“Continuamos
na mesma sociedade escravocrata de antes com roupagens mais modernas,” diz
Jessé de Souza
Engana-se
quem pensa que a escravidão no Brasil teve seu fim em 1888 com a assinatura
da Lei Áurea feita pela princesa Isabel. As raízes do nosso país
seguem atreladas à mentalidade escravocrata, seja nas relações de trabalho,
seja na condenação do povo negro e mestiço ou nas relações pessoais. É a partir
dessa herança que o sociólogo Jessé de Souza busca discutir como esse fato moldou e ainda molda a
sociedade brasileira.
Na
videoconferência intitulada Desafios da sociedade e da cultura atual à
missão evangelizadora da Igreja hoje, promovida pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia - FAJE, o sociólogo comenta que a
atitude escravocrata e, consequentemente, racista segue dando as
cartas na elite brasileira como forma de legitimar a dominação social e
política. “Toda vez que se tentou redimir os pobres nesse país,
a elite e a classe média branca saiu histérica, gritando
contra a corrupção, mas no fundo não tem nada a ver com isso. É para manter
o povo negro no seu lugar, sem direitos, andando de bicicleta por
14 horas para entregar a pizza quentinha na casa do burguês”, pontua.
Segundo
ele, é preciso entender que o legado da corrupção, ideia provida por
intelectuais como Sérgio Buarque e usada pela elite nacional para reprimir os impactos da
escravidão na sociedade, é secundário em relação ao racismo
enraizado até hoje em todos os brasileiros. “Essa herança vai ser
interpretada como ‘o povo brasileiro é corrupto e, portanto, eleitor de
corruptos’. A elite de São Paulo se via como americana e
a classe média branca como europeia pela origem. Então o inconfiável,
o eleitor de corrupto vai ser o negro e o mestiço que antes eram vítimas de
preconceito racial, mas agora são vítimas do preconceito cultural. Ninguém mais
fala em raça, é ciência”, afirma.
A
atividade integra o 3º Congresso Brasileiro de Teologia
Pastoral: A pastoral da Igreja do Brasil no século XXI: balanço, incidências,
perspectivas, iniciativa do Grupo de Pesquisa Teologia
Pastoral, da FAJE, em parceria com outras instituições de ensino de
Teologia.
<><> Confira a entrevista.
- Como se relacionam os conceitos de autocrítica e
aprendizado? Houve autocrítica na sociedade brasileira?
Jessé de Souza – Existe
algo que é válido tanto para indivíduos como para a sociedade. A nossa origem
vai ser definidora a não ser que nós aprendamos a nos autocriticar, seja no
âmbito individual, seja no âmbito social. Só há aprendizado enquanto há
autocrítica; não existe nenhum outro modo para que isso aconteça.
Nossa
sociedade fez muito poucas vezes uma autocrítica. Nós continuamos na
mesma sociedade escravocrata de antes com roupagens mais modernas,
fingindo uma coisa que não se é: democrática, representativa. É um grande circo
armado, um teatro que esconde uma sociedade perversa e doente. Uma sociedade que elege o Bolsonaro é uma
sociedade doente. Uma pessoa para votar
em Bolsonaro tem sérios problemas ou vulnerabilidades.
Eu
dei o título de “A sombra da escravidão” para este tema. Podemos reverter essa
situação de um ponto de vista cristão que, para mim, é sempre pela igualdade
entre os seres humanos e a defesa da sua dignidade. Foi
o cristianismo quem primeiro defendeu o universalismo e é
exatamente isso que a gente sofre. Quero discutir as razões históricas, sociais
e políticas para que isso tenha acontecido.
- Como a escravidão moldou a sociedade brasileira?
Jessé de Souza – É
claro que as pessoas sabem que a escravidão foi importante, mas a
escravidão foi reprimida pela elite, pelo pensamento, pelo cinema, pelo teatro,
pela indústria cultural. Ela foi reprimida em favor de uma concepção que dizia
que éramos filhos de Portugal, onde não havia escravidão, e aí ela
passa a ser uma efeméride, uma coisa secundária em relação à herança portuguesa
da corrupção, essa mentira que, infelizmente, 207 milhões de pessoas acreditam
nisso.
Vamos
desconstruir essa mentira aqui e reafirmar uma interpretação latente que jamais
se tornou manifesta entre nós, mostrando que até mesmo a legado da corrupção
tem a ver com a moralização do racismo. A escravidão no Brasil começa em 1532 com a instauração das primeiras fazendas de
cana-de-açúcar com mão de obra escrava. Ela dura até 1888 e abrange o país
inteiro. A herança escravocrata é a herança nacional mais importante.
