estigma
negativo que geraria os negros e os africanos. Há uma fundamentação bíblica
para este ódio, que é o grande mal-estar civilizatório do século 20 e continua
no século 21.
·
A partir da ascensão das igrejas evangélicas de
matriz norte-americana, houve uma influência do racismo norte-americano no
racismo brasileiro e, por consequência, uma ofensiva contra as culturas e
religiões afro?
Isso surge com o crescimento do neopentencostalismo, depois dos anos 1950. Antes
disso, os protestantes não tinham muita importância no Brasil. Essas
igrejas se popularizaram mais do que as tradicionais, inclusive no meio
protestante, como metodistas. Essas igrejas crescem como cogumelos nas
periferias das cidades e se baseiam na teologia da prosperidade. Ou seja,
incluem o dinheiro na doutrina e as torna atrativas.
Fonte: Entrevista com Muniz Sodré para César Fraga,
em Extra Classe
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