O
que significa escravizar o outro? É reforçar a vulnerabilidade desta pessoa
para que ela não tenha defesa em relação à sua tirania. Por exemplo, quando as
donas de casa ficaram com raiva da Dilma por ela querer dar uma carteira de trabalho para as domésticas, houve um escândalo geral de pessoas falando: “Não vai ter mais
nenhuma empregada”. Ou seja, a classe das empregadas domésticas é exatamente a
mesma escravidão que havia antes. Essa pessoa precisa continuar, 500 anos
depois, sem direito nenhum. Ela precisa ser frágil e vulnerável. É isso que
chamo de escravidão. Nossos olhos não foram treinados para isso, inclusive
os olhos dos intelectuais. Não existe nenhuma definição uníssona sobre o
assunto, estamos no senso comum, usando nomes. O conceito é outra coisa, é
científico, ele reconstrói a realidade em pensamento a partir de seus elementos
hierarquicamente importantes.
Querer
compreender a sociedade inteira é a minha ambição. Se você souber o que é o
principal, todo o resto vão ser secundário. Outro ponto é como se constroem as
classes sociais e as relações entre elas. Vou defender a continuidade
da escravidão e não da relação com Portugal. Isso é secundário
em relação à escravidão. É a leitura que todos os grandes intérpretes fizeram
da singularidade do Brasil e eu sempre critiquei isso.
A escravidão continua
até hoje porque a forma de legitimação da dominação social e política reproduz
o mesmo esquema da escravidão, e a construção das classes sociais é montada
para reproduzir a mesma situação da escravidão há 500 anos. Além de
estimular a vulnerabilidade do oprimido e explorar o trabalho, a escravidão
produz o gosto pela humilhação do vulnerável. Isso é definidor da herança
escravocrata entre nós: o prazer de humilhar, de dar o esporro na empregada, no
entregador etc. isso continua presente.
A escravidão termina,
formalmente, em 1888 e logo em 1889 temos a Proclamação da República. É a República do faz de conta, no máximo 2% da população
votava. Mesmo assim, com essa quantidade baixa de pessoas votando a eleição era
fraudada a bico de pena. Esse é o mundo desta elite, reproduzindo a escravidão
na forma da legislação, dizendo que as pessoas trabalhadoras não têm nada a
dizer e não podem participar do processo eletivo. Só o rico que manda, que
fala. Isso contribuía para um ambiente de racismo aberto como
acontece nos Estados Unidos, no sul do país com a Ku Klux Klan. Aqui era um ambiente semelhante, com anúncios
no Diário de Pernambuco procurando empregada negra que não
estivesse esquecido de cumprir a iniciação sexual com todos os homens da casa.
Isso era naturalizado, ninguém se chocava com isso.
- IHU – Qual foi a importância do governo de Getúlio Vargas
para a luta antirracista?
Jessé de Souza – O racismo atual
é insidioso, ruim, precisa ser criticado obviamente, mas foi uma conquista
histórica de Getúlio Vargas. Essa República do faz de conta foi retirada do poder
em 1930 na única revolução que tivemos, apesar de ter sido feita
pelas elites subalternas contra a elite de São Paulo.
Getúlio instaura
um programa da indústria brasileira: a construção do setor de bens de produção,
siderúrgica, petróleo, cimento. Ou seja, a parte da indústria que vai criar
outras indústrias. Além disso, ele modernizou o Estado brasileiro com a criação
de agências importantes. Mas ele também fez a única revolução
cultural que esse país já teve. Getúlio encarnou um antielitismo,
um antirracismo que não havia existido antes. Seu governo foi a
primeira inflexão histórica de contraposição a essa elite escravocrata que
comandava o Brasil até 1930.
De
que modo ele fez isso? Primeiro, atacou o racismo. Usou a ideia de bom
mestiço, de Gilberto Freyre, que cabia como uma luva em seu projeto de inclusão
social da população. Ele atingiu isso, inicialmente, ao celebrar a nossa
herança africana e não escondendo-a. A partir de Getúlio, vamos ter o
samba, o futebol como praticado pelos negros, a música, a arte... a identidade
nacional vai ser construída a partir dos setores populares e isso permanece até
hoje. Se você diz que o negro e o mestiço são um lixo, como você vai usar essa
pessoa se o conhecimento social é a base de tudo? O racismo dizia,
antes, que o negro é primitivo, animalesco, e o branco era
inteligente. Todos acreditavam nisso em 1930, inclusive os antirracistas como,
por exemplo, Joaquim Nabuco, um homem que fez uma defesa monumental e
atual contra a escravidão, mas que acreditava na inferioridade do
negro. Com Getúlio acontece a primeira inflexão disso ao celebrar a herança
africana como importante.
Getúlio sanciona
uma lei que faz as empresas obrigatoriamente empregar 2/3 de pessoas nascidas
no Brasil. No contexto dessa época, os europeus brancos ficavam com
todos os bons empregos e, a partir de então, as coisas mudaram. Ele vai montar
uma democracia antirracial? Obviamente não. Para extirpar
o racismo das pessoas, é preciso 50, 100 anos e bater nisso todos os
dias. Porque o racismo é a forma como o leigo percebe o mundo. A
leitura mais simples é a racial. Para afastar isso, que está em cada um de nós,
é preciso ter controle e vigilância eterna. Isso mostra como o racismo está
incorporado em nossas células, na nossa pele, na nossa mente.
Apesar
de não ter construído uma democracia racial, Getúlio construiu
o racismo cordial brasileiro. A partir dele é possível compreender como é
o racismo e a forma como escravidão continua até hoje. Ele proíbe culturalmente
o racismo explícito na esfera pública. Os brasileiros vão continuar racistas,
mas não podem mais dizer que são, não é mais razoável dizer isso a partir desta
afirmação do componente negro africano na nossa sociedade. É dessa forma,
mostrando sua importância, que você afirma grupos oprimidos.
<><> Elite brasileira
A elite
de São Paulo, que manda e decide em tudo, é uma elite de ladrões. O que a
elite brasileira faz é roubar. A elite rural é de ladrões e
assassinos desde o ano zero. Eu entrevistei famílias do Norte do
Paraná que foram expulsas nos anos 1970 com revólver na cabeça. É uma
elite montada por ladrões de terras e assassinos de posseiros e índios. Esse é
o nosso agro pop. Nos falta
uma elite industrial que nunca se construiu, por mais
que Getúlio tenha trabalhado neste sentido. Ela seria importante
porque é mais racional: precisa vender e revender seus produtos e precisa de
gente para comprar. Foi o que [Henry] Ford fez nos Estados
Unidos ao explorar os trabalhadores, mas entregar uma remuneração adequada
para o trabalhador comprar o seu carro e movimentar o mercado. Em países com
uma forte fração industrial como a Alemanha e o Japão, isso se
mostra importante porque ela fica com uma parte melhor do bolo, mas ela
constrói o bolo. Nós nunca tivemos essa elite.
Nossa elite não
produz um carro, um parafuso. O grande negócio, tanto da elite
rural quanto da elite financeira, é assaltar o Estado. Por conta
disso, o Estado é tão importante para essa elite. Ela coloniza o orçamento
público: ele não vai para saúde e educação, vai para uma dívida pública que
ninguém auditou. Getúlio auditou e conseguiu dinheiro para construir
a Petrobras. Quem estuda a dívida pública nacional diz que 90% é fraude. É
dívida privada transformada debaixo dos panos em dívida pública. Ninguém
fala disso porque eles são donos das televisões, dos jornais. Isso nunca vai
sair na mídia.
É
a elite do saque e é por conta disso que ela quer controlar
o Lira, o Banco Central. E isso mostra justamente a continuação
da escravidão porque é o saque de curto prazo. “Deixa eu roubar
agora, deixa eu botar no bolso agora, deixa eu botar o juro a 10% apesar da
inflação estar baixa.” Explora através de juros, tudo que compramos tem juros
embutidos e vai para o bolso dessa meia dúzia por trás dos bancos. O país
inteiro é assaltado e fica pobre.
- Após os avanços de Getúlio, houve alguma retaliação desta
elite? A intelectualidade da época ajudou a criar uma roupagem do racismo?
Jessé de Souza – A elite conseguiu
em 1936 fazer com que intelectuais montassem um novo racismo sem usar a palavra
raça, de tal modo a moralizar esse saque que a elite faz e entrando em aliança
com a classe média branca que, entre nós, não chega 20%. Esses 20% vão dominar
a sociedade em nome da elite (advogado, administrador, CEO de banco) por
títulos acadêmicos. E essa classe quer o quê? Monopolizar o
conhecimento e o capital cultural legítimo – as boas
universidades, as línguas estrangeiras – e o povo não pode ir junto. O golpe de 2016 aconteceu
não por conta de corrupção da Dilma, mas porque começou a ter negro ao
lado dessa gente na universidade.
Isso
foi inventado por Sérgio Buarque e será a forma como o país vai se entender. Ele vai
construir essa história de uma herança de Portugal, da corrupção. Falar de
corrupção na Idade Média é uma bobagem porque não se tinha nem a noção de bem
público, muito menos noção moderna de corrupção, que foi inventada como ideia
na Revolução Francesa. É uma fraude científica completa. Essa herança vai
ser interpretada como “o povo brasileiro é corrupto e, portanto, eleitor de
corruptos”. Você cria uma cultura de golpes de Estado. Apesar de Sérgio
Buarque ter pensado no povo brasileiro como um todo, a elite de São
Paulo se via como americana e a classe média branca como europeia pela
origem. Ela nunca se sentiu irmanada por esse povinho negro e mestiço. Então o
inconfiável, o eleitor de corrupto vai ser o negro e o mestiço que antes eram
vítimas de um preconceito racial, mas agora são vítimas do preconceito
cultural. Ninguém mais fala em raça, é ciência.
Essa
ideia vai ser bombardeada em todos os jornais, em todas as mídias até hoje, por
toda a indústria cultural imbecilizando o povo. É isto que acontece.
Nós somos tão inteligentes como qualquer outro, mas você pode imbecilizar o
povo. Como? Falar uma única mensagem o tempo inteiro durante cem anos. Essa
pessoa não vai ter como refletir. Essa ideia da corrupção não tem fio nem pavio
e é a grande questão nacional. É a questão que faz com que todas as vezes,
quando um líder popular ascende ao poder de Estado, tem uma gritaria geral
da imprensa, parte da elite, para retirar essa pessoa do Estado como
aconteceu com Getúlio, Jango, Lula e Dilma.
Só
líderes populares foram vítimas de golpe de Estado. Isso não é um acaso e
sempre a questão da corrupção é determinante. Nunca foi provado nada
contra Getúlio, contra Lula e menos ainda contra Dilma, mas
produziu-se uma grande mentira que vem sendo reproduzida a cem anos. Isso é
feito para que a elite consiga se apossar do Estado e roubar. Quando Dilma
tentou diminuir a taxa de juros e aumentar o salário mínimo, foi por esses
motivos que aconteceu o golpe de 2016. A elite se uniu para derrubar a presidenta com a corrupção como pretexto. O que Moro fez foi exatamente o que Carlos
Lacerda fez com Getúlio em 1954.
- Essa reafirmação do racismo pelo caminho moral e cultural
acaba causando quais males para o povo negro e mestiço?
Jessé de Souza – Nós
temos uma história da repetição. Criminaliza o povo quando você diz que ele é
inconfiável e corrupto, porque a dimensão moral é a mais importante do ser
humano. Essa censura moral foi transformada em um dispositivo de poder para
controlar o sufrágio universal. Você tem que criminalizar o voto das pessoas
negras, mestiças e pobres. Esta é a grande ideia que a elite inventou para
combater a ideia de um país inclusivo, pujante, industrial
que Getúlio tentou e que Lula continuou em parte.
Para
que entendamos como a sociedade funciona, precisamos saber como ela é
legitimada. Todas as sociedades são injustas, algumas são mais do que outras.
Aí você tem a legitimação das condições injustas que precisam inferiorizar o
oprimido, fazê-lo acreditar que ele é menos. Você diz que ele é inconfiável, e
amalgamar o negro e o bandido é o passo prefigurado depois disso. É dessa forma
que você faz com o que o voto não valha e a participação popular seja
impossível. Foi isso que a elite descobriu com a ajuda dos
considerados maiores intelectuais desse país até hoje.
A universidade,
o cinema e a indústria cultural ainda percebem esse país
deste jeito. Eu queria fazer essa denúncia porque este ponto é importante para
quem quer estar emanado na tarefa de ressignificar um povo tão humilhado e sofrido
como o nosso. A legitimação vai ser a mesma de antes: racial.
O negro é inferior e só obedece. Depois de 1936, é do mesmo jeito que
antes, só que agora você não usa mais a palavra raça, mas criminaliza o voto, a
política e o Estado. O Estado, única instituição que pode se contrapor aos
desmandos do mercado, é capturado na medida em que ele é fragilizado e
criminalizado com lócus da corrupção.
Esse
mecanismo de falar da corrupção invisibiliza
o roubo real. O maior dispositivo de poder é invisibilizar quem está mandando e
quem está fazendo. A culpa é do outro. Criminaliza o Estado, deixa-o
frágil, e os donos do mercado podem se apossar dele. Esse é o esquema de
dominação posto entre nós.
As
classes se reproduzem, ou seja, existe um bloco antipopular feito pela elite de
proprietários e a classe média branca. Um fica com o poder de Estado e o
dinheiro para roubar todo mundo. E a classe média branca fica com os
bons empregos, com reconhecimento, com uma vida próxima do europeu e do
norte-americano de classe média. Os outros 80% são pobres, remediadamente ou
muito pobres, com menos de dois salários mínimos. E essa classe mais
baixa, quase completamente negra e mestiça, foi montada para ser vulnerável.
São famílias desajustadas pela perseguição, não por culpa delas.
Toda
vez que se tentou redimir os pobres neste país, a elite e a classe média branca saiu, histérica, gritando contra a corrupção, exceto que
no fundo não tem nada a ver com isso. É para manter o povo negro no seu lugar,
sem direitos, andando de bicicleta por 14 horas para
entregar a pizza quentinha na casa do burguês.
Não
só a família é desestruturada, mas a escola é precária. É para que elas
saiam como analfabetas funcionais. Eu fiz um livro, entrevistei muitos desses
pobres e eles se acham culpados. É para isso que ela serve: culpar a vítima. No
mundo moderno, se você não incorpora conhecimento, você é lixo. Você é músculo,
pele, osso. É um animal, é um cavalo e é um escravo. Essas pessoas eram
exatamente isto: reduzidas ao seu corpo, à energia muscular. É assim que essa
classe de abandonados e humilhados, que representa 40% da nossa população,
vive.
***
Ao
final da conferência, os participantes puderam fazer perguntas ao palestrante.
Reproduzimos a seguir um trecho do debate:
- Rita de Blasiis – Como a naturalização de um ódio dessa
magnitude foi possível entre nós?
Jessé de Souza – Antes
de tudo, foi pela imprensa privada. Ela faz a cabeça das pessoas, elas não
têm como ter uma ideia própria. Como nós refletimos? Ouvindo opiniões
discordantes. Você ouve algo, gosta de um ponto, mas discorda de outro. Ouve
outra ideia oposta e faz o mesmo processo. Se não temos uma imprensa plural,
teremos a ditadura de uma só ideia. Isso só acontece em países autoritários
como a Coreia do Norte. Mas esse autoritarismo pode ser produzido pelo
mercado. Basta que cinco famílias ricas tenham toda
a mídia relevante em um país. Ou seja, ela vai mentir o tempo todo.
Basicamente,
o esquema de poder entre nós se configura com a elite roubando e
a imprensa mentindo. A imprensa constrói uma realidade virtual para as
pessoas. Isso é uma violência simbólica extremamente importante porque você retira a capacidade de
reflexão, que é tudo que nós temos como seres humanos. Qualquer coisa que
quisermos fazer vamos precisar refletir e, ao retirar o ambiente da reflexão,
cria-se um povo passivo, mesquinho. Sem televisão pública, sem outros meios.
Isso
também acontece porque a nossa educação é precária. Essas duas forças
criam uma realidade paralela nas pessoas.
- Denilson Mariano – Quais as principais forças de
resistência a essa ideologia escravocrata dominante no Brasil?
Jessé de Souza – Nós
tivemos algumas forças de resistência. Getúlio Vargas, Lula e
o PT, o MST, a Teologia da Libertação que,
mesmo eu não sendo religioso, admiro muito. Nas entrevistas que fiz
no Nordeste, todas as pessoas que tinham alguma forma de resistência eram
formadas na Teologia da Libertação.
Hoje
temos o contrário disso, especialmente com as igrejas evangélicas e
com o neopentecostalismo que, no fundo é a reprodução
da religião africana usando, superficialmente, o prestígio
do cristianismo. Nós temos a negação de todo o impacto social e político
montado em uma guerra entre Deus e o Diabo, o descarrego e os espíritos. Essa é
a nossa Teologia da Libertação. E isso precisa ser combatido, é um
absurdo. Isso desempodera, emburrece, imbeciliza. É um desafio enorme porque
essas pessoas estão se constituindo em grupos econômicos, partidos políticos.
Fonte:
IHU OnLine
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